Na complexa tapeçaria da adoção, em que histórias de vidas se entrelaçam em busca de novas uniões familiares, o conceito de adoção tardia emerge como uma temática desafiadora, revelando preconceitos e necessidades que clamam por atenção.
No Brasil, cerca de 5 mil crianças e adolescentes estão em situação de acolhimento institucional ou familiar atualmente. Entretanto, há uma significativa disparidade em relação à faixa etária deles, pois mais de 77% desse total equivalem às crianças acima de 8 anos de idade e aos adolescentes, de acordo com os dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), coordenado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
De outro lado, mais de 35 mil pessoas e/ou casais estão habilitados, à espera de seus filhos adotivos. Entre os caminhos deles, há uma certa resistência ao que é comumente chamado de adoção tardia.
O psicólogo João Caffia, 42, e sua companheira, a advogada Michele Caffia, 42, sempre pensaram em terem ao menos dois filhos, considerando na possibilidade de a família adotar um deles. Em 2015, Michele engravidou e tiveram seu primeiro filho, Eduardo.
Com o passar dos anos e o desenvolvimento do primeiro filho, o desejo de ter mais um filho se mantinha, que também era motivado pelos inúmeros pedidos do primogênito.
Nós sempre quisemos uma família com ao menos dois filhos, porque vemos a importância da convivência entre irmãos. Mas romantizam muito a maternidade e eu não estava mais disposta a passar por todo processo da gravidez e de ter uma criança recém-nascida novamente”, comenta Michele.
O casal começou a buscar mais informações e cursos voltados a quem tem o interesse em adotar, antes mesmo de se direcionarem a Vara da Infância da sua região. Um ano depois, em 2019, o casal entrou com a documentação necessária no fórum da região em que moram e durante todo o processo, João e Michele participaram de inúmeras palestras, cursos obrigatórios e preparatórios para que entrassem na fila da adoção, que devido a pandemia só ocorreu em 2021.
Casal adota menina com 9 anos de idade
Inicialmente o casal optou por crianças de 5 a 8 anos, mas depois estenderam até 9 anos, sem distinção de raça, mas com preferência para uma menina.
As pessoas falam ‘nossa que bonito o que você fez’. Nós não somos salvadores. Definimos o perfil da criança, de acordo com a nossa realidade, não há romantização. Nós nos preparamos muito para a chegada da nossa filha, não é um ato de bondade”, salienta Michele.
Em 29 de maio de 2023, o fórum informou ao casal que havia uma criança com o perfil que eles esperavam e que eles aguardassem o contato do abrigo para conhecê-la. A criança, Esther, uma menina de 9 anos, estava acolhida em uma das unidades do abrigo da ONG PAC (Projeto Amigos da Comunidade), que acompanhou e realizou o processo de aproximação e visitas.
A responsável pelo abrigo, entrou em contato e agendamos a visita para a semana seguinte. Levamos o Eduardo com a gente, quando eu vi meus filhos juntos, brincando e se conhecendo, eu tive a certeza que a Esther era minha filha”, conta emocionada Michele.
João e Michele, passaram a realizar as visitas de aproximação, onde a família visitava Esther regularmente, ao menos três vezes na semana, apesar da distância do SAICA em relação a residência. A intenção era estabelecer um vínculo com a Esther e entender as dinâmicas do dia a dia dela.
Queríamos nos mantermos próximos. Nós passávamos o dia com ela, os almoços, acompanhávamos a rotina, sempre com a supervisão das assistentes sociais. Um espaço estruturado, com profissionais preparados para cuidar das crianças e que fazem verdadeiros milagres com os recursos que tem. Além de toda a dinâmica de visitação ser planejada para não atrapalhar as atividades a rotina das demais crianças”, afirma.
‘Criança dá trabalho, não importa a idade‘, diz mãe adotiva
Após um mês e meio de visitas ao abrigo, o casal recebeu a guarda provisória da criança e atualmente já possuem a guarda definitiva. “É preciso desromantizar a adoção, assim como a maternidade, não é simples. Mas para nós a adoção tardia foi ótima e acredito que nos preparar tornou o processo mais fácil. As pessoas têm muito preconceito com adoção tardia, mas precisam entender que criança dá trabalho, não importa a idade, nós é que somos os adultos capazes de nos adaptar e não o inverso”, comenta Michele.
