Em 2019, Daniel Wainstock, um jovem estudante de Direito do Rio de Janeiro, hoje com 23 anos, conheceu Maria Eduarda, que tem fibrose cística, a doença genética rara mais comum da infância, que atinge cerca de 92 mil pessoas em todo o mundo e mais de 3.200 no Brasil. Também conhecida como a ‘doença do beijo salgado’ ou mucoviscidose, essa doença progressiva e multissistêmica impacta principalmente pulmões, pâncreas, fígado, trato gastrointestinal, seios nasais, glândulas sudoríparas e o sistema reprodutor. 

Apesar disso, Duda levava uma vida normal – cursava a faculdade, participava das festas, era cercada de amigos. Mas precisou largar os estudos, família e amigos e ir para os Estados Unidos para ter acesso à medicação que poderia melhorar significativamente sua qualidade de vida. O Trikafta custa mais de US$ 300 mil (mais de R$ 1,5 milhão) anualmente e Eduarda foi uma das únicas brasileiras a conseguir o medicamento pelo Centro de Fibrose Cística da Universidade de Miami.

Ela teve sorte porque a grande maioria dos brasileiros com doenças raras não pode viajar para tão longe e acaba morrendo por não ter acesso a tratamento”, diz Daniel sobre a então colega da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica (PUC), uma das mais caras do Rio de Janeiro. 

Em 2020, o medicamento que Duda precisava chegou finalmente ao Brasil, após uma luta travada pelo Instituto Brasileiro de Atenção à Fibrose Cística. Conhecida como Unidos pela Vida, a entidade, que é formada por pacientes e familiares – liderou um abaixo-assinado com adesão de mais de 170 mil pessoas para que a fabricante Vertex Pharmaceuticals encaminhasse a documentação para a Anvisa – Agência Nacional de Vigilância Sanitária. 

O registro na Anvisa é o primeiro passo para a introdução de qualquer nova medicação no Brasil, nacionais ou importadas. Somente em no final de maio de 2024, sete meses após a aprovação da Conitec – Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde, o medicamento que Duda precisava chegou ao SUS. Com isso, passa a beneficiar os 1.700 pacientes de fibrose cística acima de 6 anos no Brasil, que dependem de tratamento pela rede pública. 

‘Todos têm direito a uma vida digna’

A história de Duda inspirou Daniel a se interessar pelos estudos sobre Direito em Saúde e Doenças Raras. Desde novembro de 2023, ele atua como consultor da Frente Parlamentar de Doenças Raras do Estado do Rio de Janeiro, criada na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). E é um dos principais nomes por trás do recém-criado Estatuto da Pessoa com Doença Crônica Complexa e Rara.

De autoria do deputado Munir Neto (PSD), a nova lei foi aprovada em tempo recorde na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) e está em vigor desde 10 de abril, após sanção do governador Cláudio Castro – saiba mais aqui. “Todos têm direito a uma vida digna, com acesso à saúde – inclusive mental; à educação, aos transportes, ao mercado de trabalho. É preciso enxergar a questão das doenças raras por uma visão mais holística”, defende Daniel.

Em entrevista à jornalista Adriana Santos, no canal Ken Comunicação, no Youtube, ele fala mais sobre a jornada que o levou a se tornar uma das mais jovens vozes no mundo das doenças raras no Brasil, em apenas quatro anos. Hoje, ele se dedica a pesquisas em Direito da Saúde pela PUC-Rio e pela  Universidade de Georgetown (EUA); colabora para a Frente Parlamentar das Doenças Raras do Congresso Nacional e faz parte da Aliança Global de Doenças Raras. 

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O dilema dos medicamentos órfãos

Intrigado com as dificuldades enfrentadas pela amiga Duda para ter acesso ao tratamento para fibrose cística, inicialmente Daniel queria entender por que o Brasil não tinha incentivos para incorporação dos chamados “medicamentos órfãos” para doenças raras. “Muitos laboratórios não tinham interesse, nem pedido na Anvisa. Isso ocorre porque o processo é longo e custoso”, conta. 

Segundo ele, medicações para doenças raras chegam a custar 25 vezes mais caro do que outros medicamentos e somente 5% das enfermidades e síndromes contam com medicamentos realmente eficazes para combatê-las. “Tem remédio que custa 1 milhão ou 2 milhões de reais. A mídia gosta de explorar isso, mas a gente não  pode pensar assim. A vida não tem preço”, diz.

