As enchentes que causaram estragos em grande parte do Rio Grande do Sul deixaram milhares de desabrigados, incluindo famílias inteiras, animais de estimação e muitas crianças. Não bastasse o sofrimento de ter perdido tudo, mulheres e meninas estão sendo alvos de tentativa de abuso sexual em abrigos e alojamentos. A Polícia Civil e os Ministério das Mulheres e dos Direitos Humanos foram acionados e pelo menos oito acusados já foram detidos.
Para a professora Luísa Habigzang, coordenadora do Grupo de Pesquisa Violência, Vulnerabilidade e Intervenções Clínicas da Escola de Ciências da Saúde e da Vida da PUCRS, crianças e adolescentes se tornam especialmente vulneráveis em contextos de crise e risco, ficando expostas a situação de violência física, sexual e psicológica.
“Em contextos como o que a gente está vivendo de desastre, essas situações podem se agravar, a vulnerabilidade desses grupos aumenta. Então, é muito importante que organizemos medidas para prevenção. Nesse sentido, estabelecer um monitoramento contínuo das crianças e adolescentes nos locais de acolhimento é fundamental”, ressalta.
Luísa destaca que não é o papel das pessoas que estão atuando nos abrigos fazer uma investigação para checagem de veracidade daquela situação. Mas todos têm a responsabilidade compartilhada de protegê-los de quaisquer tipos de violências, abuso, exploração e negligência.
“Ao receber um relato ou ao observar algo que levante a suspeita de uma situação de violência isso deve ser notificado ao conselho tutelar, encaminhado para a brigada militar. Então os órgãos competentes farão a investigação. O nosso papel nos abrigos é a prevenção e o acolhimento das pessoas”, ressalta Luísa.
Para isso é necessário ter acesso a informações de qualidade e saber como proceder. Por isso, o grupo preparar uma cartilha com dicas e orientações – confira aqui.
Leia mais no Especial Maio Laranja
Abuso sexual infantil: só 7 a cada 100 casos chegam à polícia
Abuso sexual: 4 em 10 casos têm vítimas até 13 anos
70% dos casos de violência sexual contra crianças ocorre dentro de casa
Como identificar sinais de violência
Violência física
- Qualquer conduta que ofenda a integridade ou a saúde corporal do indivíduo.
Exemplos: golpes, empurrões, beliscões, tapas, socos, chutes, puxões de cabelo, uso de armas de qualquer natureza, restrição de movimento, entre outros.
Violência psicológica
- Engloba qualquer comportamento que tenha a intenção de diminuir a autoestima e de humilhar a outra pessoa.
Exemplos: isolamento social, manipulação, insulto, chantagem, exploração, limitação do direito de ir e vir, violação da sua intimidade ou qualquer outro meio que cause prejuízo à saúde psicológica.
Violência sexual
- Compreende qualquer ato ou tentativa de prática sexual, comentários ou avanços indesejados e não consentidos pela outra pessoa (manipulações, chantagens emocionais, insistência, toques inapropriados, estupros).
- Envolve ainda atos para comercializar ou utilizar de outra maneira a sexualidade de alguém através de coerção e exposição indevida a conteúdo sexual.
Leia ainda
Abuso sexual infantil: 53% têm medo ou vergonha de denunciar
Rodovias têm quase 10 mil pontos vulneráveis para crianças e adolescentes
Mulheres e crianças sob risco de abuso sexual em abrigos no RS
10 dicas para prevenir abuso e exploração sexual on-line
O que fazer após identificar um caso de violência?
Caso você esteja atuando como voluntário em um abrigo e identifique ou receba relato de alguma situação de violência, encaminhe o caso para o profissional de saúde ou assistência social que está no plantão.
Acione o Conselho Tutelar mais próximo em funcionamento. Após as 18h, o contato deve ser feito com o Plantão de Atendimento do Conselho Tutelar pelo telefone (51) 991581348.
Em qualquer caso grave de violência, a Polícia Militar deve ser acionada imediatamente por meio do telefone: 190.
A PUCRS abriu suas portas aos desabrigados e funciona como um dos abrigos emergenciais em Porto Alegre, com estrutura montada em seu parque esportivo, onde também recebe e encaminha doações.
Professores e pesquisadores da universidade se mobilizam para ajudar a disseminar informações corretas e que apoiem que está na linha de frente neste momento: voluntários, jornalistas, agentes públicos, profissionais de saúde e tantas outras áreas.
No abrigo instalado na PUCRS há uma equipe de voluntários dos cursos de educação física, comunicação, e outras áreas, realizando atividades recreativas e culturais. Há brinquedos e livros à disposição e também sessões diárias de cinema.
Pautas climáticas e lições de empatia
A pesquisadora Andreia Mendes, do Programa de Pós-Graduação em Educação da PUCRS e integrante do Laboratório das Infâncias (LabInf), do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Infância(s) e Educação Infantil (Nepiei), esclarece dúvidas sobre como se pode interagir de maneira saudável e respeitosa com as crianças.
“A primeira coisa a ser considerada é que as crianças que estão em um abrigo certamente foram diretamente atingidas pela enchente. Isso significa que tiveram suas casas invadidas pelas águas, lama, estragos e podem ter tido inúmeras perdas (materiais, familiares, afetivas). A criança que está abrigada não está ali em uma situação confortável. Elas expressam no olhar inúmeros sentimentos”, explica a professora.
