Um estudo inédito, que entrevistou 90 pessoas que vivem na região conhecida como Cracolândia, pela concentração de usuários de drogas, na capital paulista, mostrou que 70% delas já foram internadas pelo menos uma vez. A equipe de pesquisadores também localizou usuários de crack que foram internados mais de 30 vezes. Na avaliação dos pesquisadores, ambas as situações indicam que os especialistas que defendem o tratamento nos moldes atuais estão no caminho errado.

Os dados constam do relatório A ‘Cracolândia’ pelos usuários: como as pessoas que vivem nas ruas do território percebem as políticas públicas, divulgado nesta sexta-feira (25), pelo Núcleo de Estudos da Burocracia da Fundação Getulio Vargas (NEB/FGV), pelo Centro de Estudos da Metrópole da Universidade de São Paulo (CEM/USP) e pelo Grupo de Estudos (in)disciplinares do Corpo e do Território (Cóccix). 

As entrevistas foram feitas em julho e agosto de 2022 e, como os autores do estudo esclarecem, ajudam a explicar muito sobre a eficácia dos tratamentos em vigor e sobre a população que vive no local. A maioria dos participantes da pesquisa, mais de 80%, é de homens negros, com idade entre 30 e 49 anos. A parcela que declarou fazer uso de crack passou de 90%, enquanto a parcela restante disse consumir álcool regularmente.

Os pesquisadores também quiseram compreender que relações interpessoais os usuários mantêm, mesmo vivendo na região, e captar sua percepção sobre o serviço de saúde oferecido. Uma descoberta que evidencia que a forma como o modelo foi pensado se distancia do que ocorre na prática é o fato de que muitos entrevistados veem a internação como um local de passagem, que proporciona descanso e recuperação física, mas não significa uma solução para o uso de drogas, ou seja, não cumpre sua finalidade original.

A maioria (69%) dorme nas ruas e quase metade (40%) disse que está na região por vontade própria. De acordo com os pesquisadores, essa parcela tem a Cracolândia como sua casa ou permanece na área por se sentir bem nela. A publicação ressalta que metade dos participantes segue em contato com a família. Outro dado importante é o de que mais de dois terços realizam atividades produtivas regularmente, como reciclagem e venda de objetos.

88% dos beneficiários de ONG de SP já buscaram tratamento contra drogas

Levantamento teve como base estudo realizado para compreender os beneficiários do programa da Fundação Porta Aberta

Outra pesquisa divulgada em setembro revelou que 88% dos usuários da Fundação Porta Aberta – que atende dependentes químicos de São Paulo que buscam a recuperação – já buscaram algum tipo de tratamento. Entre eles, há dois grupos distintos: aqueles beneficiários que procuraram apenas uma vez (34%) ou aqueles que são reincidentes (62%). Praticamente todos estão em tratamento no momento.

A maioria está atualmente em tratamento para dependência química e o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) é o local de referência para 87% dos que precisam de ajuda; clínicas de dependência química foram apontados por 33% deles; e 31% disseram que já buscaram ajuda nos Narcóticos/Alcoólicos Anônimos. 

 

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Um ponto que merece ser destacado é que apenas 17% afirmaram que procuraram internações em hospitais. Essas pessoas afirmaram, na maioria (52%), que esse tipo de tratamento “ajudou pouco”, “não ajudou” ou até mesmo “atrapalhou”, demonstrando rejeição a esse tipo de tratamento, mesmo que esteja em planos do governo, mas, ainda assim, são os que os beneficiários sentem ter ajudado menos.

 

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7 entre 10 beneficiários de ONG de SP já estiveram em situação de rua

A pesquisa mostrou que 70% dos beneficiários atendidos pela Fundação Porta Aberta já estiveram em situação de rua em algum momento da vida. Para grande parte, essa experiência é longa: seis em cada dez entrevistados estiveram mais de dois anos em situação de rua. Atualmente, quatro em cada dez entrevistados estão morando em alguma instituição social ou de tratamento, além de que vem aumentando o número daqueles que moram em casa alugada ou própria, trazendo mais segurança para suas vidas.