Daniel também refuta a alegação de que doenças raras atingem poucas pessoas e, portanto, não precisam ser priorizadas: “Se pegar a estatística, não são poucas pessoas com doenças raras.  São 15 milhões só no Brasil. No mundo são mais do que câncer ou Aids. São mais de 8 mil doenças raras no mundo”. 

Por isso, na Aliança Global de Doenças Raras, um dos lemas é ‘somos raros, mas somos muitos’. “Se o motivo para negar o acesso à saúde é o número limitado de pessoas, esse é fraquíssimo, não cola. Não há argumento suficiente para violar direito”, disse.

A voz e a vez dos raros

Sessão solene no Palácio Tiradentes, em fevereiro, foi conduzida por pessoas com doenças raras, que propuseram ideias de leis (Fotos: Divulgação Alerj)

Daniel decidiu dar voz e emprestar seus ouvidos para entender as reais necessidades dessas pessoas com doenças raras e aprender com elas. Começou a conversar com pessoas em situação de vulnerabilidade social para entender quais eram as principais barreiras e pensar em propostas de políticas públicas que pudessem, de fato, atendê-las, mas não apenas com acesso à medicação. “Elas me deram lições valiosíssimas de como enxergar a vida”, conta. 

Como muitos jovens sonhadores, Daniel sempre foi um crítico da forma como as leis são criadas no Brasil. “As políticas são desenhadas de cima para baixo. Mas neste caso, foi de baixo para cima. Pacientes de baixa renda e suas famílias fizeram propostas de leis. Muitas mães atípicas são mães solo, de baixa renda, cujas vozes não são ouvidas”, diz Daniel. 

Para o jovem pesquisador, escutar as pessoas, conhecer suas necessidades reais é a chave do sucesso na construção de políticas públicas. “E a Frente faz isso muito bem. Sempre muito aberta em acolher e escutar, em especial as pessoas mais impactadas”, diz Daniel. Aos políticos, ele manda um recado: “Escutem as pessoas, leis só serão eficazes se elas forem ouvidas. As legislações mais eficazes são baseadas em evidências e escutam as pessoas. Precisamos de leis que sejam sustentáveis e funcionem na prática”.

Da Ciência às políticas públicas

Daniel decidiu transformar a experiência em um artigo científico, assinado junto com Amiel Katz, da Universidade de Harvard, e publicado em janeiro de 2023 na edição latino-americana da The Lancet, uma das revistas científicas mais respeitadas do mundo. 

O artigo ‘Advancing rare disease policy in Latin America: a call to action’ (Avançar na política de doenças raras na América Latina: um apelo à ação‘) aborda o tratamento de pacientes que, diferentemente de outras doenças crônicas e raras, não precisam de medicamentos, mas de outros insumos, como o protetor solar para as pessoas com lúpus e fórmulas especiais de alimentação para quem sofre com doenças metabólicas

“Entendemos que essas pessoas precisavam de outros mecanismos de saúde que eram igualmente importantes, mas não tão óbvias. No caso do lúpus, o filtro solar não é cosmético, não é luxo, é o que vai dar saúde ao paciente, Se não passam, têm crises. O mesmo acontece com pessoas que têm albinismo, vitiligo, queimaduras ou outras doenças de pele, que precisam passar filtro solar todo dia, quatro a cinco vezes por dia. Esse produto é caro e se torna inacessível.

Efeito multiplicador

Depois desse artigo, conta ele, a mídia começou a se interessar pelo tema e Daniel deu muitas entrevistas para a grande imprensa brasileira.  Com a visibilidade alcançada, passou a dar palestras sobre o tema e despertou o interesse do poder público. 

“Políticos me chamaram para colocar essas ideias em prática. A ideia é ação, ter só no papel não vale nada. Hoje sou grato ao deputado Munir Neto por me convidar a fazer parte da Frente Parlamentar e poder colocar essas ideias em prática”, diz ele.

A grande conquista veio com a aprovação do Estatuto dos Raros, o primeiro do país. Para além do ineditismo, o melhor de tudo é o efeito multiplicador dessa nova legislação. “Outros estados não têm ainda uma lei como essa. A ideia é que inspire e incentive; que seja realmente uma força motriz para outros estados”, diz Daniel.  

