A sociedade brasileira tem sofrido por falta da educação antirracista, atualmente imposta por lei nas escolas públicas e particulares. O número de casos pode estar também ligado ao aumento de denúncias e ao fato de as vítimas contarem com vídeos e áudios como forma de registrar os abusos e crimes. Mas essa maior visibilidade, infelizmente, não tem inibido os casos e revertido em punições exemplares.

Casos recorrentes de violações contra os direitos de pessoas negras no ambiente escolar mostram que as ações têm sido ineficientes. Neste Dia de Luta contra a Discriminação Racial (13 de maio), especialistas em Educação e Saúde Mental questionam o não cumprimento – pela maioria das escolas do país – da lei 10.639, assinada em 2003, que obriga o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira na educação básica, bem como no ensino universitário, e a reeducação das relações étnico-raciais em uma perspectiva antirracista

No Censo de 2022, quase 56% dos brasileiros se declaram pretos ou pardos. Apesar de ser maioria, eles ainda não são tão visíveis e respeitados nos bancos escolares. Afinal, o que está sendo ensinado nas escolas e universidades sobre igualdade racial?

Embora tenha aumentado significativamente a contribuição de pesquisadores, antropólogos, sociólogos, historiadores, educadores e cientistas políticos dedicados à produção literária em todos os níveis escolares para recontar a história da participação do negro na formação sociocultural do Brasil, resgatar personagens ilustres e reconhecer personalidades intelectuais de importância incontestável, não se pode dizer que esses materiais estejam chegando às listas de bibliografia dos estudantes.

‘Manual Prático de Educação Antirracista’ vai às escolas

Autor de Manual Prático de Educação Antirracista, lançado recentemente pela Cortez Editora, o carioca Allan Pevirguladez, professor há 17 anos, destaca que crianças negras podem ser atravessadas pelo racismo a qualquer momento.

Se o profissional da educação que estiver presente não estiver atento à questão ou se não interromper a ocorrência, tal violência poderá gerar traumas que poderão ser irreversíveis”, diz Pevirguladez.

Ele cita o caso de Pedro Henrique, aluno de 14 anos que cometeu suicídio em agosto de 2024 após sofrer bullying no Colégio Bandeirantes, em São Paulo, diante do bullying por ser negro, gay e bolsista. Bolsista de um programa de inclusão, o adolescente  relatou agressões verbais e físicas e não ter recebido quaisquer apoio da escola e do corpo docente. A investigação foi reclassificada de “suicídio consumado” para “induzimento ao suicídio”, conforme o artigo 122 do Código Penal, que trata da interferência de terceiros no ato.

No livro, ele aborda a solidão da criança negra no ambiente escolar, os estragos provocados pelo racismo recreativo, o cabelo crespo como símbolo de diversidade, a saúde mental de uma criança negra que lida com a violência racial, a reafirmação da identidade negra, como educadores podem combater o racismo no dia a dia escolar, entre outros. Em 13 capítulos, a publicação é focada em pais, educadores e empresários, mas também é de grande utilidade em ambientes escolares.

Allan Pevirguladez é o criador da MPBIA, um projeto musical que originou no lançamento do álbum Música popular brasileira infantil antirracista, que o tem feito percorrer diversas escolas públicas do país, através de oficinas e apresentações musicais. Um dos seus maiores sucessos é a música “O meu cabelo é bem bonito”, que viralizou nas redes sociais em 2022, reunindo mais de 78 mil visualizações no Youtube e 14 milhões no Instagram e também virou livro infantil. No início de cada capítulo do livro, as músicas podem ser acessadas via QR Code.

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Para além das caixas de lápis de cor e não só no setembro Amarelo

O que diz o MEC, para além da criação das caixas de lápis de cor que promovem o colorismo?  A quantas andam as políticas de formação dos professores e a reformulação de disciplinas orientadas para essa mudança de paradigma? Como esses especialistas no assunto avaliam a situação?

A psicoterapeuta e especialista em adolescência, Carolina Delboni, afirma e que há propostas de mediação, focada nas questões socioemocionais dos professores e com cuidados extensivos à saúde mental e existencial de crianças, jovens e colaboradores, respeitando as especificidades e as fases de desenvolvimento de cada faixa etária.

“Quando a criança ou o adolescente se sente protegido e acolhido, fica mais fácil compartilhar suas dores e incômodos com os professores”, afirma. Segundo ela, em algumas escolas, há ações contínuas e permanentes que vão além do Setembro Amarelo, de conscientização e prevenção ao suicídio.

