A escalada de casos de transtornos mentais no ambiente de trabalho está com os dias contados. O cenário, que já é preocupante, ganha ainda mais relevância diante do recente adiamento da obrigatoriedade de implementação da nova NR1, que trata da capacitação e treinamento em saúde e segurança no trabalho.

Após muitas especulações, a vigência da atualização da Norma Regulamentadora nº 1 (NR1), que estabelece diretrizes para a avaliação e gestão de riscos psicossociais – que incluem estresse crônico, assédio e burnout – ficou mantida para começar no dia 26 de maio. Porém, as empresas terão mais um ano para se adequar à nova norma.

O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) decidiu no último dia 24 de abril que a norma será aplicada de forma orientativa e educativa até maio de 2026. Durante esse período, as empresas não serão autuadas. O adiamento da vigência da NR-1 vinha sendo aguardado por entidades de classe e sindicatos e deve servir para o governo publicar as diretrizes detalhadas de aplicação e fiscalização da norma.

Para especialistas, o novo prazo não deve ser entendido como “folga” ou alívio para as empresas, mas ser usado de forma estratégica como oportunidade para implantar mudanças estruturais. “Estamos adiando o inevitável. Mesmo assim, é importante que as empresas saibam que esse movimento não deve ser encarado como uma pausa, mas como uma oportunidade estratégica para se prepararem adequadamente”, diz a psicóloga Bruna Antonucci, no artigo abaixo.

Adiamento não reduz urgência do tema

Segundo Patricia Barboza, sócia-fundadora e head da área trabalhista do CGM Advogados, o adiamento dá mais tempo para as empresas se adaptarem, mas não reduz a urgência do tema. Segundo ela, as organizações devem se comprometer com ambientes de trabalho mentalmente seguros.

O novo cronograma não muda a natureza do desafio: ambientes de trabalho precisam ser mentalmente seguros, e isso exige mais do que boas intenções. Do ponto de vista estratégico, as empresas que tratarem o novo prazo como ‘folga’ perderão tempo. É hora de sair da lógica do mero cumprimento das normas para entrar na lógica da transformação”, afirma.

De acordo com a especialista, por enquanto, cada empresa está fazendo do seu jeito – mas já estão sendo orientadas sobre as melhores práticas. “Uma dica de ouro que costumamos dar é: tem que treinar a gestão. O trabalho do gestor, mais do que cobrar metas, de ser ‘babá de adulto’, é inspirar as pessoas. É ser o ponto de apoio e a alavanca para as pessoas serem a melhor versão delas no ambiente de trabalho”, destaca Patricia.]

Saúde mental como responsabilidade organizacional

Para o médico psicanalista André Fusco, especialista em Ergonomia Mental e consultor de saúde mental corporativa, a decisão do governo revela um cenário em que a saúde mental ainda está em fase embrionária nas organizações.

O adiamento foi justificado pelo argumento de que as empresas ainda não estão preparadas. E, de fato, não estão. Mas a urgência não pode ser adiada. Se as empresas não estão prontas, precisamos nos perguntar: prontas para quê? Para preencher questionários ou para rever regras, metas, práticas de gestão e culturas que produzem sofrimento?”, provoca André Fusco.

De acordo com Fusco, o atraso na aplicação da norma não pode significar um atraso na compreensão da saúde mental como responsabilidade organizacional. “Muitas empresas já fazem ações interessantes de conscientização e oferecem benefícios corporativos. Mas continuam avaliando pessoas com base em metas individuais, estimulando competição e mantendo sistemas que geram sobrecarga”.

O adiamento da NR1 precisa ser mais do que uma prorrogação no papel — tem que ser um marco de mudança na mentalidade corporativa. Caso contrário, continuaremos aplicando questionários em ambientes inseguros, pedindo empatia a gestores sem ferramentas e cobrando resiliência de trabalhadores em estruturas adoecedoras”, ressalta Dr. André Fusco.

O especialista destaca trecho do Guia de Gestão de Riscos Psicossociais publicado pelo próprio MTE, que diz: ““Os fatores de risco psicossociais estão relacionados diretamente com a organização do trabalho” (p. 5). Para ele, essa afirmação deveria ser o ponto de partida das empresas: “O problema não está no trabalhador doente, mas no ambiente que o adoece.”

Para o especialista, a NR1 representa  um convite e uma responsabilidade  para que as empresas assumam o papel de protagonistas na promoção da saúde mental no trabalho. “Mais do que cumprir normas, é hora de reimaginar o trabalho como um espaço de desenvolvimento humano e coletivo”, finaliza.

Estamos falando mais sobre ansiedade, depressão e até Burnout, mas seguimos tratando apenas os sintomas. A NR1 propõe um avanço: reconhecer não só a pessoa adoecida, mas os ambientes adoecedores. É isso que ainda falta. Não se trata de punir ou buscar culpados. Estamos falando de uma mudança estrutural muito positiva”, afirma

Ergonomia Mental: uma mudança estrutural

Para Fusco, a nova NR1 faz com a saúde mental o que já vimos acontecer com a ergonomia física: deixar de adaptar o trabalhador ao ambiente e começar a transformar o ambiente para que ele não adoeça o trabalhador, como observar o posto de trabalho, a altura do monitor, a quantidade de toques ao digitar, o apoio para os cotovelos e entre outras condições.

