Você já deve ter ouvido falar em comunidades terapêuticas (CTs), certo? Essas residências coletivas temporárias para recuperação de pessoas que fazem uso de álcool e drogas foram introduzidas no Brasil no final dos anos 1960, mas começaram a crescer mesmo na virada do milênio – 79% delas foram fundadas entre 1996 e 2015. 

Em 2017, havia cerca de 2 mil comunidades terapêuticas operando em todo o país, sendo a maioria da Região Sudeste (46%) e em zonas rurais (74,3%), segundo pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), e 82% delas declararam ter orientação religiosa.

Dessas, quase metade (47%) são evangélicas ou protestantes e 27% católicas. Mesmo as CTs sem orientação religiosa também declararam desenvolver trabalhos espirituais, o que representa 95% do total delas, de acordo com dados de 2017 e 2018.

Dados como estes podem ser acessados gratuitamente na plataforma recém-lançada pela Frente Parlamentar Mista de Promoção à Saúde Mental, que traz 1.285 documentos públicos inéditos das 603 comunidades terapêuticas financiadas com recursos federais no Brasil.

O Raio-X das Comunidades Terapêuticas: Plataforma de Pesquisa e Fiscalização das Entidades com Financiamento Público Federal reúne documentos como projetos terapêuticos e instrumentos de gestão, produzidos entre 2017 e 2023. A plataforma fica disponível no site do grupo, facilitando o acesso e a fiscalização dos recursos públicos aplicados nessas organizações.

De acordo com o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), existe uma preocupação grande no que se refere à fiscalização das CTs, porque muitas não são regulamentadas. Muitas instituições que se intitulam como CTs estão irregulares e passam ao largo de qualquer possibilidade de identificação e fiscalização.

Elas são entidades privadas. Então, se existe um financiamento público para entidades privadas, existe ainda mais necessidade de fiscalização desse tipo de instituição”, diz Dayana Rosa, especialista em saúde mental do IEPS.

Financiamento federal depende de projeto terapêutico

O financiamento de vagas em CTs é realizado com recursos públicos municipais, estaduais e federais. Um requisito para que elas recebam financiamento do governo federal é a elaboração de um projeto terapêutico.

Esse instrumento deve trazer um conjunto de propostas de condutas terapêuticas articuladas com o objetivo principal de aprofundar as possibilidades de intervenção sobre os casos acolhidos.

De acordo com o estudo efetuado pela Conectas Direitos Humanos e o Cebrap, entre 2017 e 2020, o investimento federal em 603 CTs totalizou R$ 300 milhões. O montante sobe para R$ 560 milhões quando considerados os valores repassados por governos estaduais e prefeituras de capitais.

As CTs passaram a receber imunidade tributária a partir da Lei Complementar nº 187/2021, que regula a Certificação de Entidades Beneficentes de Assistência Social (Cebas) atuantes nas áreas da educação, saúde e assistência social.

Leia mais

Como a saúde pública lida com a dependência química no Brasil?
Drogas: como enfrentar esse problema de saúde pública?
7 sinais da dependência química: como a família pode ajudar?
Pergunte ao Doutor: O que é dependência química?

Nem SUS, nem SUAS

As CTs não integram o Sistema Único de Saúde (SUS) nem o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), mas são equipamentos da rede suplementar de atenção, recuperação e reinserção social de dependentes de substâncias psicoativas. Essas entidades integram o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad), por força do Decreto 9.761/2019 e da Lei nº 13.840/2019.

Desta forma, os serviços de saúde e de interesse à saúde são fiscalizados pelas vigilâncias sanitárias locais, com base em normas sanitárias federais e locais sobre o tema. Assim, toda comunidade terapêutica deve ter alvará sanitário. A fiscalização sanitária avalia aspectos de infraestrutura, documentação, recursos humanos e processos de trabalho.

Em caso de irregularidades, diversas sanções podem ser aplicadas, dependendo da gravidade ou da reincidência da infração sanitária. As sanções variam desde uma advertência, multa, apreensão e inutilização de produtos, até a interdição do estabelecimento.

Além da vigilância sanitária, outros órgãos ou entidades também podem fazer fiscalizações eventuais, motivadas por denúncias de situações que estejam dentro do âmbito das competências de cada uma delas. Conselhos profissionais podem fiscalizar questões ligadas ao exercício profissional e o Ministério Público do Trabalho pode realizar fiscalizações relativas a questões trabalhistas, por exemplo.

Para aprimorar os canais de fiscalização e denúncia, a frente parlamentar apresentou, em 2023, o Projeto de Lei nº. 6227, que altera a atual Lei de Drogas, para que o Disque Denúncia de Violação de Direitos Humanos (Disque 100) passe a receber notificações também relacionadas às CTs.

Leia ainda

Internação compulsória para usuários de drogas nas ruas do Rio
Diferenças entre residência terapêutica e hospital psiquiátrico
Internação involuntária: risco de violação de direitos humanos

Plataforma colaborativa

Segundo a especialista em saúde mental do IEPS, Dayana Rosa, é a primeira vez que os documentos são reunidos, sistematizados e analisados, “possibilitando que pesquisadores, jornalistas e sociedade civil em geral se atualizem sobre o tema”.

O estudo é inédito, porque traz fontes primárias e tem o ineditismo da atualização de evidências científicas sobre as comunidades terapêuticas no período mencionado.” O IEPS funciona como secretaria executiva da frente parlamentar.

Dayana Rosa afirmou que a plataforma é colaborativa e aberta a pesquisadores que queiram compartilhar os seus trabalhos científicos. Isso é possível com o preenchimento de um formulário disponível no endereço da FPSM na internet.

A pessoa disponibiliza com o intuito de a gente, mais uma vez, potencializar e fomentar a pesquisa no Brasil sobre esse tema de fiscalização que ainda é recente”, destacou Dayana Rosa.

As contribuições serão avaliadas pela secretaria-executiva da Frente Parlamentar e organizações do Conselho Consultivo, segundo critérios científicos e metodológicos. Estando aptas, as contribuições serão incluídas no repositório de pesquisas. “A ideia é deixar a plataforma sempre aberta a contribuições”, concluiu.

Fiscalização em debate

Seminário da Frente Parlamentar Mista para Promoção da Saúde Mental (Foto Daniel Paes – Iracema Comunicação)

Ela informou que o exercício da fiscalização das CTs ainda está em debate no Legislativo. “Existem várias tentativas de regulamentação sobre esse assunto, mas isso vai variar a partir de conselhos municipais, estaduais e federal. A Frente Parlamentar está também cumprindo uma ação de fiscalização que é responsabilidade do Poder Legislativo”.

Dayana afirmou que, por esse motivo, a plataforma disponibiliza, além dos contratos, termos de fomento e de convênio, os projetos terapêuticos. “É nesses projetos terapêuticos que a instituição vai poder dizer, de fato, como se faz o tratamento de álcool e drogas para quem a procura”.

Esta é também a primeira vez que os dados de projetos terapêuticos são disponibilizados. “Aí conseguimos ver como cada comunidade terapêutica organiza seu corpo de profissionais e quais são as atividades que o interno vai fazer, como é o acesso, como é a saída. Essas informações são muito novas”.

Como colaborar?

Pesquisadores poderão enviar suas contribuições para a plataforma a partir do preenchimento de um formulário e serão avaliadas pela Secretaria Executiva e organizações do Conselho Consultivo da Frente segundo critérios científicos e metodológicos. Estando aptas, as contribuições serão incluídas no Repositório de Pesquisas.

Da Agência Brasil, com Redação

Shares:

Posts Relacionados

1 Comment

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *