O movimento contra o chamado ‘PL da Gravidez Infantil‘ – também conhecido como PL do Aborto e PL do Estupro – ganhou o país. Diversos órgãos públicos e de saúde, além de entidades que lutam em defesa das crianças, dos direitos humanos e dos direitos reprodutivos das mulheres, vêm se manifestando contra o projeto de lei, aprovado no último dia 12 de junho para tramitar em regime de urgência na Câmara dos Deputados.
Em nota curta, porém, contundente, a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) manifestou-se contra a condução do PL 1904/2024, que caracteriza como homicídio o aborto previsto em lei após 22 semanas de gestação.
Um tema de tamanha importância necessita de uma ampla discussão prévia. Portanto, a Febrasgo solicita que o PL 1904/2024 seja retirado de pauta na Câmara Federal, e se posiciona contra a criminalização da mulher nessa situação de vulnerabilidade“, diz a nota, emitida nesta sexta-feira (14).
Outras sociedades médicas, no entanto, têm evitado se manifestar, já que o projeto de lei, de autoria de um deputado bolsonarista da bancada evangélica, surgiu justamente a partir de uma decisão do Conselho Federal de Medicina (CFM), que proibia o procedimento de assistolia fetal em casos de aborto oriundos de estupro após 22 semanas de gestação.
Se os profissionais de Medicina estão acanhados, o mesmo não se pode dizer dos cientistas brasileiros. No dia 18, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) divulgou um posicionamento informando que se junta a outras entidades para conclamar o Congresso Nacional ao arquivamento do PL 1904/2024, lembrando que, de acordo com o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o projeto de lei é inconstitucional.
De acordo com a ABC, “a ciência mostra que as experiências vividas na infância e adolescência geram impacto irreversível no desenvolvimento físico, emocional e social”. E afirma que o projeto “é uma revitimização brutal das meninas estupradas”, mais uma vez negando a elas o direito à infância e à adolescência digna e segura”. (veja a nota completa aqui)
Órgãos de defesa dos direitos humanos e das crianças também cobram arquivamento
O Conselho Pleno da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB) declarou que o projeto é inconstitucional, inconvencional e ilegal. De acordo com o parecer técnico-jurídico, “a proposta viola os direitos das meninas e mulheres, impondo-lhes ônus desproporcional e desumano”.
Para a Defensoria Pública da União (DPU), a proposta que criminaliza a prática do aborto no caso de gravidez resultante do crime de estupro, é um retrocesso aos direitos humanos das mulheres e à democracia. Além disso, ignora que “a violência sexual contra mulheres e meninas no Brasil é um problema social crescente, que precisa ser enfrentado com seriedade, prioridade e amplo debate pelo Estado Brasileiro”. Veja a nota aqui.
Em ofício ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, com recomendação de arquivamento da proposta, o Conselho Nacional de Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (Condege) também aponta a ilegalidade, inconstitucionalidade e inconvencionalidade no PL 1904.
A nota destaca que o projeto representa “flagrante retrocesso a todos os direitos conquistados por mulheres e meninas ao longo da história”, em especial, crianças e adolescentes que se encontram em situação de vulnerabilidade social e econômica. Veja na íntegra aqui.
Para o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), o projeto representa um “retrocesso aos direitos de crianças e adolescentes, aos direitos reprodutivos e à proteção das vítimas de violência sexual, violando a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e diversas normas internacionais das quais o Brasil é signatário”. (Veja a nota completa abaixo).
Mais de 60% das vítimas de violência sexual têm menos de 14 anos
Também por meio de nota, a Me Too Brasil – organização que atua contra o assédio e o abuso sexual – manifestou-se contra o projeto, que “coloca as vítimas em uma situação de culpabilização e extremo sofrimento”. A organização – que originalmente nasceu nos Estados Unidos – lembra que, no Brasil, mais de 60% das vítimas de violência sexual têm menos de 14 anos.
As crianças serão as mais afetadas pela demora em identificar a gestação. Elas frequentemente têm dificuldade em compreender a violência sofrida e, mesmo quando entendem, muitas vezes não conseguem verbalizar aos mais próximos o que aconteceu”.
Além disso, de acordo com a Me Too Brasil, “a morosidade do Estado em atender e autorizar um aborto nos casos de estupro faz com que muitas dessas crianças ultrapassem as 22 semanas de gestação”.
A organização lembra que, em decisão recente contra uma norma do CFM contra a assistolia fetal após 22 semanas de gestação, mesmo em casos de estupro, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), afirmou que “a legislação não estabelece limitações circunstanciais, procedimentais ou temporais para a realização do chamado aborto legal”.
É vergonhoso e um golpe contra os direitos das mulheres, da infância e da adolescência a manobra do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, ao colocar o PL em regime de votação de urgência. Ao impedir o debate público pelas comissões pertinentes e pela sociedade, Lira desrespeita os direitos de crianças e mulheres”, diz a Me Too.
Ainda de acordo com a organização, “ao invés de trabalhar contra os direitos das crianças, adolescentes e mulheres, o parlamento brasileiro deveria estar voltado para a proposição de leis que previnam a violência sexual e responsabilizem exemplarmente os estupradores”.