No entanto, o desafio da saúde mental no ambiente de trabalho é ainda maior e exige uma análise qualitativa da raiz do problema. Para além de tratar o doente, é preciso identificar o que está adoecendo essas pessoas para evitar novas vítimas. Esse desafio é muito maior do que o do adoecimento osteomuscular”, complementa o especialista.

Na opinião do especialista, a mudança na norma trabalhista pede uma nova abordagem: a Ergonomia Mental, conceito focado na organização do trabalho que propõe repensar políticas, processos e práticas organizacionais para reduzir o adoecimento psíquico e aumentar o engajamento de forma sustentável.

Ergonomia é buscar o maior conforto para a melhor produtividade. No caso da Ergonomia Mental, trata-se de interferir nas regras do trabalho para que ele tenha sentido e gere saúde, e não apenas seja algo a ser tolerado”, explica André Fusco.

Nesse contexto, o Dr. Fusco propõe uma mudança de abordagem baseada na Ergonomia Mental. “As empresas que souberem aplicar os princípios da Ergonomia Mental, por outro lado, terão equipes mais engajadas, saudáveis e produtivas, com menos rotatividade, processos trabalhistas e sinistralidade nos planos de saúde”, complementa.

O psicanalista apresenta cinco caminhos para transformar a organização do trabalho em um ambiente verdadeiramente saudável:

1. Antes de medir, promova segurança psicológica

Questionários de clima organizacional ou avaliações psicossociais são fundamentais, mas só funcionam quando os trabalhadores sentem que podem responder com sinceridade, sem medo de retaliações. Criar um ambiente seguro para a escuta é pré-requisito para qualquer diagnóstico eficaz. “Você pode aplicar um questionário validado e reconhecido no mercado, mas se as pessoas não se sentirem seguras, elas vão esconder o que realmente vivem, levando a resultados enviesados. A segurança psicológica é a base para que qualquer ação de saúde mental seja eficiente”, enfatiza Fusco.

2. Revise regras e processos que produzem sofrimento psíquico

Muitas vezes, o sofrimento mental no trabalho não é fruto de fragilidade individual, mas consequência direta de regras internas nocivas: metas inatingíveis, sistemas de punição, cultura de controle ou ausência de escuta ativa. Essas estruturas precisam ser revistas com um olhar crítico e comprometido com a saúde coletiva. “O sofrimento no trabalho é frequentemente gerado pelas próprias regras organizacionais, portanto, a mudança deve ser estrutural: revisar políticas, processos, planos de carreira, metas e práticas que promovem riscos psicossociais. A partir disso, dar autonomia para que os profissionais atuem nessas causas, não apenas nos sintomas”, explica o Dr. André Fusco.

3. Incentive a colaboração para reconstruir o sentido do trabalho

Ambientes competitivos ao extremo estimulam o isolamento, minam a confiança entre colegas e rompem vínculos que sustentam o sentimento de pertencimento. A colaboração, por outro lado, reconstrói o sentido de utilidade e promove a saúde mental por meio do reconhecimento mútuo. “A colaboração é o antídoto da lógica do ‘cada um por si’, “vencer na vida”, ou “se destacar”. Quando reconhecemos o valor do outro e construímos juntos, resgatamos o sentimento de utilidade, e é justamente isso que dá sentido ao trabalho. A competição pode gerar resultado no curto prazo, mas no longo prazo, adoece”, afirma o especialista.

4. Use a análise qualitativa para entender o que os números escondem

A Ergonomia Mental exige um olhar aprofundado para o trabalho real. Levantamentos quantitativos apontam tendências e mapas de calor, mas não revelam causas. “Se eu aplicar um questionário e aparecer um alto risco para sobrecarga, o que normalmente surgem são planos de ação que dizem o que a pessoa deve fazer para suportar essa sobrecarga, mas não se fala das causas organizacionais, como rankings de competição, falta de pessoal, medo de demissão e processos que levam a retrabalho, por exemplo. Esses são fatores que só podem ser identificados com uma análise qualitativa do contexto organizacional por meio do apoio de especialistas em saúde mental no trabalho para cocriação de soluções. Sem essa etapa, qualquer plano de ação será superficial”, diz Fusco.

5. Promova identidade profissional e propósito

O trabalho saudável é aquele que permite que o profissional se reconheça no que faz e que sinta que sua contribuição tem valor. “Quando alguém se vê como peça substituível, desconectada do resultado ou invisível dentro da organização, o trabalho se torna um fardo e apenas um meio de sobrevivência. Mas quando a pessoa sente que aquilo que faz é útil, belo pela forma única e engenhosa que produz e é reconhecido por essas características, ela se reconecta com sua identidade profissional. Isso é fonte de saúde mental, e é isso que precisamos promover para um trabalho saudável, sustentável e gratificante”, acrescenta o especialista.

Com Assessorias

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