De acordo com informações disponíveis no Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (via Disque 100), houve neste – ano até o último dia 23 de junho – 129.287 denúncias de algum atentado à integridade de crianças e adolescentes – violações físicas, de negligência e psíquica.  Desse total, 81.395 casos (62%) foram dentro de casa (onde moram a criança vítima e a pessoa suspeita).

O painel disponibilizado pelo Ministério dos Direitos Humanos considera que essa violência à integridade compreende. Quem denuncia, em geral, são terceiros. No entanto, chama atenção que 8.852 crianças conseguiram pedir ajuda diante da violência que sofriam.

Dados divulgados recentemente pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) apontam que o número de casos de maus-tratos contra crianças de até 11 anos no município do Rio de Janeiro cresceu 173%, nos últimos três anos. Foram 118 registros em 2020 e 323 no ano passado.

Em quase metade das ocorrências (47%) os agressores eram pais, mães, padrastos ou madrastas. Em todo o Estado do Rio, os registros cresceram de 426, em 2020, para 741, em 2023 – um aumento de 73%. Também nesses casos, pais, mães, padrastos e madrastas foram identificados com autores da agressão.

Essa realidade poderia ser diferente se a Lei Menino Bernardo, também conhecida como “Lei da Palmada” (Lei 13.010/2014), estivesse sendo cumprida. Esse regramento, que complementa o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, garante o direito a uma educação sem uso de castigos físicos ou de tratamento cruel.

No último dia 26, a Lei do Menino Bernardo completou uma década. A lei foi batizada assim para lembrar a morte do menino Bernardo Boldrini, de 11 anos, que foi vítima de agressões e e negligência familiar, e acabou morto pela madrasta e pelo pai, em Três Passos (RS), em abril de 2014, causando uma comoção nacional.

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‘Dentro de casa, há uma legitimação da violência’

Para a promotora de Justiça Renata Rivitti, do Ministério Público de São Paulo, a lei reafirma a ilicitude e a ilegalidade do castigo físico e representa um marco para o Brasil, um país em que ainda existe, de forma arraigada, uma percepção distorcida de que a educação precisa ser rígida. “Há ainda uma romantização e uma crença real de que educar com violência é legítimo e seria para o bem da criança ou adolescente”.

Coordenadora do Centro de Apoio da Infância do MP,  avalia que, de fato, existe esse problema cultural. “Dentro de casa, há uma legitimação da violência”. Seja como uma forma deturpada de educar ou de corrigir. “Existe uma carga histórica e cultural do nosso país”.

De acordo com o coordenador da infância e juventude da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Rodrigo Azambuja, o castigo físico contra crianças sempre foi vedado pelas convenções internacionais ratificadas pelo Brasil, mas o Código Penal criminalizava a figura de maus-tratos apenas nas hipóteses em que houvesse abuso dos meios de correção e disciplina.

A Lei Menino Bernardo reitera a proibição, mas, ainda assim os castigos físicos acontecem, e são naturalizados. É preciso uma grande mudança cultural e, para isso, pensamos nessa mobilização com ações de educação em direitos”,  destaca o defensor público.

‘Sociedade ainda educa pela violência’

A pesquisadora em direitos da infância e em ciências sociais Águeda Barreto, que atua na ONG ChildFund Brasil, considera que a Lei Menino Bernardotem um caráter pedagógico e preventivo. “Precisamos celebrar os 10 anos de efetivação dessa lei, mas a gente ainda precisa avançar muito, especialmente culturalmente. A gente vive numa sociedade que ainda educa as crianças através de violência”, lamenta.

A pesquisadora recorda que, em 2019, a entidade fez levantamento com crianças brasileiras e contabilizou que 67% delas não se consideravam suficientemente protegidas contra a violência. A pesquisa Small Voices, Big Dreams (Pequenas vozes, grandes sonhos) para o Brasil mostrou, além disso, que 90% das crianças rejeitam o castigo físico como forma de educação. 

Águeda Barreto, que também escreveu dissertação de mestrado sobre o tema, identificou que os castigos físicos são a forma com que as crianças mais reconhecem a violência. “Muitas delas não tinham tanta clareza sobre uma violência psicológica”.

A pesquisa nacional da Situação de Violência contra as crianças no ambiente doméstico, realizada pela ChildFund, concluiu, no ano passado, que no Brasil existe  uma fragilidade em relação à implementação de leis que respaldam a intolerância à violência contra crianças. A ONG argumentou que a garantia de direitos preconizada no ECA ainda chega lentamente na vida real, a exemplo da Lei Menino Bernardo.

A efetivação de ações se dará a partir do momento em que o governo federal, estados e municípios atuem de forma integrada na elaboração de políticas que previnam e coíbam práticas nocivas e que a implementação aconteça com  serviços operantes, monitoramento e repressão a agressores em todos os municípios do país”, argumenta o relatório da entidade.

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Lei Henry Borel e parentalidade positiva

Entre as legislações que Águeda Barreto considera avançadas estão a Lei Henry Borel, aprovada após a morte do menino no Rio de Janeiro, em 2022, e também a 14.826, que define a “parentalidade positiva e o direito ao brincar” para prevenção à violência contra crianças. A promotora Renata Rivitti acrescenta ainda o valor da Lei 13.431, de 2017, que garantiu maior proteção às crianças.

A legislação determina o olhar integrado, da atenção integral, de justiça, segurança pública, saúde, conselho escolar, assistência social, educação, todo mundo trabalhando junto para prevenir, para enfrentar essa violência”.