#CriançaNãoéMãe ganha apoio de várias entidades
De autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), da bancada evangélica, o PL 1904/2024 quer equiparar o aborto após 22 semanas ao crime de homicídio, inclusive em casos de estupro de mulheres e crianças. O texto prevê que a pena para a mulher e o profissional de saúde que fizer o procedimento, hoje protegido por lei, seja mais dura do que a prevista para o homem que a estuprou.
Petições elaboradas pela Avaaz – comunidade internacional de mobilização online que representa a sociedade civil desde 2007 – e pela organização Criança não é Mãe!- recém-criada no Brasil por entidades de defesa das mulheres e crianças para impedir que vítimas de violência percam seus direitos fundamentais – somam mais de 400 mil assinaturas contrárias ao projeto.
Segundo Bia Calza, coordenadora de campanhas da Avaaz, as petições materializam o desejo da sociedade, sobretudo de mulheres, de serem ouvidas. “Nossa comunidade não aceita o retrocesso de direitos. Pedimos que esse projeto de lei seja arquivado”, disse.
‘PL ataca dignidade de meninas e mulheres’, diz Janja
Ainda em tramitação na Câmara, o projeto tem gerado não apenas mobilização nas redes sociais, como também protestos nas ruas, com pessoas contra a aprovação verbalizando sua indignação em todo o País.
Na última semana, data em que a urgência foi aprovada, manifestantes protestaram em diversas capitais, como São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro, em oposição à penalidade maior para vítimas que para estupradores.
A primeira-dama Janja da Silva disse nesta sexta-feira (14) que o PL “ataca a dignidade de mulheres e meninas” e cobrou do Congresso que aprove ações que assegurem a realização do aborto por meio do Sistema Único de Saúde (SUS) nos casos atualmente previstos em lei.
O presidente do Congresso Nacional e do Senado Federal, Rodrigo Pacheco, afirmou que “equiparar o aborto ao crime de homicídio é uma irracionalidade e que a iniciativa ameaça a ciência do Direito Penal”.
Nesta quarta-feira (19), o movimento Criança Não é Mãe realiza ato simbólico contra o projeto de lei, às 14h, na entrada do Anexo II da Câmara dos Deputados. O ato simbólico, que reivindica o arquivamento do PL do Aborto, reunirá manifestantes da sociedade civil e parlamentares da bancada feminina.
Diante da repercussão histórica e sob forte pressão popular, o presidente da Câmara, Arthur Lira, declarou neste dia 18 que criará uma comissão para debater o tema no segundo semestre.
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Conanda: crianças submetidas a nova violência, obrigadas a gestar e parir
NOTA PÚBLICA DO CONANDA CONTRÁRIA AO PROJETO DE LEI 1904/2024
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – Conanda, instância máxima de formulação, deliberação e controle das políticas públicas para a infância e a adolescência na esfera federal, criado pela Lei nº 8.242 de 1991, é o órgão responsável por tornar efetivos os direitos, princípios e diretrizes contidos no Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069 de 1990.
Pela presente nota, vem expressar profunda contrariedade ao Projeto de Lei 1904/2024, em pauta na Câmara dos Deputados, que busca equiparar o aborto a crime de homicídio em determinados casos, inclusive afastando a excludente de punibilidade prevista na hipótese de aborto no caso de gravidez resultante de estupro, garantido pelo Código Penal brasileiro desde 1940.
Em junho de 2024, a Câmara dos Deputados aprovou o Requerimento de Urgência do Projeto de Lei 1904/2024, o qual representa um retrocesso aos direitos de crianças e adolescentes, aos direitos reprodutivos e à proteção das vítimas de violência sexual, violando a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e diversas normas internacionais das quais o Brasil é signatário.
É imprescindível lembrar que, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2022, 8 em cada 10 vítimas de violência sexual eram crianças e adolescentes e 61,4% das vítimas de estupro tinham no máximo 13 anos. Ainda, os dados demonstram que 2022 foi um ano em que cresceram os índices de todas as formas de criminalidade marcadas pela violência de gênero que atingem centenas de milhares de mulheres e meninas em todo o país.
Com 56.820 vítimas, houve um incremento de 8,6% nos casos de estupro de vulnerável. Ou seja, trata-se de um cenário que deveria atrair a atenção do Congresso no sendo de ampliação da proteção, e não de punir e restringir os direitos de mulheres e, especialmente, de crianças e adolescentes, detentoras da garantia de seus direitos com absoluta prioridade, conforme preconizado pelo artigo 227 da Constituição Federal, em evidente violação ao princípio da vedação ao retrocesso social.
A proposta legislava ignora completamente a realidade das crianças e mulheres que enfrentam situações de estupro e que têm o direito de não serem submetidas a uma nova violência, sendo obrigadas a gestar e parir. Embora a prática de relações sexuais ou atos libidinosos com menores de 14 anos configure estupro de vulnerável independentemente do consentimento da vítima, dados do Sistema Único de Saúde demonstram que 12 mil meninas de 8 a 14 anos estavam grávidas em 2023.
