Muito mais que uma data comum, o dia 29 de janeiro, em que se comemora o Dia Nacional da Visibilidade Trans, é um marco na história do Brasil. “É um dia extremamente importante pois me faz lembrar que sou sobrevivente da transfobia. Já sofri tortura quando mais jovem… essa data é necessária como alerta para que esse tipo de falta de humanidade não aconteça mais com ninguém”, afirma a influencer Suellen Carey.
Assegurar a proteção social às pessoas transexuais e travestis é um grande desafio para as redes de assistência social, uma vez que, os direitos aos integrantes da comunidade LGBTQIAP+ têm sido historicamente negados. Apesar das importantes conquistas na área dos direitos trans nos últimos anos, há relatos diários de níveis crescentes de violência e discriminação, que constantemente colocam segmentos da população em risco.
Para a maioria dessas pessoas, todo esse cenário também aumenta a vulnerabilidade socioeconômica e os conflitos familiares e comunitários. Pessoas transexuais e travestis enfrentam dificuldades para se matricular e frequentar a escola, levando a altos índices de evasão, preparação para o mundo do trabalho, qualificação profissional, inserção no mercado de trabalho, acesso à saúde, entre outros.
A Suellen Carey é travesti e produz conteúdos para as redes sociais, dessa maneira, ela consegue dar voz a uma classe de pessoas, que por muitas vezes, não conseguem se impor, devido aos preconceitos da sociedade. “É muito importante que pessoas como eu consigam impor suas opiniões de maneira pública, que consigam levar uma mensagem da comunidade para o mundo”, afirmou ela.
Para Suellen Carey, as pessoas podem falar ‘mulher trans’ ou ‘travesti’, pois as duas formas estão corretas, porém, o termo ‘travesti’ é o preferido da maioria. “Não tem nenhuma diferença, cada uma escolhe como gosta de ser tratada. Eu gosto de me chamar de travesti, para poder quebrar o preconceito em cima desse termo”, concluiu a influencer.
Mais que um amor de Carnaval
Por Dandara Vital*
Pelo título deste artigo alguns de vocês podem ter chegado aqui pensando em se tratar de um texto de amor. Mas falarei da falta dele. Não que eu, uma mulher trans, travesti, não sinta amor, a gente sente, somos amadas. No Carnaval ninguém é de ninguém. Mas a quarta-feira de Cinzas chega e a triste realidade também. Sentimos falta de sermos assumidas.
Falta aquela mão dada na volta pra casa, falta dividir aquela casquinha de sorvete no shopping, falta aquele beijo roubado na porta do Metrô, falta selinho na despedida de um casal entre os ramais dos trens da Supervia. Imagina sermos amadas a tal ponto que um craque do futebol pudesse dedicar um gol para sua namorada mulher trans ou travesti?
Nesse mês da visibilidade trans, uma coisa martela na minha cabeça desde a Copa do Mundo do Catar, além de nossos corpos terem sido desconvidados do evento, refleti sobre o craque francês Mbappé e a modelo trans Ines Rau. Se são namorados? Não sei. Muita especulação. Faltou o “Pega na mão e assume”, né, Lud?
Quando li a manchete das matérias de Mbappé e sua “namorada modelo trans”, eu vibrei por ver uma mulher trans sendo assumida por um homem público e que vem de um ambiente extremamente machista, pensei, em um primeiro momento que estava acontecendo: um mulher trans sendo amada e assumida.
Mas a alegria acabou ao ler o que estava no teor das reportagens. Nas matérias, antes das palavras “namoro” e “namorada modelo trans” tem a palavra “suposto” ou “suposta”. Mbappé nunca falou sobre o namoro, nunca assumiu a modelo e agora surgiu uma nova namorada, uma mulher cis – pessoa que não é trans – que muitos sites e jornais dizem que é para “limpar sua barra”.
Logo me vem à memória a Camilla de Castro, que foi a primeira travesti que vi falando em rede nacional sobre amar e ser amada. Camilla falava abertamente que tinha como o grande sonho de sua vida casar de véu e grinalda. Por conta disso, era tratada com diversos adjetivos capacitistas que não devemos usar, também era tida como “bêbada demais”, “drogada demais” para falar tanta verdade. Algo que doía noutras travestis e mulheres transexuais, que em pleno ano de 2005, estavam presas em um sistema que pouco se falava sobre direitos de pessoas trans e despontava uma “sem juízo” para falar sobre “afetos”.
A verdade é que Camilla sempre foi a frente de seu tempo. Em um dos seus manuscritos – ela sempre foi de colocar suas emoções e sentimentos no papel – retirado do livro “A inevitável história de Letícia Diniz”, onde o autor recebeu grande parte dos seus textos, disse:
“Passamos nossos dias amontoadas em guetos, escondidas da sociedade. Vivemos nossas vidinhas exóticas no curto espaço da madrugada. De madrugada a cidade é nossa! Porque é o nosso único momento de glória: desfilar na passarela da Lapa, pro embasbacamento das mariconas em seus carrões. É pra isso no fundo que a gente acaba vivendo.
Por esses “momentozinhos” de ilusão, de glamour… A gente passa a apreciar até mesmo os clientes mais nojentos, porque eles tiveram o bom gosto de escolher a gente entre um monte de outras beldades… Porque eles desejam a gente, ficam de pau duro por causa da gente… E tem sempre uns que são mais carinhosos, te fazem um afago, conversam, dizem umas palavras bonitas no teu ouvido, prometem coisas…
E por esses… Por esses eu sempre me apaixono… Sempre… E quebro a cara, sempre… Porque esses, que valem a pena, nunca aparecem de novo… Não tem coragem de assumir uma travesti por mais que gostem dela de verdade. Travesti é uma raça muito, muito carente… Uma raça sem amor… Para quem o amor é negado… Sempre… Para sempre…”.
Ao comparar o que escreveu Camilla de Castro em 2005 com o caso que abre esse texto podemos refletir muito. Em um trecho da sua carta de despedida, Camilla disse que não suportou e se jogou do sétimo andar do prédio onde morava, que esse não seja o destino de Ines.
A questão é que pessoas trans, mesmo que a passos lentos, vêm conquistando seu espaço, mas esta luta ainda é desafiadora, tendo em vista que muitos brasileiros ainda querem dizer quais banheiros devemos usar. Imagina se preocupar o quanto nós somos minadas do amor e colocadas em um lugar de desilusão, nos fazem acreditar que não somos nem dignas de sermos amadas.
Fazem 17 anos da morte de Camilla de Castro. As palavras de Camilla são atemporais e todas as suas solitárias denúncias relacionadas à saúde mental de pessoas trans ainda continuam sem evolução. Não somos somente um amor de Carnaval.
Dandara Vital, travesti, atriz e militante LGBTQIA+.
Com Assessorias