Médico de família pode resolver 85% das queixas dos pacientes

Médico de família e comunidade cuida das pessoas ao longo da vida, em vez de apenas tratar doenças. Veja a diferença para o clínico geral

Karine e sua paciente Lindacy: '"Minha especialidade me possibilitou conhecer indivíduos, vivências, histórias, famílias e seus lares' (Fotos: Edu Kapps / SMS)
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Cerca de 85% das queixas dos pacientes que chegam às Unidades Básicas de Saúde e aos hospitais públicos brasileiros podem ser resolvidas pelo médico de família e comunidade, que costuma ter uma relação mais próxima e vínculo de confiança com os moradores locais.

A informação é da Secretaria de Atenção Primária à Saúde, órgão ligado ao Ministério da Saúde. Dados semelhantes também são compartilhados pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). Segundo a entidade, a atenção primária cuida das pessoas e pode atender de 80% a 90% das necessidades de saúde de um indivíduo ao longo de sua vida.

A especialidade acompanha o paciente durante todas as fases da vida e está atrelada ao atendimento em Atenção Primária. Para lembrar a importância e o trabalho desses profissionais, existe o Dia Nacional do Médico de Família e Comunidade, celebrado em 5 de dezembro. A data valoriza quem atua na atenção primária nos sistemas de saúde em todo Brasil.

No Rio de Janeiro, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) reforça a importância desses profissionais, que, ao entrarem nas casas das famílias da comunidade, são capazes de vivenciar diversas fases e versões da vida de uma única pessoa. Além do cuidado integrado à saúde, muitas vezes, ainda oferecem um ombro amigo.

Uma oportunidade de crescer como ser humano

Esse é o retrato da história da médica de família e comunidade Karine Piancastelli, que após conhecer a especialidade e estagiar na Clínica da Família Estácio de Sá, no Centro do Rio, enxergou sua profissão como uma ferramenta social e política. Hoje, ela atua na da Clínica da Família Maria do Socorro Silva e Souza, na Rocinha, a maior favela da cidade.

Para Karine, o trabalho realizado nos territórios vulneráveis é uma oportunidade de crescer enquanto ser humano. Foi desse modo que ela alcançou sua realização pessoal, depois de ser convidada para atuar como preceptora do Programa de Residência em Medicina de Família e Comunidade, da Prefeitura do Rio de Janeiro.

Dedicando o seu tempo e estudo aos problemas estruturais do território e, principalmente, ao combate à violência estrutural e o debate sobre questões de gênero, Karine atendeu, zelou e acolheu diversas moradoras da Rocinha, ao longo de quase três anos, através do grupo de mulheres que a médica protagoniza.

“A característica mais forte da medicina de família e comunidade é reunir elementos para compreensão integral de um agravo em saúde, nos quais é incluída a possibilidade de acompanhar o paciente de perto, conhecer seus familiares e vizinhos, explorar culturas e crenças e atuar em equipe por meio do cuidado sob a perspectiva de diferentes profissionais”, relata Karine Piancastelli. 

Para ela, quanto mais elementos há na construção de uma assistência, mais efetiva e coerente ela será. “Minha especialidade me possibilitou conhecer indivíduos, vivências, histórias, famílias e seus lares. É certo que ser médico exige muito estudo, mas digo que tudo o que mais aprendi com a medicina de família e comunidade extrapola o que qualquer livro tente descrever”, ressalta.

Paciente recebe apoio para lançar livro

Reconhecida como uma voz ativa e bastante respeitada pelas moradoras participantes do projeto, a médica de família e comunidade conquistou o seu espaço não somente no grupo, mas, também, no coração de tantas mulheres que tiveram suas vozes silenciadas e enfrentaram as consequências de uma sociedade firmada por homens.