O trabalho vai da formação da equipe pedagógica à elaboração das aulas com temas pontuais em algumas disciplinas, sobretudo com a participação dos alunos. “Porém, essas ações não são comuns na comunidade escolar. Ao contrário, o desafio é constante”, afirma a psicoterapeuta em seu livro As dores da adolescência (Summus Editorial).

Racismo x saúde mental

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), são registrados 14 mil casos de suicídio por ano no Brasil – quase 40 por dia. Isso sem contar com a subnotificação, o que pode elevar o número. O que estarrece ainda mais é que o problema tem cor: brasileiros negros do sexo masculino com idade entre 10 e 29 anos têm uma probabilidade 45% maior de cometer suicídio, segundo pesquisa do Ministério da Saúde. A explicação está relacionada ao sofrimento psíquico provocado pelo racismo estrutural.

O racismo estrutural é algo que você não vê, mas está em tudo. Desde não termos pessoas negras ocupando cargos de chefia nas empresas até o fato de 75% das mortes em operações policiais serem de jovens negros. Uma discriminação enraizada”, diz Daniela Dafner, Doutora em Enfermagem, especialista na questão racial e professora convidada no Instituto de Pesquisa Afro-Latino-Americana (Alari) da Universidade de Harvard .

Crianças negras são vítimas indefesas da desigualdade racial. Nas historinhas infantis ou na TV, ao não ver heróis com a mesma cor de pele, começam a perceber que estão prestes a entrar em um mundo sem lugar para elas. O resultado pode vir sob a forma de baixa autoestima. Mesmo sutis, situações de discriminação na infância tendem a gerar transtornos psicológicos no futuro, como desesperança, tristeza, depressão e ansiedade.

A família, a escola e a comunidade não estão preparadas para cuidar do problema. Na área da saúde, onde atuo há duas décadas, não há capacitação sequer para abordar pacientes negros e ouvir seus relatos. Ainda sobrevêm mitos como “negro é forte” ou “mulher negra é resistente à dor”. Para piorar, profissionais de saúde mental muitas vezes não reconhecem suas próprias atitudes racistas, o que agrava o sofrimento de quem procura ajuda.

‘Se cada um de nós parar para pensar na relação entre a desigualdade racial e a saúde mental, já teremos um mínimo avanço. É um desafio de todos nós para evoluirmos como civilização”, diz Daniela.

Professores desrespeitam a lei em sala de aula

Passados 22 anos, especialistas continuam empenhados na luta para concretizar uma educação antirracista, visto que o cumprimento da Lei 10.639/2003 continua sendo desrespeitado ou se mostra frágil na maioria das escolas brasileiras.

A legislação alterou a LDB n. 9.294/96 em vários artigos, incluindo novos textos para dispor sobre a educação profissional e tecnológica e articular a educação profissional técnica de nível médio com programas de aprendizagem profissional.

Muito embora tenha alterado a LDB em vigor, ela ainda não conseguiu mudar práticas racistas e preconceituosas que atuam tanto na gestão dos sistemas de ensino como em sala de aula“, descreve Eliane Cavalleiro na sétima reedição de Racismo e antirracismo na Educação – Repensando nossa escola (do Grupo e da Selo Negro Edições).

Segundo ela, ainda hoje hoje encontramos profissionais da área que desrespeitam as normas que orientam seu trabalho. “Muitos deles, mesmo diante de inúmeros dados quantitativos e qualitativos que provam como essas práticas se mostram danosas no cotidiano escolar, se recusam a encampar a educação antirracista por considerarem ­na ilegítima. Outros agem assim simplesmente por não desejarem uma mudança substancial no que tange às questões raciais em nossa sociedade”.

‘Não basta ter uma lei tornando obrigatório o ensino’

Existe, por parte dos pais, a cobrança de providências dos educadores? Os livros literários, históricos e educativos estão incluídos na lista de materiais? Os currículos escolares foram adaptados? O que se fez para a capacitação dos professores e equipes técnicas?

Para Luciano Braga, professor da rede pública e coautor de ‘História da África e afro-brasileira em busca de nossas raízes’, existe um problema estrutural na educação que vai desde a formação dos professores nas universidades até as salas de aulas.

