Alerta para uma epidemia de câncer em estágio avançado

Pesquisa da Femama mostra que pandemia afeta diagnóstico precoce, adiando início do tratamento de câncer de mama. Lei dos 60 dias não é respeitada

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O avanço da Covid-19 no Brasil tem refletido no atendimento aos pacientes para diagnóstico e tratamento contra o câncer, como a aposentada Rosemary Souto Cruz, de 61 anos, que descobriu um câncer de mama logo no começo da pandemia. “Desconfiei de um novo tumor e fui ao médico, ele solicitou uma endoscopia para o dia 23 de março, mas como no dia 22 a quarentena foi anunciada, todos os exames foram cancelados e agora preciso aguardar o fim do isolamento”, diz ela, que faz tratamento no Hospital Pérola Byington, referência no tratamento de câncer de mama em São Paulo.

Todas as consultas e exames que tinha agendadas foram cancelados nesse período de pandemia, tanto para rotina, quando para diagnóstico. Fui informada que só poderia ser atendida em casos de urgência no pronto-socorro e que as demais cirurgias eletivas estavam canceladas. Estou na torcida para que ainda no mês de junho retomem os exames. No dia 15 de julho tenho nova consulta e preciso levar a nova mamografia. Me senti um pouco prejudicada porque precisava do exame que eu iria fazer em março para confirmação de um diagnóstico. Infelizmente não sei nem quando a gente vai poder remarcar”, conta Margareth.

Responsável pela campanha Outubro Rosa, a Femama – Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Apoio à Saúde da Mama realizou um levantamento em maio mostrando que a situação atual agravou, ainda mais, os atrasos no diagnóstico de câncer no Brasil. As maiores queixas das pacientes têm sido o cancelamento de consultas (32,3%), cancelamento de cirurgias (22,6%) e a falta de agenda disponível para exames de diagnóstico (16,1%). O levantamento teve a participação de 30 ONGs associadas em 25 cidades, sendo 12 capitais, de 16 estados.

Os pacientes se sentem desamparadas pelo sistema de saúde e com a falta de informação, não conseguem ter uma ideia sobre o futuro de seu tratamento. Hoje pacientes que não têm como recorrer a serviços particulares de saúde não têm outra opção a não ser esperar”, afirma Maira Caleffi, presidente voluntária da Femama e chefe do Serviço de Mastologia do Hospital Moinhos de Vento.

Demanda reprimida pode aumentar metástases

Para Ramon Andrade de Mello, professor da disciplina de oncologia clínica da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e da Escola de Medicina da Universidade do Algarve (Portugal), a demora no diagnóstico e início do tratamento poderá criar uma demanda reprimida e o aumento de doenças metastáticas nos próximos meses. “Esses casos são de urgência. O medo de contágio pelo novo coronavírus não pode impedir o adequado atendimento médico do paciente”, afirma.

O médico oncologista ressalta que o diagnóstico e tratamento de um tumor devem ser realizados na fase inicial da doença, aumentando as chances de alcance dos resultados positivos. “Adiar uma quimioterapia, por exemplo, amplia as possibilidades de progressão do câncer, diminuindo as chances de curabilidade”, explica o oncologista.

A falta de atendimento irá gerar um número de casos em estágios ainda mais avançados depois da pandemia. É urgente que se abram e divulguem caminhos ‘livres de corona’ para as pessoas procurarem atendimento, e informações”, ressalta a presidente da Femama.

Dr Ramon lembra que os pacientes devem consultar o seu especialista e que a telemedicina, regulamentada recentemente pelo CFM – Conselho Federal de Medicina, pode ajudar.”As ferramentas tecnológicas já permitem a realização de alguns procedimentos virtuais. Cabe ao especialista indicar a melhor conduta para cada paciente”, aponta.

Lei dos 60 dias para garantir tratamento não é respeitada

A presidente da Femama lembra que está em vigor uma lei para que todos tenham atendimento rápido e, consequentemente, o diagnóstico precoce, a Lei dos 30 dias, que estabelece que os exames necessários para a confirmação do diagnóstico de câncer sejam realizados no SUS em até 30 dias. A Lei foi aprovada, mas teve seu prazo de regulamentação expirado em 28 de abril. 