E, assim, encontraram na Dra Karine o conforto e incentivo necessário para resgatar os seus sonhos, enfrentar vários desafios e assumir o controle de suas próprias narrativas. Esse foi o caso da senhora Lindacy Menezes, uma nordestina de 66 anos, que viu na médica a oportunidade de poder compartilhar seus traumas e medos, frutos de abusos sofridos ainda na infância, no Recife.

“Alguns momentos que vivi com a doutora Karine eu levarei sempre comigo, como por exemplo, dividir os abusos que sofri durante a minha infância. O apoio dela foi essencial, pois sempre que falo sobre o assunto em grupo, tudo o que sou capaz de sentir é tristeza, e ela e a literatura fizeram com que eu pudesse me libertar de todos esses fantasmas”, afirma Lindacy

Para Lindacy, a doutora Karine representa coragem e renovação em sua caminhada enquanto mulher e, atualmente, escritora. As palavras de carinho se dão pelo forte apoio da médica e amiga no lançamento do seu  primeiro livro, chamado ‘’Destino desviado’’.

“O momento mais marcante da minha relação com a Lindacy foi quando fiz o convite para que ela participasse conosco de um congresso médico, em que faríamos uma apresentação sobre o grupo de mulheres. Ela não hesitou e fez do convite uma oportunidade de lançar um de seus livros na Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói, em agosto de 2022″, diz a médica.

Lindacy, que chegou ao Rio de Janeiro com dificuldades na leitura e escrita, se alfabetizou na cidade e abriu inúmeras portas que pareciam fechadas, ressignificando o seu passado e trazendo esperança para o futuro, com todo o apoio da médica de família e comunidade.

“O trabalho da doutora Karine e todos os médicos da Clínica da Família Maria do Socorro é essencial para aqueles que estão ao meu redor, eu vejo isso. A comunidade enxerga o benefício do trabalho deles em todas as esferas”, diz Lindacy.

Médico de família x clínico geral

“Ainda tem uma confusão entre médico de família e clínico geral, mas são funções diferentes. Enquanto o segundo trata especificamente da doença, o primeiro tem o foco na pessoa e na raiz do que pode estar causando o problema”, explica a coordenadora adjunta do curso de Medicina do Centro Universitário Integrado de Campo Mourão (PR), Taísa Navasconi Berbert.

Além dos sintomas, o estilo de vida, os hábitos, as emoções, as condições de trabalho e a moradia são levados em conta para que o médico de família e comunidade aponte um diagnóstico.

“O indivíduo é analisado de forma integral, em uma abordagem biopsicossocial, justamente porque todos esses fatores podem estar relacionados à saúde e nem sempre as pessoas estão conscientes disso”, destaca Taísa.

Onde atua o médico de família e comunidade?

Segundo a Organização Panamericana de Saúde (Opas), o médico de família e comunidade pode atuar em unidades de atenção primária à saúde, consultórios privados, serviços de emergência, hospitais, serviços de medicina paliativa e atender equipes de população de rua.

Os atendimentos mais comuns estão relacionados às consultas de rotina, check-ups, queixas ginecológicas, doenças crônicas, questões de saúde mental, uso de substâncias químicas, dores crônicas, falta de ar e taquicardia. Quando o problema exige cirurgia, tratamento oncológico ou se revela uma doença rara, é preciso encaminhar para outros especialistas.

O acesso e o respeito à individualidade de cada paciente de um território são a essência dos médicos de família e comunidade. Eles atuam nas clínicas da família e centros municipais de saúde, exercendo um trabalho que apresenta resultados positivos para além daqueles expostos nos consultórios médicos.

Especialidade cresce 30% em dois anos com atuação na pandemia

O estudo de demografia médica do Conselho Federal de Medicina (CFM) aponta que o número de profissionais dedicados à Medicina da Família e Comunidade cresceu 30% em dois anos e 171% na última década no Brasil. O vice-presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, Marco Túlio Ribeiro, analisa os dados.