A pesquisa foi realizada pela H2R Insights & Trends, com o objetivo principal de compreender a realidade dos beneficiários da Fundação Porta Aberta, a trajetória dessas pessoas, entendendo o histórico e impactos em suas vidas, a fim de orientar estratégias para os projetos realizados pela ONG. que realiza um trabalho de reinserção social e produtiva de pessoas em situação de vulnerabilidade e risco social.

O estudo identificou que oito em cada dez beneficiários que passaram pela situação de viver na rua são homens, entre 30 e 59 anos de idade e pertencentes à cota PPI (pretos, pardos e indígenas – designação da Lei de Cotas do governo federal).

De acordo com os dados, 71% dos entrevistados se consideram pretos ou negros, pardos e indígenas e apenas um terço se autodesignou branco, demonstrando que a grande maioria dos beneficiários da FPA são parte de comunidades historicamente em posição de vulnerabilidade social.

Família e programas sociais –  Ainda considerando o total de respondentes, 71% deles têm filhos e, entre aqueles que têm filhos, 48% têm pelo menos um dependente financeiro.  O levantamento mostrou que 54% dos beneficiários contam com fonte de renda complementar, sendo que o auxílio do governo, o Bolsa Família, é de onde vem a maior parte da ajuda (61%).

Já entre os que trabalham (36%), as atuações são as mais variadas e voltadas à serviços gerais. Dos 46% sem qualquer tipo de renda, sete em cada dez são homens entre 30-59 anos de idade (82%); nove em cada dez são alfabetizados e três moram em instituições sociais.

Educação – Outro ponto descoberto pelo levantamento foi que a baixa escolaridade é ponto nevrálgico dessa situação, pois 35% dos entrevistados têm o ensino fundamental incompleto e apenas 8% ainda estão estudando. Observa-se que, ainda assim, 90% dos entrevistados se consideram alfabetizados.

Apesar da baixa adesão aos estudos, há uma vontade de retomá-los por seis em cada dez beneficiários. Os que declaram que continuam estudando estão fazendo curso técnico, ensino básico ou CIEJA, o que significa que existe realmente a vontade de recuperar o tempo perdido e que estão recomeçando ou começando do zero.

Preconceito contra usuários de drogas

O preconceito é ainda um sentimento muito forte para essas pessoas e o fato de a maioria ter vivido em situação de rua faz com que ele aumente ainda mais. E essa não é uma percepção de poucos, pois 77% deles sentem que já sofreram algum tipo de preconceito em suas vidas, sendo que viver em situação de rua foi o principal motivo pelo qual o vivenciaram, seguido de classe social e pelo local onde vivem.

Segundo a pesquisa, o preconceito e o estigma direcionados aos usuários de substâncias influenciam suas relações em várias áreas. Na esfera pessoal, pessoas desconhecidas e familiares são os principais agentes de discriminação, enquanto na esfera institucional o preconceito vem principalmente das Polícias Militar, Civil e da Guarda Civil Metropolitana, além do mercado de trabalho.

Importante pensar que, para os beneficiários, as questões que são, de certa forma, mais faladas, como raça, gênero, sexualidade, aparência, deficiência física etc. são presentes em suas vidas, mas moradia e classe social são pontos que mais se destacam quando falamos de discriminação com esse público”, conta a diretora da H2R.

Quando se olha o preconceito no grupo pessoal, quem tem filho sofre mais, principalmente entre os familiares e companheiros românticos. Já no grupo institucional, a questão étnica prevalece, sendo o alvo principal os pretos/negros.

Conforme o estudo da H2R e da FPA, sete em cada dez pessoas entrevistadas convivem com os familiares regularmente ou de vez em quando. Perguntados como se sentem em relação a pedir ajuda aos familiares, seis em cada dez sentem que podem pedir ajuda a seus familiares enquanto os outros quatro sentem que não podem contar com este tipo de ajuda. “Sem dúvida, o apoio familiar desempenha papel crucial na vida de uma pessoa que enfrenta discriminação por preconceitos.