Nas faculdades o que se ensina sobre a história da África e sobre os escravizados que foram sequestrados de seus países de origem, sobre as resistências, heróis e heroínas… é muito pouco, isso quando se ensina. Não basta ter uma lei tornando obrigatório o ensino, precisamos ter pessoas que acreditam que mostrar para os educandos as contribuições desses países, dessas pessoas, das culturas são essenciais e transformadoras para o desenvolvimento de nosso país”, afirma.

Ainda segundo ele, o papel do professor para o combate ao racismo no Brasil é extremamente importante, pois as crianças são os pilares de transformação. “As crianças já chegam nos bancos escolares carregadas de olhares estereotipados, preconceituosos e racistas. Esses ideais são frutos de ouvidos atentos a tudo o que ouvem e presenciam em suas casas e nos ambientes em que estão inseridos”.

Por que a Lei ainda não é maciçamente aplicada?

Outros estudiosos do assunto, autores do Grupo e da Selo Negro Edições, apresentam seus pontos de vista sobre porque a Lei ainda não é maciçamente aplicada e os reflexos na sociedade, Para Tatiane Pereira de Souza, Doutora em Ciências Sociais, a implementação da lei ainda é um desafio não somente diante dos retrocessos que tivemos, mas sobretudo, diante do racismo que é tão enraizado em nossa cultura.

Junto à falta de conhecimento sobre África, sua história, culturas e descendência negra, há um desinteresse motivado pela educação racista que insiste em estruturar práticas, currículos e instituições”, diz a professora do Ensino Básico e Fundamental. e coautora de ‘Mulher negra e ancestralidade’.

Ela sustenta que, além da mudança de mentalidade, é preciso realinhar as políticas públicas destinadas a educação antirracista e ao ensino de história e cultura africana e afro-brasileira. “A reconstrução está sendo feita, mas o trabalho ainda é longo e árduo para atingir todas as camadas da sociedade brasileira”.

Para Dagoberto José Fonseca, antropólogo e docente da Unesp Araraquara, coordenador da coleção ‘África, presente! Negritude e luta antirracista’, o descumprimento da lei atesta mais uma vez “os nítidos racismos epistêmico, institucional e semântico-simbólico-cognitivo que se vive no Brasil como se demonstra a educação brasileira do passado e do presente”.

São 22 anos da Lei 10.639, a mais importante lei da história da República à medida em que procurou inserir na educação brasileira a maioria de sua população, a africana e afro-brasileira (negra) como aquela que tem que contar a história e a cultura do País, mas que no passado foi escravizada, violentada, silenciada pela violência branco-escravista”.

Estudos comprovam resultados da mediação escolar

A situação é preocupante também fora do Brasil, como revela a pesquisadora espanhola Maria Carme Boqué Torremorell em seu livro “Mediação de conflitos na escola” ao analisar os “incontáveis estudos” realizados tanto em seu país quanto internacionalmente.

Segundo ela, os resultados altamente positivos do investimento em mediação escolar se referem à pacificação do clima da instituição, ao aproveitamento do tempo escolar – com o consequente aumento dos resultados de aprendizagem -, ao desenvolvimento e à aquisição de múltiplas competências individuais, ao aumento da consciência de grupo, à solidariedade entre colegas, ao fortalecimento docente, à participação das famílias ou à prevenção da violência. 

Por outro lado, prossegue ela, percebe-se que “um bom número de programas de mediação foi aplicado de maneira simplificada e precária e sustentado por uma formação elementar e recursos escassos”. De acordo xom a educadora espanhola, “limitam-se a um tipo de mediação sui generis muito diluída, que explora de maneira restrita esse mecanismo de gestão positiva de conflitos, o qual, além de resolver problemas interpessoais, deve educar e preparar as pessoas que dele participam para que sejam capazes de enfrentá-los em paz ao longo da vida.”

Publicação ensina escolas a avaliar suas práticas antirracistas

Para Ednéia Gonçalves, da Ação Educativa, a relação entre qualidade da educação e o racismo no Brasil é muito mais profunda do que se imagina”. “As escolas onde o preconceito e a discriminação são mais evidentes apresentam as piores médias na Prova Brasil”, acrescenta, referindo-se à avaliação educacional desenvolvida anualmente pelo governo federal em todas as escolas de Ensino Fundamental.

Segundo a especialista, é fundamental provocar o debate público sobre questões geralmente silenciadas nas escolas e na comunidade, tornando mais preciso o significado, a corresponsabilidade e as implicações da construção de uma educação antirracista no cotidiano das instituições educacionais.

O racismo existe, persiste e se reinventa, está presente entre nós. É necessário nos dispormos a reeducar nossos sentidos para reconhecê-lo, e atuar para superá-lo, bem como outras discriminações presentes na sociedade e nas escolas, sejam elas contra mulheres, pessoas LGBTQIA+, indígenas, pessoas com deficiências, nordestinos, migrantes, entre outras”, reitera.

A OnG criou a metodologia que deu origem à publicação “Indicadores de Qualidade na Educação – Relações Raciais na Escola – Antirracismo em Movimento”, voltada às escolas que desejam fazer uma autoavaliação sobre as práticas antirracistas adotadas ou não pela instituição. A metodologia permite que qualquer escola possa se autoavaliar, de acordo com a experiência, as condições, o território e a realidade de cada rede de ensino.

Para o diagnóstico, a publicação propõe um conjunto de perguntas que abordam sete dimensões: relacionamento e atitudes racistas; currículo e prática pedagógica; recursos e materiais didáticos; acompanhamento, permanência e sucesso; a atuação dos profissionais de educação; gestão democrática e participação; para além da escola: a relação com o território.

Indicadores de Qualidade na Educação – Relações Raciais na Escola – Antirracismo em Movimento

“Indicadores de Qualidade na Educação – Relações Raciais na Escola – Antirracismo em Movimento” – criados pela Ação Educativa, é um instrumento por meio da qual a comunidade escolar julga a situação de diferentes aspectos de sua escola, identifica prioridades, estabelece planos de ações, implementa e monitora seus resultados.

Além de questionários voltados à comunidade escolar, a versão atualizada dos Indicadores orienta a realização de plenárias e grupos de trabalho, abordando os desafios para a superação do problema, com propostas para um Plano de Ação Escolar.

Houve também a publicação em 2013 dos Indicadores da Qualidade na Educação – Relações Raciais na Escola, que agora foi atualizada com a nova versão Antirracismo em Movimento. Essa nova edição – lançada em outubro de 2024 –  também inclui materiais de apoio, como vídeos sobre a participação da comunidade escolar na luta contra o racismo, vídeo sobre as relações raciais Brasil e África do Sul e dez cartazes de Afro-brasilidades.

A publicação foi desenvolvida com apoio do Projeto SETA, que se une a Unicef, Ministério da Igualdade Racial e Ministério da Educação, parceiros desde a primeira edição. O manual está disponível no site da Ação Educativa. Com apoio técnico da Faculdade de Educação da USP e da Universidade Federal da Bahia (UFBA), a iniciativa também é uma contribuição para a retomada dos esforços nas políticas públicas comprometidos com a Lei 10.639/2003

Além da edição atualizada dos “Indicadores de Qualidade na Educação – Relações Raciais na Escola – Antirracismo em Movimento”, a ONG Ação Educativa é autora de outros instrumentos específicos para níveis de ensino e temáticas: Indicadores da Qualidade na Educação – Ensino Fundamental, Indicadores da Qualidade na Educação – Educação Infantil e Indicadores da Qualidade na Educação – Educação Médio. 

Manual Prático de Educação Antirracista vai às escolas

“Manual Prático de Educação Antirracista é uma leitura indispensável para combater o racismo institucional”, diz o professor carioca Allan Pevirguladez.  Segundo o autor, o objetivo é auxiliar pais, educadores e empresários a promoverem uma relação mais saudável, inclusiva e com equidade para todos, dentro de seus ambientes de convivência, “sem espaço para o racismo performar com tranquilidade”.

Ele trata do racismo corporativo nos capítulos “Racismo que nos atravessa independentemente de quem somos” e “O mundo corporativo também precisa ser antirracista”. 

É essencial que CEOs e altas lideranças estejam engajados em implementar programas antirracistas dentro de suas organizações. Isso fará uma diferença enorme na performance e imagem da empresa a médio e longo prazo, pois uma empresa compromissada com a diversidade racial e a inclusão em quadro de funcionários e colaboradores está contribuindo com um mundo mais saudável e com equidade”, explica Pevirguladez.

Consultor antirracista do Instituto Vini Junior, além de cantor, Pevirguladez tem influenciado pedagogos, professores, psicólogos e pediatras com sua prática de ensino, sendo também objeto de estudo de trabalhos acadêmicos. Ainda em 2023, a MPBIA foi condecorada pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro com a Medalha Pedro Ernesto, a maior honraria da casa.

Com Assessorias

 

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