Para o casal a adaptação da filha à casa, rotina e nova escola foi tranquila, o que facilitou o processo foi a paciência e principalmente a comunicação e estarem abertos a ouvi-la. “Quando ela chegou ficava mais calada, perguntávamos e ela acuava, mas sempre deixávamos claro que ela podia falar sempre e aos poucos ela foi falando, e hoje é natural”, aponta João.
Sobre o processo de adoção tardia e o tempo na fila, o casal enfatiza:
O pretendente quando entra na fila já quer que a criança chegue logo, mas é preciso paciência, assim como na gravidez. Para nós o processo foi rápido e com certeza a idade foi um fator determinante”, finaliza Michele e João.
‘É preciso desmistificar e incentivar a adoção tardia’
‘De acordo com Fernanda Figueiredo, gerente de Desenvolvimento Institucional e responsável pela implementação de três SAICAs na ONG PAC (Projeto Amigos da Comunidade), é preciso desmistificar e incentivar a adoção tardia. No Brasil apenas 20% das crianças e adolescentes acima de 8 anos que estão em abrigos para adoção, são considerados pelos pretendentes.
Nossa sociedade ainda carrega a ideia de que adotar uma criança com idade acima de 8 anos, é algo complexo e que só é possível ao ter casa própria, patrimônio avaliado, entre outros quesitos. O que não é verdade. Para realizar adoção tardia, assim como de outras faixas etárias o processo é o mesmo”, salienta Fernanda.
Segundo ela, a idade mínima para o pretendente é de 18 anos, desde que seja respeitada a diferença de 16 anos entre quem deseja adotar e a criança a ser acolhida.
Elas possuem bagagens emocionais e vivências assim como outras crianças. Por isso, a preparação e as etapas são fundamentais para resguardar tanto a criança como a família pretendente. Quanto mais preparados esses pretendentes estiverem, mais seguros e abertos as possibilidades de adoção eles estarão” reforça Fernanda Figueiredo.
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O conceito de adoção tardia não é fixo, passa por modificações constantes e não encontra definição legal. O que existe é uma variação de acordo com a realidade da predileção externada pela maioria dos pretendentes à Adoção, apontando para idade de crianças superior àquela que esteja no topo das preferências.
Ainda existe uma crença de que crianças mais novas vêm como uma ‘folha em branco’, como pessoas ainda livres de vícios de personalidade, que poderão ser moldadas desde o início pelos pais. Há duas décadas, quando grande parte dos pretendentes optava por crianças até dois anos, a adoção de crianças de três anos já era considerada tardia”, destaca Jussara Marra, presidente da Angaad (Associação Brasileira de Grupos de Apoio à Adoção).
Isso reflete um cenário composto por um grande estigma acerca do que a criança ou o adolescente viveu antes de ser encaminhado para a Adoção, seja em sua família de origem, seja no acolhimento.
Hoje, crianças acima de oito anos de idade são consideradas dentro do espectro tardio, o que, de certa forma, é positivo no ponto de vista do aumento da faixa etária. Contudo, mesmo com as modificações, parte dos pretendentes busca crianças de até cinco anos, brancas, sem doenças graves e/ou deficiências, sem grupos de irmãos, com predileção por meninas.
‘Nunca é tarde demais para se tornar filho, para se tornar família’
Outra mudança em discussão diz respeito ao termo “Adoção Tardia”. Apesar de ser popular, tem caído em desuso por quem trabalha na seara da adoção. “Embora ainda seja uma expressão bem comum, a justificativa para que seja substituída é a de que nenhuma Adoção é tarde demais. Nunca é tarde demais para se tornar filho, para se tornar família”, conta Jussara Marra.
Algumas terminologias, então, têm surgido para substituição, como adoção de crianças mais velhas e adolescentes, a fim de quebrar paradigmas. Há opiniões diversas sobre a necessidade de uma modificação, portanto uma reflexão é mais que necessária.
Soraya Pereira, psicóloga, assessora de Psicologia da Angaad e presidente do grupo de apoio à convivência familiar e comunitária Aconchego, de Brasília, acredita que o termo continua atual e esclarecedor.
“=Já te diz, não no sentido de que toda Adoção tem que ser privilegiada. Para nós, do Aconchego, quando falamos em Adoção tardia, a gente pensa o seguinte: ‘por que eu te encontrei tardiamente?’. É no sentido de ‘por que esse encontro de criança, adolescente e adotante não aconteceu mais cedo?’”, ela diz. “É uma discussão que sempre existirá, da mesma forma que filho biológico e filho consanguíneo. Não acredito que existirá um único termo e sim vários. O importante, a meu ver, é que toda Adoção é necessária.”
