A incidência da tuberculose vem aumentando na América Latina, onde a população privada de liberdade quase quadruplicou desde 1990, o crescimento mais rápido de qualquer região do mundo. As taxas de tuberculose são 26 vezes maiores entre pessoas privadas de liberdade do que na população em geral na América do Sul.

Pesquisa inédita realizada pela Fiocruz em parceria com instituições da Argentina, Brasil, Colômbia, Peru e Estados Unidos, avaliou o impacto total da epidemia de tuberculose na população privada de liberdade, contabilizando os efeitos para além das prisões – com as cadeias de transmissão, atingindo também a população em geral.

A análise constatou que o encarceramento é o principal fator de risco da tuberculose nessa região. Em nível mundial, 10,6 milhões de pessoas desenvolveram tuberculose em 2022. Embora a incidência global de tuberculose tenha diminuído 8,7% desde 2015, na América Latina a ocorrência de casos de tuberculose aumentou 19% no mesmo período.

A pesquisa verificou que o aumento da privação de liberdade desde 1990 resultou num número estimado de 34.393 casos excessivos de tuberculose incidentes em 2019 nos seis países. Em 2019, 27,2% dos casos novos foram relacionados ao encarceramento , mais do que a porcentagem atribuível a qualquer outro fator de risco, incluindo HIV e desnutrição. 

A investigação  concluiu que,  em comparação com o atual cenário das políticas de privação de liberdade, as intervenções nessa área poderiam reduzir em mais de 10%  a futura incidência da tuberculose na população geral do Brasil, na Colômbia, na Argentina, em El Salvador e no Peru.

Superlotação, ventilação precária, desnutrição e acesso limitado a cuidados de saúde

Pessoas privadas de liberdade, que já podem ter risco elevado de tuberculose antes do encarceramento, são ainda mais expostas às condições prisionais que promovem a transmissão e a progressão da doença, incluindo superlotação, ventilação precária, desnutrição e acesso limitado a cuidados de saúde. Juntos, esses fatores contribuem para este cenário.

Publicado nesta terça-feira (15/10) no The Lancet Public Health, o estudo – intitulado Encarceramento em massa como motor da epidemia de tuberculose na América Latina e impactos projetados de alternativas políticas: um estudo de modelagem matemática – foi realizado com dados coletados no período de 1990 a 2023 nos países participantes da pesquisa. O objetivo foi entender o impacto do aumento nas prisões sobre a saúde pública. Ao simular o que teria acontecido se as prisões não tivessem crescido tanto, os pesquisadores conseguiram estimar quantos casos de tuberculose poderiam ter sido evitados.

A metodologia utilizou modelos dinâmicos de transmissão, ajustados aos dados históricos e contemporâneos sobre privação de liberdade e tuberculose nos países analisados. Juntos, eles representam aproximadamente 80% da população em privação de liberdade e a “carga” da tuberculose na América Latina. A análise utilizou ainda da projeção do impacto de vários cenários de encarceramento na incidência futura de tuberculose na população em geral.

Incentivo ao desencarceramento para barrar epidemia

Para o controle da doença na região, os pesquisadores defendem que as agências internacionais de saúde, os ministérios da justiça e os programas nacionais de tuberculose devem colaborar para enfrentar esta crise sanitária com estratégias abrangentes que incluam o desencarceramento.

O estudo projetou o que poderia acontecer até 2034 em diferentes cenários, onde as taxas de privação de liberdade diminuem de maneira controlada. Três cenários foram simulados. No primeiro, o número de pessoas em privação de liberdade e o tempo que elas ficam encarceradas permaneceriam constantes.

No segundo, as taxas de entrada nas prisões e o tempo de privação de liberdade continuariam aumentando, como tem acontecido nos últimos 10 anos. No terceiro, o número de pessoas entrando e o tempo que ficam presas seria reduzido em 25% ou 50%, o que, segundo o estudo, poderia diminuir os casos de tuberculose no futuro.

Essas simulações mostraram que menos pessoas privadas de liberdade significaria menos tuberculose até 2034, o que sugere que políticas de redução no encarceramento poderiam ter um impacto positivo na saúde pública.

Cadeias de transmissão 

Estudos anteriores identificaram um elevado risco de tuberculose nas prisões da América Latina, concluindo que as notificações nas prisões  vem aumentando e são responsáveis por uma proporção crescente de todos os casos na região. Outras pesquisas nacionais ou subnacionais encontraram um risco elevado de transmissão da tuberculose, com “repercussão” nas comunidades, por indivíduos anteriormente privados de liberdade.

No entanto, segundo o estudo, a contribuição total da privação de liberdade para a epidemia mais ampla de tuberculose na América Latina, pela subdetecção nas prisões e pelos efeitos de “repercussão” nas comunidades,  nunca foi quantificada. O impacto regional de políticas alternativas de privação de liberdade na futura incidência de tuberculose na população é desconhecido.

Metodologia

Os pesquisadores criaram um cenário imaginário, no qual a quantidade de pessoas privadas de liberdade teria permanecido a mesma de 1990, e compararam com a situação real, onde o número de encarcerados cresceu muito. Essa comparação mostrou que quanto mais gente presa, maior o número de casos de tuberculose.