Uso de substâncias: as drogas mais procuradas

Em média, os entrevistados citam que já utilizaram cinco substâncias diferentes e, hoje, em média, duas substâncias ainda são utilizadas mesmo que de vez em quando. Álcool, tabaco, maconha e cocaína são as substâncias mais usadas atualmente, seguido por crack e remédios em geral. De outro lado, as substâncias que já foram usadas e quase abandonadas foram Ecstasy, LSD, heroína/Fentanil, Ketamina, Chá de Trombeta e K2.

 

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O padrão de uso de substâncias psicoativas varia de acordo com a substância. Tabaco é utilizado todos os dias, assim como remédios em geral. Mais da metade utiliza maconha diariamente. Álcool tem uma frequência de uso muito variada, mas há dois em cada dez beneficiários que o utilizam todos os dias. Mesclado (uma mistura de maconha com crack), cocaína e o próprio crack parecem ter um padrão de uso parecido e mais esporádico.

Existe a consciência entre praticamente todos os participantes (91%) de que as substâncias tóxicas interferiram negativamente em suas vidas, principalmente no relacionamento familiar, saúde, autoestima, trabalho e relações amorosas. Nesse sentido, as substâncias que mais interferiram negativamente em suas vidas foram o crack, seguido de álcool e cocaína.

Procuramos descrever o perfil sociodemográfico dos usuários de substâncias psicoativas, seu histórico de vida, bem como o impacto que o consumo e a busca por tratamento tiveram em sua trajetória pessoal. Esse é um problema com profundo impacto social, sob os mais diversos pontos de vista”, analisa Alessandra Frisso, diretora da H2R e responsável pela pesquisa. 

Segundo ela, ao conhecer a história dessas pessoas e identificar pontos onde elas convergem, a pesquisa identifica tendências, o que permite que a Fundação Porta Aberta e outras instituições que se dedicam ao combate da dependência química desenhem estratégias.

Para nós foi uma grande oportunidade podermos usar algo que somos especialistas, para a ajudar a FPA a fazer o que ela faz melhor, que é ajudar pessoas. Sabemos que os desafios são muito grandes, imensos, mas ficamos felizes em dar a nossa contribuição”, explica Alessandra.

Fundação Porta Aberta

Desde 2013, a Fundação Porta Aberta contribui com a reinserção social de pessoas em situação de risco e vulnerabilidade social, em especial, as que estão em tratamento do uso nocivo de álcool e outras drogas, promovendo a qualificação profissional e a formação pessoal e cidadã, visando à reinserção social e produtiva.

Atualmente, executa suas atividades em oito Centros de Atendimento no Município de São Paulo.  A FPA conta com um quadro de colaboradores que contempla a multiplicidade de formações acadêmicas e atuações profissionais, valorizando a diversidade cultural, religiosa, etária, étnica, de gênero e de classes sociais, para favorecer um espaço de representatividade, possibilitando a relação transdisciplinar.

Os respondentes da pesquisa participaram de maneira espontânea. Foram abordados 323 beneficiários ativos e inativos da Fundação em sete diferentes Centros de Atendimentos na cidade de São Paulo. A amostra foi construída com base na quantidade e proporção dos beneficiários em cada centro de atendimento.

18 mil atendimentos e oferece ciclo completo de tratamento

Mais de 18 mil atendimentos, uma média de cerca de 2,2 mil por mês, foram realizados no Hub de Cuidados em Crack e Outras Drogas de São Paulo, entre abril de 2024, quando foi inaugurado, até novembro de 2023. Mais da metade eram frequentadores das Cenas Abertas de Uso – como são chamadas regiões como a Cracolândia – especialmente na região central da capital paulista, como informou o Governo do Estado.

Até o início de dezembro de 2023, o Hub realizou cerca de 7 mil encaminhamentos, sendo 4 mil para Hospitais Especializados e 2,4 mil para Comunidades Terapêuticas legalmente constituídas. Outros 702 pacientes apresentaram demandas clínicas e foram encaminhados para Prontos Socorros, Unidades Básicas de Saúde, Ambulatórios Médicos de Especialidades ou Hospitais Gerais.