O tempo médio para diagnóstico do câncer no Brasil é de 200 dias na rede pública de saúde, o que desencadeia sentimentos de angústia e incerteza em pacientes e seus familiares, além de reduzir as chances de cura”, destaca Maíra.

De acordo com dados do Tribunal de Contas da União (TCU), já em 2019 as pessoas demoravam até 200 dias para ter uma confirmação ou negativa se tinham câncer. Para os casos positivos o resultado era catastrófico, resultando em maior volume de pacientes com a doença em estágio avançado.

Ela lembra que a ciência já provou que em câncer de mama, a arma mais poderosa para diminuir o risco de morte é o diagnóstico precoce. E agora, com a crise provocada pelo coronavírus, a escassez de atendimento gerará um número de casos de câncer em estágios ainda mais avançados no período pós-pandemia.

A população está resignada em casa com medo do vírus e não estão fazendo exames de rotina. Vamos ver um aumento significativo de casos de tumores palpáveis e tratamentos mais agressivos, com maior custo e número de mortes. Por isso é urgente que se abram caminhos ‘livres de corona’ para que as pessoas encontrem ajuda e informações”, diz a Dra. Maira Caleffi.

Pacientes com suspeita ou em tratamento não podem esperar

Segundo Maíra, desde que o governo anunciou o início da quarentena no Brasil, a pandemia por si só já é um enorme desafio para o SUS. Além disso trouxe consigo consequências graves para outras áreas de atendimento à população, seja pela alta sobrecarga dos hospitais ou pela instabilidade no Ministério da Saúde impactando diretamente na gestão dos diferentes níveis do sistema estadual e municipal.

Embora estejamos em plena pandemia do coronavírus, a atenção e enfrentamento de pacientes com suspeita de câncer ou em tratamento não podem parar, precisamos que os responsáveis assumam o compromisso de mudar a realidade dos pacientes”, reforça Maíra.

Segundo ela, ainda que os estados estejam adotando medidas de contenção, elas são dispersas e, em muitos casos, não estão dando conta da demanda por serviços de saúde e, até de uma simples informação. A comunicação está desencontrada e isso é observado no número de pacientes em redes sociais e ONGs buscando ajuda e direcionamento.

Em um momento tão delicado como o que estamos vivendo, mais do que nunca é preciso focar no que é essencial: a vida das pessoas. É inaceitável que pessoas com suspeita de câncer fiquem em casa. Precisamos com urgência de uma diretriz ministerial, estadual e municipal dirigidas a pacientes com suspeitas de câncer ou em busca de atendimento. As orientações precisam ser claras, com direcionamento, para que possamos evitar o colapso nos próximos meses”, cobra ela.

Rastreamento é muito importante, diz radiologista

O rastreamento é parte integrante do paradigma de atendimento ao câncer de mama. De acordo com os fatos e números 2019-2020 da Prevenção de Câncer da American Cancer Society, as mamografias de rastreamento ajudaram a reduzir as mortes por câncer de mama em cerca de 20%, devido à detecção e tratamento precoces. O relatório também observa que quatro a seis cânceres de mama são detectados para cada 1.000 mamografias de rastreamento.

Mas em meio à pandemia global da Covid-19, o acompanhamento e diagnóstico do câncer de mama devem ser discutidos e personalizados, e podem ser postergados , segundo vários autores. De acordo com Harold J. Burstein, MD, PhD, do Dana-Farber Cancer Institute, George Sledge, Jr., MD, do Stanford University Medical Center), “o adiamento faz sentido para a maioria das pacientes sem sintomas e sem risco porque o intervalo das avaliações é diferente em vários países (um a dois anos) e isso pode reduzir o risco de infecção pela Covid-19 para pacientes e profissionais.

