No Brasil, cerca de 13 milhões de pessoas vivem com doenças raras. Uma delas é a Atrofia Muscular Espinhal (AME), uma doença degenerativa que compromete o funcionamento do sistema nervoso motor e dos músculos de forma acelerada. No país, são aproximadamente 300 novos casos por ano da doença, que é hoje a maior causa genética de mortalidade infantil.
De acordo com dados do Instituto Jô Clemente, os cuidados e tratamentos médicos associados a essas enfermidades têm um custo quatro vezes maior para o sistema de saúde, por conta, principalmente, do diagnóstico tardio e da evolução de comorbidades. Mas para além dos gastos gerados aos cofres públicos, qual o impacto financeiro das doenças raras para a sociedade brasileira?
No caso da Atrofia Muscular Espinhal (AME), famílias podem gastar entre R$ 11 mil a R$ 15 mil por mês para garantir qualidade de vida aos afetados pela condição. A estimativa é do Universo Coletivo AME, maior coalizão em prol da causa no Brasil.
Integrante do Universo Coletivo AME e presidente da Associação de Amigos e Portadores de Doenças Neuromusculares (Donem), Suhellen Oliveira é mãe de duas crianças com a doença: Lorenzo, 10 anos, e Levi, 3 anos.
Assim que o primogênito foi diagnosticado, teve que mudar de casa e de emprego para ficar mais próxima de um centro de reabilitação. Mas com as intercorrências e desafios que acompanham a AME, pediu demissão após dois anos. Desde então, a agente de turismo atua de forma remota, enquanto seu marido faz trabalhos temporários para complementar a renda.
“Até hoje nossa vida financeira vive na corda bamba. Muitas vezes as contas atrasam. Ter um filho atípico representa uma diferença financeira muito grande em relação a um filho completamente saudável. Tudo é mais caro, do carrinho de bebê à banheira. Estamos falando de um gasto de no mínimo R$ 11 mil para pessoas nesta situação”, destaca Suhellen que comprou a primeira cadeira de rodas de Lorenzo no valor de R$ 12 mil através de uma vaquinha.
Conta de luz chega a R$ 1,5 mil por mês
Uma das cinco mulheres à frente do Universo Coletivo AME e presidente da Associação Brasileira de Amiotrofia Espinhal (Abrame),Fátima Braga é mãe de Lucas, de 21 anos, que possui AME 1, forma mais grave da doença. Na casa em que mora, em Fortaleza, são 12 aparelhos que precisam de energia para garantir o bem-estar do filho.
Lucas necessita de respirador, máquina de tosse, bombas de alimentação, aspirador portátil e uma central de ar-condicionado ligada 24 horas por dia, entre outros equipamentos. Por conta disso, a conta de luz chega a R$ 1,5 mil por mês.
“Quando ele era bebê e estava no hospital, não fazia ideia de que seria assim. Uma vez em casa, este custo passou para mim. É injusto com quem cuida e já passa por tanta coisa. Meu gasto mensal total varia em torno de R$ 14 a R$ 15 mil”, conta.
Cuidar de uma criança com AME requer uma abordagem multidisciplinar, que demanda o acompanhamento de diversos especialistas. Também envolve suporte para os responsáveis que, muitas vezes, desenvolvem seus próprios problemas de saúde física e mental.
“Passei muitos anos vivendo a vida do meu filho. Desenvolvi várias doenças psicossomáticas, como obesidade, depressão e ansiedade. Adoeci junto e isso também teve um custo”, diz Fátima, que já se submeteu a uma bariátrica e a uma cirurgia na coluna durante este período.
Famílias têm que comprar guincho e elevador para carro adaptado
Fátima é administradora de empresas e hoje se divide entre seu papel de ativista nas instituições e os cuidados com o filho. Seu sustento vem do prolabore de uma distribuidora de alimentos da qual é sócia, junto com seu ex-marido.
Entre os muitos sacrifícios financeiros que vieram com a AME, Fátima precisou vender seu carro para arcar com um veículo totalmente adaptado, que inclui um elevador de R$ 50 mil – também custeado por ela.
Mesmo com homecare, ainda paga R$ 2,7 mil mensais a uma cuidadora particular, uma vez que o plano de saúde só disponibiliza uma equipe de enfermagem. “Meu filho é pesado e grande, uma equipe apenas não dá conta”, explica.