Outro ponto que deve ser reconhecido é que crianças neuroatípicas precisam de um olhar mais cuidadoso na interação e é necessário reconhecer que interagem de formas diferentes. “Crianças neuroatípicas tendem a desorganizar mais em situações estressantes ou em lugares com muito movimento e barulho, e por isso é importante buscar lugares mais isolados ou encaminhá-las, se possível, a abrigos específicos para famílias atípicas”, explica.
A professora ainda reforça que o momento é de escuta ativa e empatia. É preciso entender que os desabrigados passaram por situações de trauma e as crianças têm mais dificuldades de compreensão da complexidade da situação. Ainda reforça que será necessário que as escolas abordem as pautas climáticas e de empatia quando as atividades escolares retornarem.
“Habilidades socioemocionais são pauta da educação básica com ênfase a partir da BNCC (2017), mas isso é só o começo porque não se aprende emoções. Se sente, percebe, reconhece. Se formos sensíveis, seremos capazes de reconhecer nosso papel na sociedade e, quem sabe, as crianças do futuro serão adultos mais sensíveis ao consumo consciente, ao meio ambiente e ao cuidado com o outro”, compartilha.
Leia também
As consequências do abuso sexual infantil na vida adulta
Nada de beijinho à força, nem carinho em segredo
‘Escuta protegida: lei para vítimas de abuso precisa sair do papel
Exploração sexual: questão criminal ou de saúde pública?
Veja como ajudar de forma afetiva e responsável
Cuidados de abordagem com crianças
- Permitir o silêncio e as diversas emoções
- Acolher e informar que ela está segura no abrigo
- Não fazer promessas de que “vai ficar tudo bem”
- Não a retirar do contato com a família, onde deve se sentir segura
- Entender que cada criança se comunica de uma forma diferente
- Atender as necessidades básicas e perguntar como ela se sente
Como explicar o que aconteceu e segue acontecendo
- Perguntar o que ela entendeu sobre as enchentes
- Questionar se ela tem dúvidas e responder (se não souber, pesquise as informações em fontes confiáveis)
- Explicar que o ocorrido foi um desastre climático e a importância de preservar o meio ambiente para que isso não ocorra
- Se for uma criança pequena, contar uma história que explique de forma simplificada e lúdica
- Explicar que é preciso aguardar que o nível das águas baixe para poder realizar as limpezas e conscientizar sobre as doenças
Ideias de recreação e lazer
- Propor jogos e brincadeiras interativas
- Convidar para atividades que também sejam exercício físico, como pular corda
- Contação de história
- Hora do cinema com projeções de desenhos e filmes infantis
Confira aqui alguns pontos de atenção
- Ao dormir, a criança/adolescente deve ficar entre a família, de preferência acompanhada de mulheres.
- Coloque pulseiras para identificação de todas/as, com nome e sobrenome do responsável.
- Não deixe a criança/adolescente sem monitoramento da família ou voluntária identificado.
- A saída do local deve ser feita somente com responsável e/ou voluntária identificado.
- Prepare um local específico para crianças com monitoramento da equipe.
- Banheiro: crianças/adolescente deverão estar sempre acompanhadas do responsável ou voluntária identificada.
Policiamento reforçado em abrigos e alojamentos
O alerta sobre casos de abuso sexual nos abrigos e alojamentos no Rio Grande do Sul foi feito por vítimas e representantes de instituições ligadas à defesa dos direitos humanos. A ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, fará uma visita ao Rio Grande do Sul, onde pretende organizar uma equipe para permanecer nos pontos atingidos, para receber e auxiliar na apuração dos fatos.
O Ministério das Mulheres afirmou que vai preparar um protocolo para atuação com as autoridades locais. O Ministério dos Direitos Humanos informou que disponibilizou novos canais de denúncia via Disque 100 para que casos de violações sejam relatados.
A Polícia Civil está investigando os casos, segundo informou a Secretaria da Segurança Pública do Rio Grande do Sul. Quatro homens foram presos em diferentes abrigos de Porto Alegre e região metropolitana, suspeitos de abusarem de vítimas menores de 18 anos. Eles seriam dos mesmos núcleos familiares das vítimas e os casos vinham sendo praticados anteriormente no ambiente doméstico e se repetiram nos abrigos.
O policiamento foi reforçado em abrigos e alojamentos com rondas periódica, informaram as polícias locais. Os relatos das ocorrências de abuso são apontados principalmente em pontos onde não há distinção de alojamentos femininos e masculinos, potencializados pela falta de energia elétrica e de banheiros exclusivos para a comunidade feminina.
Diante das denúncias, a Prefeitura de Porto Alegre informou que mulheres e crianças serão levadas para um alojamento exclusivo que receberá vigilância privada no Foro Regional do Partenon, na zona leste da capital gaúcha. Será firmada uma parceria com o Poder Judiciário para recebimento da população designada nos próximos dias.
O governador Eduardo Leite (PSDB) também confirmou abrigos exclusivos para mulheres e crianças em cidades atingidas. De acordo com o Executivo estadual, ainda estão sendo definidos onde serão, quando começam a atender a população atingida e qual o número de acolhimentos possível.
Com informações da PUC-RS e agências