A unidade conta com uma equipe de 380 profissionais especializados em dependência química, com o desenvolvimento de abordagens e escuta qualificada na Cracolândia e na recepção ativa da unidade. O equipamento oferece desde o acolhimento do usuário de drogas em grupos de auto ajuda, até serviços ambulatoriais que vão da desintoxicação do corpo a atendimentos intensivos, tudo a partir de avaliação médica. O paciente também pode ser encaminhado para diversos tipos de tratamento, de acordo com seu perfil e necessidade.
Com essa nova porta de entrada, o Estado de São Paulo passa a oferecer tratamento em toda sua linha de cuidados para que pessoas dependentes químicas tenham a oportunidade de recuperação para sua autonomia e estabilidade. Os pacientes passam por uma avaliação multidisciplinar de triagem inicial no Hub e são encaminhados para algum tipo de equipamento para o tratamento, de acordo com as condições clínicas e de desintoxicação de cada atendido”, informou o Governo de São Paulo.

Entenda a rede de serviços para dependentes químicos em SP

Com o objetivo de oferecer tratamento e acompanhamento psicológico para dependentes químicos em recuperação e seus familiares, o Governo do Estado de São Paulo disponibiliza uma rede de serviços para a população, por meio de equipamentos da Secretaria do Desenvolvimento Social e da Secretaria da Saúde.

Além de modelos já existentes, como as Comunidades Terapêuticas, a atual gestão inaugurou em 2023 outros dois serviços inéditos no estado: as Casas Terapêuticas e o Espaço Prevenir. O estado ainda conta com outros equipamentos já existentes de acolhimento e tratamento, como as Casas de Passagem e as Repúblicas.
Casas Terapêuticas – Estes espaços servem como uma alternativa às comunidades terapêuticas. O serviço é voltado à moradia, reinserção social e busca pela autonomia dos acolhidos, especialmente aqueles em situação de rua. A metodologia inovadora está estruturada em quatro fases distintas, ofertadas em um complexo que compreende três residências integradas.

Foram inauguradas ao longo do ano quatro Casas Terapêuticas: duas na capital paulista, uma em Guarulhos e outra em Osasco. Nestes locais, a pessoa acolhida passa por atendimentos com psicólogos, assistentes sociais, pedagogos, terapeutas ocupacionais, entre outros profissionais, que trabalham habilidades sociais, um novo projeto de vida e o alcance da autonomia de renda e moradia. O período de intervenção pode durar entre 15 e 24 meses. Cada conjunto de casas tem capacidade para atender 45 pessoas.

Espaço Prevenir – O equipamento é voltado para o atendimento e apoio a familiares de dependentes químicos e também para pessoas que já completaram o tratamento em comunidades ou casas terapêuticas. Foram inaugurados quatro espaços: em São José dos Campos, São José do Rio Preto, Ribeirão Preto e na capital. Cada equipamento é capaz de atender 200 pessoas por mês. O local dispõe de uma equipe multidisciplinar que prestará auxílio psicoemocional para a população. O foco é fortalecer os vínculos familiares e prevenir recaídas.

O equipamento oferece dinâmicas psicossociais, terapias em grupos, consultas com psicólogos e atividades de cultura e lazer. Além disso, a equipe de profissionais dá orientações aos familiares sobre como agir em relação ao ente envolvido com as drogas e pode, inclusive, sugerir medidas como a internação. Os profissionais ainda ajudam os egressos a montar currículo e procurar emprego.

Ações de segurança

Além da abordagem psicossocial, o Governo de São Paulo também atua na segurança na região central da capital, especialmente nos fluxos da chamada Cracolândia. A região contou com um reforço de 120 policiais militares no efetivo.

Entre o começo de abril e o final de novembro, o Sistema de Diagnóstico das Cenas Abertas de Uso de Entorpecentes, criado pela Secretaria da Segurança Pública, registrou queda de 51% na ocorrência de roubos e 37% de diminuição nos furtos na região central. Desde o início do mapeamento, 1.758 pessoas foram detidas no local, sendo 514 foragidos da Justiça.

Da Agência Brasil, Fundação Porta Aberta e GovSP

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