Tanto Suhellen quanto Fátima observam que os gastos vão aumentando conforme a idade. Enquanto Lorenzo agora precisa de um guincho de R$ 8 mil para ser levantado da cama, Lucas necessita de um modelo de cadeira de rodas mais adequado ao seu tamanho, que custa quase R$ 80 mil.
“Quando a criança é bebê, o custo de vida ainda é menor, porque estamos na fase das descobertas. Minha ficha caiu quando meu filho saiu da pediatria”, complementa Fátima.
Desafio de qualidade na saúde suplementar
Embora tenham plano de saúde, ambas reconhecem que o desconhecimento da maioria dos profissionais conveniados sobre a doença torna o atendimento particular uma necessidade. “Os melhores médicos, infelizmente, não estão no convênio. E as consultas particulares podem chegar a R$ 3 mil reais”, revela Fátima.
Lucas faz uso de Spinraza, um dos medicamentos hoje disponíveis no SUS para tratamento da AME. Como o remédio é administrado por injeção intratecal (diretamente na medula espinhal), para garantir segurança ao filho, Fátima paga R$ 2 mil a cada quatro meses a um anestesista e ortopedista particulares. “Tive muitos problemas com os profissionais disponibilizados pelo convênio. Prefiro não correr mais este risco”, ressalta.
Suhellen, que mora em Recife, passou por situação semelhante quando Lorenzo se tornou paciente de homecare. “Quando ele ainda estava no hospital, notamos que a equipe não tinha familiaridade com a doença. Resolvemos bancar a vinda de profissionais do Rio de Janeiro para treiná-la. Como o plano não aceitou pagar, tivemos que recorrer, mais uma vez, à vaquinha”, revela.
Foram R$ 8 mil para viabilizar todo o processo de vinda dos especialistas. Atualmente, 14 profissionais cuidam de Lorenzo, incluindo fisioterapeutas, neurologistas, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais e nutricionistas. Ela acrescenta que grande parte das demandas do filho mais velho tiveram que ser judicializadas.
“É um desgaste muito grande. Às vezes a gente prefere tirar do próprio bolso, mesmo tendo direito. Sou uma defensora do SUS e muitos especialistas que atendem meus dois filhos hoje são do sistema público. Mas as filas são enormes para conseguir serviço de reabilitação. Uma vaga pode levar de seis meses a um ano para ficar disponível. Até lá temos que dar nosso jeito”.
O presente e o futuro da AME
Já existem três terapias medicamentosas incorporadas ao SUS para tratamento da AME: Spinraza, Risdiplam e Zolgensma. Os tratamentos são promissores, caso administrados em um recém-nascido pré-sintomático. Daí a luta das famílias e, especificamente, do Universo Coletivo AME, para a inclusão da enfermidade no Teste do Pezinho. “Quanto antes se inicia o tratamento menos terapias e homecare a criança precisará”, destaca Suhellen.
O diagnóstico do seu filho mais novo, realizado ainda na gravidez, por meio da amniocentese, possibilitou que todos os cuidados terapêuticos fossem rapidamente iniciados. Os efeitos positivos são evidentes no desenvolvimento de Levi, que é mais independente e só utiliza respirador para dormir e não tem perfil de homecare.
Fátima argumenta que, à medida em que a medicina é capaz de dar maior sobrevida aos afetados pela doença, é necessário um olhar cuidadoso no longo prazo.
“Lá atrás não se falava em vida longa ou em tratamento para quem tem AME. Cada ano que a criança sobrevivia era uma vitória. A política pública não avançou junto com os avanços terapêuticos relacionados à doença. Precisamos tratar o paciente no presente, mas olhar também para o futuro, visando melhores condições para ele e àqueles ao redor. A doença é muito mais do que um diagnóstico e um tratamento. É uma nova condição de vida para toda a família”.
Universo Coletivo AME
O Universo Coletivo AME foi fundado em 2019 pela união de cinco instituições que atuam há mais de 20 anos em diferentes regiões do país e são lideradas por mães que vivenciam a AME no dia a dia: Donem (Associação de Doenças Neuromusculares), Instituto Viva Íris, Iname (Instituto Nacional da Atrofia Muscular Espinhal), Instituto Fernando e Abrame (Associação Brasileira de Amiotrofia Espinhal).
O grupo atua no acolhimento, educação, conscientização e, principalmente, em ações voltadas para políticas públicas. Um dos objetivos é acelerar a cobertura da AME no Teste do Pezinho, visando o diagnóstico precoce e para garantir o acesso de todos os pacientes aos medicamentos disponíveis no SUS.
Fonte: Universo Coletivo AME