Se o abuso sexual é doloroso para adultos, imagina para crianças e adolescentes? No entanto, infelizmente, muitos ainda precisam relatar o ocorrido diversas vezes ao longo do processo penal, algumas vezes até na presença do agressor. Essa realidade deveria mudar a partir da Lei 13.431/2017, que instalou a escuta protegida de vítimas ou testemunhas de violência ou abuso sexual.

A chamada Lei da Escuta Protegida prevê um conjunto de procedimentos e mecanismos para contribuir com o fim da chamada revitimização, quando a vítima ou testemunha tem que dar o depoimento mais de uma vez aos órgãos de proteção e justiça. No entanto, é considerada uma ‘lei esquecida’, ainda distante de implementação em todo o território nacional, porque carece de apoio do poder público.

A lei assegura um atendimento mais humanizado, incluindo a acolhida inicial, a escuta especializada e o depoimento especial como forma de preservar os direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes.

Os depoimentos de vítimas e testemunhas de violência devem ser realizados com o apoio de uma equipe técnica capacitada, evitando o contato com o agressor e a reiteração do depoimento, em linha com os direitos garantidos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

No entanto, poucas cidades e estados implementaram a nova lei.  Para ajudar nessa implementação, a Childhood Brasil tem atuado como consultora, auxiliando o poder público na criação de procedimentos integrados (fluxos e protocolos) e ações de prevenção para enfrentar a revitimização de crianças e adolescentes.

O processo de elaboração e aprovação da nova norma foi realizada por Unicef, Childhood Brasil  e Frente Parlamentar de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes. Para a diretora executiva da Childhood Brasil, Laís Perett, a iniciativa demonstra como podemos criar uma sociedade mais justa e segura para crianças e adolescentes quando há o apoio de toda rede de proteção.

“Sabemos que muitas crianças vítimas de violência sexual nunca irão revelar suas experiências por não terem a certeza de que serão protegidas. Por isso, é urgente a implementação da Lei 13.431, como resposta para a proteção de cada uma delas. Precisamos tirar a lei do papel e transformá-la em uma cultura cotidiana de proteção de crianças e adolescentes”, ressalta.

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Lei da Escuta Protegida chega a Rondônia

O Governo de Rondônia assinou em março uma iniciativa inédita no âmbito estadual para a proteção dos direitos de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violências sexuais. O “Pacto Criança Protegida Rondônia” tem como objetivo a efetiva implementação da Lei da Escuta Protegida.

“A proposta é que sejam criados fluxos integrados de atendimento para evitar a revitimização que, geralmente, ocorre durante o depoimento com uma série de atos e questionamentos, que geram constrangimentos, o que faz com que as vítimas sejam submetidas a um sofrimento contínuo e muitas desistam de denunciar seus agressores ou seguir com os devidos processos”, explica a secretária de Assistência e Desenvolvimento Social de Rondônia, Luana Rocha.

Desde 2019, o estado criou o Programa Criança Protegida, quando foram iniciados cursos de formação e capacitação de agentes públicos para atuarem no combate ao abuso sexual e o fortalecimento dos conselhos tutelares. A próxima etapa é fornecer aos 52 municípios conhecimento para a implementação da Lei de Escuta Protegida.

Também é preciso sensibilizar e mobilizar os atores envolvidos no Sistema de Garantia de Direitos (Tribunal de Justiça, Ministério Público, Defensoria Pública e Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente), além de criar modelos de atendimento integrado para os municípios; e estruturar os fluxos de atendimentos, entre outras iniciativas.

“Estes materiais, que contêm o fluxo e o protocolo, juntamente com a criação do Complexo da Escuta Protegida, onde é realizado o depoimento especial, finalizam a primeira fase de implantação do ciclo do atendimento integrado e humanizado de crianças e dos adolescentes vítimas ou testemunhas de violências”, diz Itamar Gonçalves, superintendente de Advocacy da Childhood Brasil.

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Complexo de escuta protegida na Bahia é modelo para o Brasil

Complexo de Escuta Protegida de Vitória da Conquista (BA) – Foto: Divulgação

Criada há 25 anos pela rainha Silvia da Suécia, a Childhood Brasil foi parceira da Prefeitura de Vitória da Conquista (BA) na criação do Complexo de Escuta Protegida, inaugurado em 27 de agosto de 2021. O equipamento é referência nacional na coleta de depoimentos de crianças e adolescentes em situação de violência, por ser o primeiro na modalidade que atende todas as especificações da Lei 13.431/2017 (Lei da Escuta Protegida).

Em dois anos de atuação, o complexo já realizou mais de 200 audiências de depoimentos especiais (até o mês de outubro de 2023). A estrutura funciona por meio de demanda do Poder Judiciário e da Polícia Civil, composta por uma sala para o depoimento especial, sala de audiência, sala de gravação, sala para preparação da vítima ou testemunha a ser ouvida, recepção e sala de administração.

Tudo isso garante a realização do depoimento especial a partir da metodologia do Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense, com base na resolução 299/2019 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Decreto Federal 9.603/2018. Em setembro de 2023 foi lançado um conjunto de procedimentos e mecanismos de diagnóstico, fluxo e protocolo que abordam o atendimento unificado de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.

Em novembro, o complexo recebeu a visita do Rei Carl XVI e da rainha Silvia da Suécia, criadora da ChildHood Foundation. Em dezembro, recebeu comitiva técnica da delegação internacional do governo de São Tomé e Príncipe, interessada em estabelecer um diálogo sobre os sistemas municipais e nacionais de proteção dos direitos de crianças e adolescentes, visando a implementação da experiência,

Segundo ele, esse é um marco na implementação da política pública no Brasil. “Ao implementar estes procedimentos e mecanismos o município torna-se uma referência nacional como efeito demonstrador para as demais cidades na implementação da Lei da Escuta Protegida”, afirma.

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Como funciona a Lei da Escuta Protegida

A Escuta Protegida inclui o mapeamento de gargalos para o atendimento, Manual de Fluxo de Atendimento Integrado e o Protocolo unificado de Atendimento Integrado. A lei estabelece ainda a integração, capacitação de profissionais e adequação dos espaços para o atendimento nos serviços em casos de violência física, psicológica, institucional ou sexual.

A lei determina novas metodologias e práticas, como o Depoimento Especial, para garantir que a criança ou adolescente que sofreu uma violência seja escutado de forma adequada no processo judicial, garantindo o direito de serem ouvidos de forma respeitosa por profissional qualificado.

O depoimento tem de ser realizado em um ambiente acolhedor, por profissional capacitado e a sessão é gravada, evitando que a criança ou adolescente repita de forma desnecessária fatos da violência que sofreu ou testemunhou, resultando em sofrimento, estigmatização ou exposição de sua imagem.

A Lei orienta ainda a criação de equipamentos especializados, como os Centros de Atendimento Integrados, que proporcionem atenção e atendimento integral e interinstitucional às crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, compostos por equipes multidisciplinares especializadas.

Para isso, é necessário a integração através de fluxos e pactuação de protocolos entre os órgãos do Sistema de Garantias de Direitos, tais como os da Segurança Pública, Sistema de Justiça e da Rede de Proteção.

Com informações da Childhood Brasil

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