Águeda Barreto explica que a legislação coloca como dever do Estado, da família e da sociedade, fazer a promoção de educação baseada no respeito. Para ela, são legislações que se mostraram como evoluções a partir da Lei do Menino Bernardo e do Estatuto da Criança e do Adolescente, uma das primeiras legislações mundiais sobre o tema.

‘Cultura adultocêntrica’

Foi uma novidade considerar a criança como um sujeito de direitos, mas o desafio ainda é grande. “A gente tem percebido que a educação violenta de crianças é muito naturalizada no contexto brasileiro. Há uma cultura que nós vivemos no Brasil que a gente chama de adultocêntrica. Muitas vezes, as crianças são empurradas como uma posse do adulto”, avalia a pesquisadora.

A promotora Renata Rivitti avalia que é preciso mais pressão da sociedade para que as leis saiam do papel e funcionem no dia a dia. “A gente tem, desde 1988, legislação de primeiríssimo mundo. A nossa obrigação como poder público, como família e como sociedade é a de combater essa violência. O principal gargalo está em conseguirmos garantir a implementação dessa legislação para que ela de fato saia do papel”.

Nós brasileiros não estamos ainda indignados o suficiente e cobrando. Não existe campanha, não existe alerta, não existe informação. Quanto menos se fala disso, menos a gente entende a gravidade da situação”, afirma a promotora.

Arte aproxima famílias e ajuda a combater violência

É justamente para sensibilizar as famílias que exemplos como a da conselheira tutelar Viviane Dourado, de 49 anos, podem funcionar. O contorno com a família em mãos dadas, o balão colorido com as crianças, e o cata-vento. Nas paredes e muros na região administrativa do Cruzeiro (DF), ela resolveu traduzir ideais com tintas e pincel.

Designer e educadora social, ela entende que a arte pode ser estratégia para aproximação com famílias para combater a violência contra a infância.  Viviane lembra dos tempos de criança, quando recebeu castigos, com beliscões e tapas desnecessários. São as tintas também do passado que a inspiraram a ser mãe solo, educadora e profissional na luta contra essa conduta. Nos tempos da infância de Viviane não existia legislação como as de hoje.

Conselheira tutelar Viviane Dourado (Foto: Viviane Dourado/Arquivo Pessoal)

 

Ela é alguém que segue pintando paredes, paradas de ônibus e até camisetas para falar sobre respeito e já foi até convidada para trabalhar em parceria com outros conselhos e entidades públicas. “As crianças querem brincar, ser felizes e viver a inocência”, diz. Ela sabe que alertas podem surgir por um traço, uma tinta no muro, ou um desenho de mãos dadas que pode ser mais forte do que uma palmada.

Ação social divulga Lei do Menino Bernardo no Rio

Crianças, adolescentes e seus familiares tiveram acesso a uma série de serviços públicos e atividades de lazer neste sábado (29), na ação social promovida pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ), em comemoração pelos dez anos da Lei Menino Bernardo (Lei 13.010/2014). A ação ocorreu na sede do Núcleo Especial de Atenção à Criança (NEAC), em Campo Grande, na Zona Oeste.

O coordenador da infância e juventude da DPRJ, defensor Rodrigo Azambuja, destacou a importância da ação no bairro, que registra altos índices de violência contra crianças e adolescentes.

Tentamos trazer alguns serviços, além de dar visibilidade à Lei Menino Bernardo, que prevê a proteção de crianças e adolescentes. E nos atendimentos da Defensoria, conseguimos ampliar essa proteção, garantindo direitos como a regularização de guarda, alimentos e convivência familiar”, explicou.

Ana Paula Rodrigues, articuladora da Rede “Não Bata, Eduque”, afirmou que a ação é uma oportunidade de repensar as formas de educação de filhos e filhas ao trazer referências que se contrapõem à violência. “Trazer esses serviços para a Zona Oeste é também uma oportunidade de atuar nas comunidades mais periféricas”, disse.

A DPRJ prestou assistência jurídica em diversas áreas do direito, e a Rede “Não Bata, Eduque” promoveu ações voltadas para a prevenção da violência contra crianças e adolescentes.

Vanda Moreira buscou a Defensoria para regularizar a guarda da neta de 10 anos, que cuida desde bebê. “Ela está fazendo tratamento e eu preciso de segurança e respaldo para continuar cuidando dela”, afirmou.

Situação semelhante levou Cristina Ramos a procurar a DPRJ, pois cuida das netas gêmeas de 6 anos. “Preciso da guarda delas para conseguir cuidar delas, levar ao pediatra”, destacou.

Regina Jesus Macena foi à ação acompanhando uma amiga e aproveitou para participar dos serviços de bem-estar para a mulher. “Também preciso de informações sobre mediação escolar. Tenho um filho autista. Fiquei como mãe voluntária por um tempo, mas a escola disse para não continuar, e ele não teve mediador”, relatou.

Com a participação de parceiros como Detran, Secretaria Municipal de Saúde (SMS) e Casa da Mulher, também foram disponibilizados serviços como identificação civil, orientações educativas na área alimentar e de saúde e outros relacionados ao bem-estar, como tranças e massagens.

Elisangela dos Santos aproveitou a ação para retirar a segunda via da identidade dela, do marido e da filha de seis anos. “Deveriam ter mais ações como essas, muita gente não tem acesso a esses serviços”, destacou.

Para o público infanto-juvenil, foram oferecidos brinquedos infláveis, dinâmicas com direito a brindes educativos, pintura facial, oficinas de recreação e roda de capoeira.

Com informações da Agência Brasil e da Defensoria Pública do Rio

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