Com os sistemas de saúde comprometidos com o atendimento aos pacientes com a Covid-19, todos compartilhamos a responsabilidade de ajudar a conter a disseminação e apoiar nossos prestadores de serviços de saúde, principalmente hospitais, na concentração de esforços e recursos para os pacientes que mais precisam de cuidados. Apesar de não haver um consenso, muitos grupos importantes têm proposto guidelines: Breast Cancer Research and Treatment, The American Society of Breast Surgeons, Colegio Brasileiro de Radiologia, Febrasgo, Sociedade Brasileira de Mastologia etc.

No entanto, seria prudente definir quais pacientes devem manter o estadiamento, a investigação e confirmação de malignidade, quais pacientes com câncer de mama requerem cuidados mais urgentes e quais seriam as práticas mais adequadas e seguras para este público”, afirma a radiologista Ana Paula de Miranda Rosati, da Clínica Felippe Mattoso, marcado Grupo Fleury no Rio.

Atraso no diagnóstico pode prejudicar o tratamento

De maneira geral, situações como infecção/formação de abscessos correspondem a situações mamárias críticas e que não permitem adiamento de diagnóstico tratamento. Segundo ela, há condições não críticas cujo atraso, entretanto, pode afetar potencialmente o resultado geral/prognóstico e devem ser consideradas.

São casos de investigação de mulheres sintomáticas (nódulo palpável, fluxo papilar suspeito), biópsias percutâneas de alterações suspeitas nos exames de imagem (categoria 4 ou 5 pelo ACR BI-RADS®), exames para estadiamento locoregional ou sistêmico de malignidade comprovada, marcação pré-cirúrgica para cirurgia diagnóstica ou terapêutica, clipagem de tumor para quimioterapia neoadjuvante, avaliação de resposta à quimioterapia neoadjuvante.

Segundo estas orientações, exames de rastreamento em paciente sem risco, seguimento de lesões provavelmente benignas e rastreamento por ressonância e ultrassonografia em pacientes de alto risco sem sintomas poderiam ser postergados para depois da pandemia.

A principal questão é que ninguém sabe por quanto tempo a pandemia irá interferir nas condutas de triagem, embora a maioria concorde que as limitações persistirão pelos próximos meses. É prudente contrapor que o adiamento de detecção terá consequências quando a pandemia desaparecer e os serviços de saúde também deverão estar preparados”, alerta a médica.

Uma revisão recente da literatura descobriu que atrasos no tratamento do câncer de mama têm menos impacto inicial do que se costuma pensar. Ainda assim, a espera mais longa afeta os resultados finais. “A revisão constatou que a cirurgia dentro de 90 dias do diagnóstico e 120 dias para a quimioterapia levou aos melhores resultados, tempos que poderiam muito bem ser impactados pela triagem tardia devido à Covid-19”, ressalta.

Estas consequências ainda não podem ser totalmente mensuráveis, mas a adoção de condutas personalizadas poderia ser reavaliada com base em algumas premissas (veja abaixo). No entanto, “as estratégias adotadas não devem substituir o julgamento médico individual, nem políticas ou diretrizes institucionais, além disso devem ser tomadas no contexto de recursos de cada instituição e prevalência da pandemia da Covid-19 em sua região”, adverte.

  • Orientação da paciente sobre os sinais de alerta precoce do câncer de mama. Os sinais podem ser diferentes, as pacientes devem reconhecer o que normal para elas e em alterações na palpação ou aparência devem ter orientação médica antes de decidir fazer ou não o exame.
  • Condição emocional da paciente.
  • Avaliar risco da paciente por faixa etária e comorbidades.
  • Disponibilidade de sites com menor risco de exposição – espaços e clínicas exclusivos sem compartilhamento de pacientes com suspeita da COVID-19.
  • Centros de solução rápida (“one stop shop”) realização de exames de triagem e complementares em um único atendimento.
  • Equipe multidisciplinar para discussão dos resultados, avaliação de suspeita e planejamento terapêutico.
  • Desfecho clínico disponível.

Com Assessorias

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