Desafios burocráticos
Enquanto a burocracia, por um lado, desempenha um papel essencial na preparação dos adotantes, ao longo do tempo decorrido, o qual deve ser aproveitado para elaboração de diversas questões internas, existem demoras injustificadas durante o acolhimento.
Muitas vezes, esse impasse é decorrente de limitações de equipes técnicas, acúmulos de processos em Varas Judiciais e, claro, os excessos na busca pela família biológica. Percebe-se um favorecimento injustificado ao biologismo, por meio de contato desmedido com parentes sem qualquer vínculo afetivo e/ou proximidade com a criança ou o adolescente.
O tempo vai passando, as crianças e os adolescentes vão ficando mais velhos e, com os perfis de adotantes indicando, em sua maioria, crianças menores, o que vemos é o tempo ir contra a adoção dessas crianças”, lembra Jussara.
Além disso, na Adoção de crianças mais velhas e adolescentes, encontra-se uma grande dificuldade em entender que a idade que o documento de registro mostra não condiz com aquela que se vê demonstrada por atitudes e comportamentos.
Podem ser diversas as razões de desenvolvimento ainda incompleto de competências previstas para a faixa etária, que vão merecer maior atenção e dedicação para que sejam recuperadas.
Quem quer adotar uma criança maior ou um adolescente precisa ter esse perfil, pois existe uma certa crença de, por exemplo, a pessoa falar: ‘trabalho na área da Educação, sei lidar’. Mas uma coisa é ser mãe ou pai e outra é ser professora ou professor, sabe? Por isso eu acredito que precisamos trabalhar muito essa questão, para que as pessoas não se enganem, não se frustrem após a Adoção. Não achem que, sem preparação, darão conta de todos os cuidados que a criança ou que o adolescente precisa”, complementa Soraya.
A Adoção tardia no Brasil é uma questão complexa que envolve desafios emocionais, sociais e burocráticos. No entanto, criar condições seguras de acesso a um lar afetivo e permanente para crianças mais velhas e adolescentes é uma oportunidade de lhes proporcionar amor, estabilidade e um futuro promissor. Com maior conscientização dos profissionais, com a preparação devida dos acolhidos e dos pretendentes, com o apoio governamental para mudanças no sistema de acolhimento, é possível superar esses desafios, diminuir ou cessar a violência do acolhimento prolongado e dar a possibilidade de crescerem em um ambiente amoroso e acolhedor.
Processo de adoção não deve começar pela busca da criança, visitando abrigos
A criança que está na fila para adoção, está sob tutela do Estado, que conta com uma grande rede de articulação composta Conselho Tutelar, Vara da Infância e Abrigos, que visa a proteção e garantia de seus direitos.
Ao contrário do que se propaga, o processo de adoção não deve começar pela busca da criança, visitando abrigos, por exemplo. O pretendente deve dirigir-se a Vara da Infância de sua região com a documentação necessária para iniciar o processo. No site do CNJ é possível encontrar o passo a passo para adoção (clique aqui).
A criança que está no serviço de acolhimento, foi destituída da família por algumas razões e estão vulneráveis emocionalmente e socialmente. Essa é um dos motivos para o processo iniciar junto aos pretendentes primeiro, para prepará-los para acolher e entender o compromisso da adoção”, comenta Marisa Stefanelli, chefe de Psicologia da Vara da Infância e Juventude, da Lapa.
Após as visitas, a criança ou adolescente, passa a visitar a família pretendente aos finais de semana, que é avaliada, para na sequência ter a guarda provisória, que permite que a criança permaneça com a família até a guarda definitiva ser concedida.
O processo de adoção é delicado para a criança. No caso da adoção tardia, há uma expectativa ainda maior, porque infelizmente eles percebem que quanto mais elas crescem, mais difícil de serem adotadas. Isso, gera frustração e ansiedade. Por isso, a equipe atua em conjunto, acompanha de perto para a criança vivenciar esse processo da melhor forma possível”, aponta Norma Gonçalves, assistente social de uma das unidades da ONG PAC há mais de 3 anos.
A ONG PAC (Projeto Amigos da Comunidade), que abriga cerca de 45 crianças adolescentes com idades entre 0 e 18 anos, em três SAICAs, conta com uma equipe de profissionais dentre assistentes sociais, psicólogos e pedagogos para atuar de forma multidisciplinar de acordo com a necessidade de cada criança.
Com Assessorias