“O aumento no número de profissionais na especialidade é decorrente de uma série de fatores, mas a atenção primária ganhou relevância significativa durante a pandemia. O médico da família foi importante no acompanhamento integral do paciente durante a crise sanitária”, diz ele.

A médica Carla Biagioni, diretora técnica na AsQ, empresa especializada em gestão de saúde, acrescenta que o cuidado primário, com apoio da medicina da família, é uma tendência no setor, principalmente por reforçar a prevenção e promoção da saúde, além de contribuir para o envelhecimento com mais qualidade de vida. Segundo ela, omédico da família está apto a examinar, diagnosticar e tratar patologias clínicas femininas, masculinas e pediátricas evitando a fragmentação do atendimento.

“O modelo com a atenção centrada no hospital não cabe mais na sociedade. Uma medicina voltada para o indivíduo, isto é, focada na pessoa, fornecendo o máximo de resolubilidade às necessidades do paciente, evita desperdícios e proporciona um entendimento da saúde global do paciente, que não pode mais ser tratado de forma fragmentada”, diz Carla, destacando o papel das clínicas de Atenção Primária.

Um artigo publicado na revista científica internacional Plos One mostrou que a maior cobertura da Atenção Primária à Saúde e da Estratégia de Saúde da Família, juntamente com uma pontuação acima da média do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ), estão associadas a uma menor incidência da Covid-19.

O estudo assinado pelos pesquisadores Marcello Guedes, Sanderson Assis, Geronimo Sanchis, Diego Araujo, Angelo Oliveira e Johnnatas Lopes, foi realizado por meio da análise de dados secundários da população de todas as principais cidades brasileiras, com base na análise de uma série epidemiológica de epidemias.

O que precisa para ser médico de família?

Para atuar como médico de família e comunidade é preciso concluir os seis anos de estudos em medicina e ainda fazer uma residência de dois anos na área. Durante esse período, o profissional vai aprofundar seus conhecimentos em temas como saúde coletiva, medicina preventiva e epidemiologia.

“Escolhi essa área por ver o paciente de forma integral e ficar próximo da realidade onde ele vive. Assim, criamos um vínculo para que seja tomado decisões centradas no paciente e não na doença”, explica Alan Eduardo Tavares Martin, que atua como médico de família e comunidade na Prefeitura Municipal de Campo Mourão, no curso de Medicina do Integrado e numa empresa de plano de saúde.

“Nesta profissão, vínculo significa confiança. Assim, compreendemos a dimensão dos problemas individuais e coletivos e buscamos as melhores estratégias de intervenção”, destaca Camila Gomes Braga, que é responsável pela Estratégia de Saúde da Família da Prefeitura de Campo Mourão, supervisora do Programa de Residência Médica da Santa Casa de Misericórdia do mesmo município e docente no Integrado.

Prática começa desde cedo

Para que os estudantes de Medicina do Centro Universitário Integrado se familiarizem com essa prática de trabalho, eles realizam diferentes atendimentos – sob monitoria dos professores – ao longo da graduação. Só no ambulatório da instituição de ensino, foram 21.635 atendimentos desde 2020.

Dos 53 acadêmicos que vão fazer a Colação de Grau em Medicina, no dia 1º de dezembro, todos já realizaram esses atendimentos à população durante o período de internato.

Outra atividade como essa é feita para os moradores do Lar de Idosos São Joaquim e Sant’Ana de Campo Mourão. Toda semana, um médico geriatra e os acadêmicos visitam os idosos e fazem atendimentos gratuitos no próprio local.

A instituição de ensino patrocina a mão de obra do profissional geriatra, custeia os insumos utilizados nos atendimentos, proporciona acesso à saúde de qualidade e promove o bem-estar aos residentes do local.

“Outro bom motivo para atuar como médico de família e comunidade é a expansão do mercado de trabalho, que tem boas oportunidades de emprego”, complementa Taísa Navasconi Berbert.

Com Assessorias

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