Trazida pela mãe, uma menina de menos de 6 anos de idade chega à unidade de pronto-atendimento por conta de suspeita de estupro. A narrativa, infelizmente, é comum no maior hospital exclusivamente pediátrico do Brasil, o Pequeno Príncipe, referência em atendimento a crianças e adolescentes em situação de violência para Curitiba e região metropolitana.

Todos os anos, a instituição recebe crianças e adolescentes vítimas de vários tipos de violênciasexual, física, psicológica, negligência ou autolesão. Em 2023, foram atendidos 745 crianças e adolescentes em decorrência de maus-tratos, sendo que 412 deles tinham até 4 anos.

O abuso sexual lidera esse ranking: 435 crianças e adolescentes foram atendidos por suspeita desse tipo de violência em 2023, e a mais jovem era um bebê de apenas 4 meses de vida.

Um panorama histórico mostra que o número de atendimentos de 2013 a 2023 dobrou, como indicado na tabela abaixo, sendo a violência sexual historicamente predominante ao longo dos anos.

Um panorama histórico mostra que o número de atendimentos de 2013 a 2023 dobrou, como indicado na tabela abaixo, sendo a violência sexual historicamente predominante ao longo dos anos:

Quando olhamos para o recorte da primeira infância, até 6 anos de idade, os dados chocam ainda mais. Em 2023, o Pequeno Príncipe atendeu 525 bebês e crianças com algum indício de violência. A maioria, 331, chegou por suspeita de violência sexual, sendo que 24% das situações aconteceram com crianças na faixa de 3 anos de idade. O dado ainda mais repugnante: 73% das agressões identificadas em 2023 foram praticadas por um familiar.

O que nós temos observado historicamente nos nossos atendimentos, e também na literatura, é que a violência tem sido perpetrada por pessoas conhecidas da vítima. Usualmente são familiares próximos, que, na maioria dos casos, mantêm algum vínculo afetivo com aquela criança ou adolescente”, ressalta a psicóloga do hospital, Daniela Prestes.

Em 2022, bebê de apenas 17 dias foi vítima de violência

Em 2022, foram 652 atendimentos, um crescimento de 5,5% em relação aos dados de 2021. A criança mais nova atendida por negligência foi um bebê de apenas 17 dias. A pouca idade das crianças atendidas no hospital é um dos dados alarmantes de 2022: 63% delas estavam na primeira infância, ou seja, tinham até 6 anos.

Nos casos de violência sexual, que mais uma vez foi a predominante, com 375 dos atendimentos realizados, 69% das vítimas estavam nessa mesma faixa etária. Outro dado que se repetiu em relação a esse tipo de violência é o sexo da criança. A maioria era menina: 79% do total.

Além disso, o lugar onde as vítimas mais sofrem o abuso sexual é dentro da própria casa. Entre os casos registrados em 2022, 185 aconteceram na residência da vítima. Ainda em relação à violência sexual, mais de 90% dos agressores eram do sexo masculino, e o pai era apontado como o principal suspeito.

Em segundo lugar nesse trágico ranking está a negligência, quando a atitude de pais ou responsáveis expõe a criança ou adolescente a algum risco. Foram atendidos no Pequeno Príncipe 130 casos envolvendo esse tipo de violação a direitos básicos do público infanto-juvenil.

Em situações extremas, quando o risco à vida de uma criança ou adolescente é evidente, o último recurso utilizado para protegê-los é o encaminhamento para abrigamento. Pela primeira vez, o Hospital Pequeno Príncipe registrou cinco solicitações desse gênero. Um triste recorde.

Estatística nacional

Os números do Pequeno Príncipe, corroboram uma triste estatística nacional. Dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, do governo federal, demonstram que o número de denúncias de casos de violência contra crianças e adolescentes registrado no Brasil em 2023 cresceu 50% quando comparado ao do ano anterior. Foram mais de 228 mil ligações para o Disque 100, denunciando casos que envolveram crianças e adolescentes de 0 a 17 anos.

Segundo o Unicef – o Fundo das Nações Unidas para a Infância, entre 2016 e 2020, o total anual de mortes violentas de crianças de até 4 anos de idade aumentou 27% no Brasil, sendo que a maioria morreu na própria residência. O mesmo relatório apontou que 136 mil casos de estupro de vulnerável (de 0 a 14 anos) foram notificados no país.

Historicamente, em cerca de 80% dos casos de violência, o agressor é alguém do próprio núcleo familiar ou conhecido da família. Ele, normalmente, se aproveita dos vínculos de confiança estabelecidos com a vítima, além do conhecimento da rotina e dos hábitos, para praticar a violência e ficar mais distante da suspeita de tal ato pelos responsáveis. Por isso, é importante observar mudanças no comportamento da criança e adolescente”, analisa a psicóloga.