Infelizmente, milhares de crianças e adolescentes, majoritariamente negras, dão à luz todos os anos, apesar de terem o direito ao aborto legal. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2022, 56,8% das vímas de estupro e estupro de vulnerável eram pretas ou pardas, evidenciando também um aumento desse indicador com relação aos anos anteriores.
As consequências para crianças, adolescentes e mulheres negras, maiores vítimas de violência sexual, aniquilam subjetividades e destroem vidas, devido aos profundos traumas e que, agora, ainda correm o risco de serem obrigadas a dar continuidade a uma gestação indesejada e imposta pela violência.
Crianças e adolescentes são as que mais sofrem abusos, violências obstétricas e tem suas vidas e existências ceifadas tanto pela violência dos abusadores, como pela violência institucional a qual são submetidas posteriormente. Erradicar a violência contra crianças, adolescentes e mulheres é um compromisso do CONANDA e, para tanto, é necessário o enfrentamento ao machismo e ao racismo e garantir direitos desta população que é historicamente vulnerabilizada e violentada em nosso país, tendo suas vidas e saúdes diretamente impactadas com a violência e com Projetos de Lei, como no caso em tela, que ainda tem o condão de gerar uma ampla insegurança jurídica.
A gestação, como a concretização de uma situação de estupro e a obrigatoriedade do prosseguimento da gravidez é uma nova violência, um processo de revitimização agora imposto pelo Estado brasileiro, e que pode ser comparado com situações de tortura. Apenas a inviolabilidade dos corpos das crianças e adolescentes permitirá o seu pleno desenvolvimento físico, social, psíquico e emocional, o que significa que é preciso interromper qualquer tipo de violências e de imposição que impeça crianças de sonhar e de construir projetos de vida, violando direitos fundamentais à vida, à dignidade humana e à proteção contra toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade, opressão, tortura e tratamento cruel ou degradante.
Defende-se que a normativa referente ao abortamento legal seja integralmente efetivada na prática com a oferta do procedimento em serviços públicos de forma acessível, protegida e segura, observando-se as garantias fundamentais previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, com promoção de medidas de acolhimento e atendimento humanizado e especializado, com os mais amplos cuidados relativos à saúde física e mental de crianças e adolescentes.
Por fim, destaca-se que, com a alteração proposta, a pena prevista para mulheres e meninas vítimas de estupro se tornará maior (de seis a vinte anos de reclusão) do que a pena prevista para o crime de estupro de vulnerável (de oito a quinze anos de reclusão), o que significa uma criminalização majorada contra as vítimas, não sendo observada pelos legisladores a proporcionalidade entre as penas e delitos previstos no Código Penal, bem como a revitimização de mulheres e crianças vítimas de estupro.
Diante do exposto, o CONANDA posiciona-se contrário ao Projeto de Lei 1904/2024, que impõe sofrimento, tortura e coloca em risco a saúde, a integridade física e mental e a dignidade de milhares de crianças e adolescentes que são cotidianamente violentadas sexualmente em nosso país
Criança não é mãe
MARINA DE POL PONIWAS
Presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – Conanda
DPU aponta ‘retrocesso da democracia’
A Defensoria Pública da União (DPU), por meio do Grupo de Trabalho Mulheres e do Observatório de Violência contra as Mulheres, divulgou, nesta sexta-feira (14), nota na qual externa preocupação com a tramitação do PL nº 1904 na Câmara dos Deputados.
O projeto propõe alterar o Código Penal Brasileiro para equiparar o aborto, no caso de gestações acima de 22 semanas, ao crime de homicídio, prevendo pena de até 20 anos de reclusão para as mulheres que provocarem o aborto em si ou permitirem que alguém o provoque.
A Defensoria destaca que a proposta, que criminaliza a prática do aborto no caso de gravidez resultante do crime de estupro, é um retrocesso aos direitos humanos das mulheres e à democracia. Além disso, ignora que “a violência sexual contra mulheres e meninas no Brasil é um problema social crescente, que precisa ser enfrentado com seriedade, prioridade e amplo debate pelo Estado Brasileiro”.
Para a DPU, a urgência na tramitação também retira do debate democrático a participação das mulheres, da sociedade civil, dos movimentos sociais, das instituições do Sistema de Justiça e do próprio parlamento.
Na nota, o GT Mulheres e o observatório destacam ainda dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, os quais confirmam um aumento significativo da violência contra as mulheres no ano anterior.
O estudo revelou que, em 2022, houve o maior número de registros de estupros da história, com um aumento de 8,2% de casos notificados em relação ao ano de 2021. As maiores vítimas dessa violência seriam crianças e adolescentes de até 13 anos, correspondendo a 61,4% do total de 74.930 casos documentados.
Em abril, a DPU e oito Defensorias Públicas Estaduais também questionaram, por meio de nota técnica, a Resolução 2.378 do Conselho Federal de Medicina, que busca restringir o direito de mulheres e meninas vítimas de estupro ao vedar assistolia fetal após 22 semanas de gestação. Os efeitos dessa norma continuam suspensos por decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes.
Com Assessorias (atualizado em 18/06/24 e em 06/07/24 para adicionar informações de outras entidades)