No Brasil, o aborto é crime, mas permitido em três casos: má formação do cérebro do feto, risco à vida da mulher ou estupro. Entretanto, o Projeto de Lei 1904/2024, já conhecido ‘PL do Aborto’, pretende alterar o Código Penal brasileiro, estipulando uma idade gestacional limite para os casos legais previstos. O texto equipara aborto após 22 semanas ao crime de homicídio, mesmo em casos de estupro, e prevê aumento da pena para vítimas que abortarem após este período.

O tema tem gerado discussões acaloradas por todo o país, sobretudo porque criminaliza meninas vítimas de violência sexual que acabam engravidando de seus agressores. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, uma menina ou mulher é estuprada a cada oito minutos no país. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, aproximadamente 75 mil pessoas foram estupradas em 2022, sendo 88,7% mulheres e 61,4% crianças até 13 anos de idade.

Diante da pressão das ruas e de diversas entidades no Brasil inteiro, o autor do projeto, deputado Sóstenes Cavalcante (PL/RJ), da bancada evangélica, chegou a mencionar a possibilidade de incluir acompanhamento psicológico obrigatório para adolescentes estupradas que optem pelo aborto nesses casos.

Para Fatima Macedo, psicóloga especializada em Psicologia da Saúde Ocupacional e Terapia Cognitivo-Comportamental, esse fato levanta questões importantes sobre a assistência às vítimas de estupro e os impactos dessa legislação na saúde mental das mulheres.

“A análise deve ser feita do ponto de vista médico, abordando principalmente os efeitos psicológicos e sociais sobre as vítimas.  Além dos impactos psicológicos, há possíveis consequências na empregabilidade futura dessas meninas, que podem encontrar dificuldades para serem reinseridas no mercado de trabalho”, ressalta.

Segundo ela, a estigmatização e os traumas associados ao estupro e ao aborto podem afetar profundamente o desempenho educacional e profissional, limitando as oportunidades de desenvolvimento e sucesso a longo prazo.

Impor uma gravidez resultante de estupro a uma menina agrava seu trauma, destrói sua autoestima e confiança em adultos e profissionais de saúde

Para a psicóloga perinatal Rafaela Schiavo, autora de centenas de estudos científicos sobre saúde mental materna, o PL será um retrocesso para a saúde pública, caso seja aprovado – o texto saiu de pauta, mas deve retornar para discussão no segundo semestre, como anunciou o presidente da Câmara, Artur Lira.

A especialista esclarece os efeitos dessa proposta na saúde mental de meninas e mulheres, especialmente vítimas de violência sexual:

A proposta de lei representa um retrocesso para a saúde pública das meninas e mulheres?

Sim. A cada oito minutos, uma menina com menos de 14 anos é sexualmente violentada no Brasil. Muitas vezes, esses abusos ocorrem dentro de casa, e essas meninas não conseguem relatar o abuso ou identificar a gravidez até que os sintomas físicos surjam, geralmente próximo ou além das 22 semanas. Uma gravidez nessa idade é extremamente prejudicial.

Quais são as barreiras que as jovens enfrentam atualmente para acessar o aborto legal?

Muitas. Atualmente, a lei brasileira permite o aborto em casos de violência sexual, risco de vida para a mãe e anencefalia. Mesmo nesses casos, as jovens enfrentam barreiras significativas, como a ‘objeção de consciência’ de profissionais de saúde, que as obriga a buscar alternativas em outras cidades ou estados, muitas vezes inviáveis.

Quais são os impactos da ‘objeção de consciência’ dos profissionais de saúde?

São prejudiciais. Objeção de consciência é quando um profissional de saúde se recusa a realizar um aborto devido a suas crenças pessoais ou religiosas. Isso força muitas meninas a buscar o procedimento em outras cidades ou até em outros estados, enfrentando grandes dificuldades para exercer seu direito e expondo-se a mais traumas, como ouvir os batimentos cardíacos do feto durante a ultrassonografia.

Quais são as consequências psicológicas de impor uma gravidez resultante de estupro a uma menina?

São devastadoras. Impor uma gravidez resultante de estupro a uma menina agrava seu trauma, destrói sua autoestima e confiança em adultos e profissionais de saúde e pode levar a consequências graves para sua saúde mental e bem-estar.

Como o machismo estrutural afeta a questão do aborto e o acesso das meninas aos seus direitos?

Afeta profundamente. Homens muitas vezes acham que devem controlar o corpo da mulher, que têm o direito de decidir o que fazer ou não. Mesmo o direito ao aborto legalizado não é garantido de fato, com profissionais tentando convencer a menina a não abortar.

Como as consequências legais do PL do Aborto comparam com as penas para estupradores?

Injustas. Essa lei pode fazer com que mulheres que busquem um aborto enfrentem penas mais severas do que os estupradores. É inadmissível que uma mulher sofra mais tempo presa do que o agressor. A lei, se aprovada, será um retrocesso enorme e afetará a saúde mental delas para o resto de suas vidas.

Como a falta de apoio institucional afeta as meninas e mulheres que buscam o aborto legal?

É muito desgastante. Elas enfrentam custos adicionais com viagens, falta de apoio institucional e o trauma de passar por essa experiência longe de casa.

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Também para o advogado criminalista Antonio Gonçalves, sócio do escritório homônimo, o PL 1904/2024 é um retrocesso, tanto penal quanto constitucional. Ele alerta para o risco de mais casos de violência sexual contra meninas, caso o projeto seja aprovado, já que a menina ou mulher que engravidar de um estuprador pode receber pena maior do que a de seu algoz.

Devemos considerar que, no Brasil uma mulher é estuprada a cada 8 minutos e que 60% são crianças, meninas de até 14 anos, o que é considerado um estupro de vulnerável. Com esse Projeto de Lei podemos ter um aumento da gravidez dessas crianças, porque há claramente um endurecimento penal não para o estuprador, mas sim para a vítima”, avalia.

De acordo com o especialista, a partir de uma análise penal, o Artigo 128 do Código Penal, que autoriza o aborto legal em decorrência de estupro, cai em desuso se este projeto for aprovado. Hoje permitido em três situações específicas, o aborto no Brasil não prevê limite de tempo para a interrupção da gravidez.

Segundo Gonçalves, o que se observou com o PL é que na prática, se um estuprador for preso e condenado por estupro pode ser preso por algo em torno de até 10 anos. Porém, se uma menina resolve fazer o aborto após a 22ª semana, como prevê o PL, pode ser presa por até 20 anos.

Isso não só vai ao contrário senso do que diz o Artigo 128 do Código Penal como premia a vítima de maneira invertida, quer dizer, a vítima se torna obrigada a ter o fruto do próprio estupro, o que é uma constrição psicológica, emocional e agora física. Então, claramente traz uma contrariedade das normas penais vigentes no Brasil”.

Para o advogado, o projeto permitiria premiar o estuprador em detrimento da vítima, desrespeitando uma norma já consolidada no Código Penal, através do Artigo 128, que autoriza o aborto legal.

Com esse PL a vítima pode não conseguir fazer o aborto e ter que conviver com o fruto do estupro. E, se resolver praticar o aborto, pode ainda ter uma penalização maior do que do próprio estuprador. Assim, há uma clara inversão de valores no Projeto de Lei que contraria os princípios basilares da Constituição Federal e os princípios penais do Código”, finaliza.

Com Assessorias

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