A pesquisa analisou qual porcentagem da tuberculose está relacionada ao encarceramento, principalmente em pessoas com 15 anos ou mais. Foram feitos cálculos para ver o que aconteceria se o número de pessoas privadas de liberdade fosse gradualmente reduzido ao longo dos anos, simulando um cenário onde, até 2009, o encarceramento fosse zerado. Após 10 anos sem novas prisões, os pesquisadores calcularam quantos casos de tuberculose ainda aconteceriam em 2019.

Essas estimativas foram comparadas com os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), que mostram os cinco maiores fatores de risco para a tuberculose: desnutrição, HIV, alcoolismo, tabagismo e diabetes. Embora esses fatores variem por idade e possam se sobrepor, a pesquisa destacou que a população carcerária é um fator de risco muito importante.

Com base na dinâmica de privação de liberdade, a pesquisa incorporou fontes de dados históricas e contemporâneas para explicar as diferentes taxas de rotatividade das prisões e os mecanismos subjacentes ao crescimento histórico de privação de liberdade.

A metodologia identificou os locais onde ocorre um excesso de casos e comparou os resultados com estimativas baseadas em notificações nas prisões. Em seis países com diversos contextos carcerários, os estudos sobre a distribuição e os determinantes dos problemas de saúde, fenômenos e processos associados mostram que a privação de liberdade é um dos principais fatores de risco da tuberculose, um cenário que tem sido sub-reconhecido até à data. Foi demonstrado também o impacto potencial de políticas alternativas de privação de liberdade na redução da futura carga de tuberculose em ambientes carcerários e na população em geral.

De acordo com o estudo, até s data, o verdadeiro impacto da privação de liberdade na epidemia de tuberculose em toda a região tem sido subestimado devido a um “foco estreito” nas doenças que ocorrem durante o encarceramento. A análise constantou que as intervenções que visam privação de liberdade podem ter efeitos “descomunais” sobre a epidemia mais ampla de tuberculose na América Latina – muito maiores do que anteriormente verificado.

Os pesquisadores destacam que essas intervenções devem incluir não só estratégias para reduzir o risco de tuberculose entre indivíduos atualmente e anteriormente em privação de liberdade, mas também esforços para acabar com a privação de liberdade em massa.

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Conta da tuberculose no Brasil supera US$ 1,3 bi entre 2015 e 2022

Outro estudo da Fiocruz, divulgado em 30 de outubro, avaliou o ônus econômico da tuberculose pulmonar, a relação custo-benefício da estratégia de tratamento e o esforço econômico necessário para atingir uma probabilidade de cura de 90% da doença no Brasil, ao longo de sete anos (2015–2022). Os resultados da pesquisa, coordenada pelo pesquisador da Fiocruz Bahia, Bruno Bezerril, foram publicados no periódico The Lancet Regional Health – Americas.

Os achados do estudo mostraram que o custo direto total da tuberculose pulmonar no Brasil durante os sete anos ultrapassou US$ 1,3 bilhão, com casos de retratamento respondendo por US$ 23,5 milhões. O menor Número Necessário para Tratar (TNN), medida estatística que indica o número de pacientes que precisam ser tratados para que um resultado desejado ocorra, foram as subpopulações de moradores de rua, pessoas que usam drogas e retratamento. Esses grupos também apresentaram o maior custo para atingir uma probabilidade de cura de 90%.

O trabalho analisou dados do Sistema de Informações de Agravos de Notificação (Sinan), comparando dois cenários: com e sem o Tratamento Diretamente Observado (DOT). A população foi dividida por histórico de tratamento e vulnerabilidades, como sem-teto, grávidas, usuários de drogas, pessoas com HIV, entre outros, para calcular o custo por paciente e a taxa de cura. O objetivo foi calcular quanto custa por paciente para atingir a taxa de cura recomendada pela OMS, usando modelos estatísticos para determinar esse custo em cada subgrupo.

A partir da discussão, os pesquisadores ressaltam a eficácia do Tratamento Diretamente Observado em vários grupos de pacientes, independentemente de suas vulnerabilidades ou histórico de tratamento anti-tuberculose anterior. Ao mesmo tempo, as análises do número necessário para tratar destacaram as subpopulações de retratamento, sem-teto e pessoas que usam drogas como as mais eficazes para a implementação do tratamento diretamente observado, e como possíveis alvos para estratégias de alocação de recursos em programas de controle da tuberculose.

A tuberculose é uma enfermidade que afeta principalmente populações mais vulneráveis, de países de baixa e média renda, como o Brasil, que enfrenta grandes desigualdades socioeconômicas. O impacto da doença não se resume à saúde das pessoas, mas também às finanças dos pacientes e do governo, exigindo altos investimentos para o tratamento.

O Brasil busca seguir as metas da Organização Mundial da Saúde (OMS) para reduzir custos e melhorar o combate à tuberculose, principalmente com o uso do tratamento diretamente observado, no qual um profissional de saúde ou assistente social acompanha o uso dos medicamentos pelo paciente.

Fonte: Agência Fiocruz

 

 

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