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Sintomas e sinais que podem salvar vidas

Maus-tratos e abusos se manifestam por meio de indícios físicos, emocionais e comportamentais. Os sinais de que uma criança está passando por situação de violência são variados, tanto com sintomas físicos como psicológicos.

Podem ir desde fraturas, hematomas, queimaduras, queda de cabelo, emagrecimento e lesões físicas até ansiedade, medo, insegurança, palavras de autorrecriminação ou autodepreciação, baixa autoestima, isolamento afetivo e isolamento social.

Estar atento aos sinais da negligência e das violências sexual, física e psicológica é fundamental para a proteção das crianças e dos adolescentes. Um deles é desinteresse por coisas de que antes gostava, como brincadeiras. Essa mudança pode indicar também que a saúde mental precisa de atenção redobrada e apoio profissional especializado.

Entre eles estão choro excessivo; hematomas em várias partes do corpo e de diferentes colorações; fraturas próximas das articulações, em costelas ou de crânio; desnutrição; aspecto de má higiene; excesso ou falta de apetite; medo exagerado; agressividade e irritação.

Os sinais vão desde situações de afastamento dos vínculos afetivos, por descrença nesses vínculos, a sinais de estresse pós-traumático e sintomas psicológicos que vão impactar sua rotina, com impactos na alimentação, sono, higiene… até questões que possam levar a situações de suicídio”, destaca a psicóloga do Pequeno Príncipe.

Ela explica também que, nas situações de abuso sexual, a criança ou adolescente pode em algum momento rumar para a pornografia ou então para um quadro relativo à sua sexualidade, como repulsa às relações sexuais de forma geral. E, em decorrência desse ou dos outros tipos de violência, podem aparecer as situações de autolesão e ideação suicida e de tentativas de suicídio.

Conheça os sinais de alerta:

• mudança brusca de comportamento;

• excesso ou falta de apetite;

• agressividade (reprodução das agressões);

• choro incessante durante diversos momentos do dia ou da noite;

• recusa ou dificuldade para dormir;

• gritos acompanhados de barulhos como batidas;

• voltar a evacuar nas roupas (após fase de desfralde – inclusive na adolescência);

• autolesões;

• desinteresse por coisas de que antes gostava;

• retração, mutismo;

• queda no rendimento escolar.

 

Violência na primeira infância e suas consequências

Segundo o Comitê das Nações Unidas sobre o Direito da Criança, os primeiros anos de vida são a base para o desenvolvimento de uma pessoa. É durante os primeiros seis anos de vida que as bases para a saúde física, emocional, cognitiva e social são estabelecidas.

De acordo com a psicóloga, passar por situações de estresse, como a exposição à violência, coloca em risco o desenvolvimento, a saúde e a educação e pode provocar consequências mentais e fisiológicas negativas em longo prazo, além de causar mudanças permanentes no cérebro.

A aquisição da linguagem, o funcionamento cognitivo e o autocontrole podem ser afetados, por exemplo. Além disso, também pela pouca idade, a criança não consegue identificar o que são maus-tratos, defender-se dessas situações ou pedir ajuda, pela pouca maturidade e discernimento. Por isso, há a necessidade de um olhar diferenciado para essas situações e apoio”, ressalta.

E o lar, que deveria ser um local seguro, sem agressões, infelizmente é o principal cenário dos abusos: 76% dessas crianças com até 6 anos foram agredidas por um familiar. Considerando que elas ficam muito tempo em casa – e à mercê do agressor –, a denúncia (que pode ser anônima) por parte de vizinhos, familiares e conhecidos pode ser a única chance para conseguirem socorro.

A denúncia, com possibilidade ser anônima, pode ser a única chance para muitas crianças e adolescentes serem salvos. De qualquer lugar do Brasil é possível ligar para Disque 100 e relatar qualquer suspeita. A ligação é gratuita. “Muita gente acha que os pais são ‘donos’ da criança. Mas isso não é verdade. É responsabilidade de toda a sociedade proteger essas crianças e adolescentes”, lembra a psicóloga.

Os canais de denúncia são: Disque 100 (nacional), Disque 181 (Paraná) e Disque 156 (Curitiba).

Campanha Pra Toda Vida 2024

Desde 2006, o Pequeno Príncipe promove a Campanha Pra Toda Vida – A Violência não Pode Marcar o Futuro das Crianças. para dar visibilidade às ações de combate à violência promovidas na instituição. Neste Maio Laranja, o Hospital destaca  os graves indicadores de atendimento da instituição que apontam que, a cada ano, mais crianças estão tendo seus direitos violados.

O Pequeno Príncipe chama atenção sobre a importância de todos os atores sociais estarem atentos ao combate à violência contra crianças e adolescentes e tomarem atitudes que possam mudar a vida de meninos e meninas”, reforça a diretora-executiva do hospital, Ety Cristina Forte Carneiro.

Mais informações no hotsite: pequenoprincipe.org.br/PraTodaVida.

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