Enquanto outros estados não criam seus próprios estatutos, o Rio de Janeiro se torna uma referência. “O Estatuto não vale só para o Rio. Se uma pessoa está fora do estado e precisa ter acesso, pode entrar em contato com a Frente que vamos ouvir e dar voz a ela”, afirma.

Quem paga a conta?

Um dos pontos mais difíceis na jornada do paciente é conseguir o medicamento, geralmente caro e inacessível. Por isso, muitas vezes, não resta outra saída às famílias de pessoas com doenças raras a não ser a judicialização. 

“O direito à vida e à saúde é um direito universal, um direito de todos nós. Não importa se a pessoa é de baixa renda, se mora longe de centro urbano, se tem doença rara ou não. É dever do Estado oferecer acesso à saúde de qualidade. Se não fornece (uma medicação), não julgo as pessoas que vão à Justiça. Muitas vezes elas precisam disso para salvar a vida dos filhos”, comenta o pesquisador.

Para Daniel, no entanto, judicializar não deve ser a única via e sim a última. “Pessoas que têm doenças raras têm pressa, não podem esperar. Não podem depender do juiz”, pontua. Ao mesmo tempo, reconhece, isso tem que ser sustentável para o poder público e não gerar um rombo no orçamento. “Se vai à Justiça, o preço é mais caro”. 

Compartilhamento de risco

Então, como equacionar essa difícil equação? Como incorporar uma medicação de alto custo ao SUS e garantir seu acesso para quem precisa? Para Daniel, é preciso criar uma gestão pública que seja eficaz e efetiva para ter acesso de forma rápida, na ponta, sem precisar da Justiça. De acordo com o futuro advogado, existe uma forma alternativa, barata e acessível e outros países já têm feito isso. 

“Algumas estratégias têm sido muito eficazes”, disse, citando como exemplo, o “termo de risco compartilhado”. Esse tipo de acordo atrela o pagamento pela performance, pelo resultado do medicamento incorporado ao SUS. O Ministério da Saúde passou a adotar essa prática a partir de 2022, em medicamentos para tratar a Atrofia Muscular Espinhal (AME), cujo custo chega a R$ 6 milhões por paciente. 

O drama das mães solo atípicas

Apesar de o acesso a medicamentos de alto custo ganhar mais visibilidade na corrida pela vida, a vulnerabilidade social permeia o contexto de enfrentamento dessas doenças raras no Brasil. “Quem exerce o papel de cuidado em geral são mães-solo. Após o diagnóstico, o pai abandona a família, não paga pensão. Elas não têm emprego ou precisam largar a profissão para cuidar do filho. Outras não têm fonte segura e estável de renda. Algumas dirigem Uber”, conta Daniel. 

Por isso, ajudar essa mãe na inclusão no mercado de trabalho é fundamental. Além disso, crianças com doenças raras crescem, viram adultos, e também precisam trabalhar. O acesso ao trabalho – não somente para os raros, mas seus familiares e cuidadores – é um dos direitos assegurados no Estatuto dos Raros. 

Daniel lembra que famílias que têm filhos com doença crônica, rara ou com deficiência têm direito ao Loas, um benefício federal criado em 1993 pela Lei Orgânica da Assistência Social, equivalente a um salário mínimo mensalmente. Mas esse recurso, geralmente, é insuficiente para arcar com todas as despesas, já que muitas mães atípicas não conseguem trabalhar porque precisam cuidar dos filhos. 

Transporte e educação

Segundo o pesquisador, o impacto das doenças raras acaba sendo muito maior nessas famílias já fragilizadas socialmente, afetando mães, irmãos, vizinhos, escolas. Um estudo recente aponta que 75% dos irmãos de pessoas com doenças raras que não têm enfermidades não vão à escola porque a mãe trabalha e eles cuidam dos irmãos. “As políticas públicas precisam enxergar a mãe, o irmão, o vizinho, a escola. O impacto das doenças raras vai além da saúde, é muito mais abrangente”, destaca Daniel.

Outra dificuldade é o transporte. Muitas pessoas com doenças raras moram longe de grandes centros urbanos, precisam de ônibus, metrô e trem, até para o tratamento médico. O acesso à educação é outra dificuldade. Por isso, além da gratuidade nos transportes públicos para pessoas com doenças raras e familiares, o Estatuto determina prioridade na matrícula em escolas públicas e privadas.

“Muitas crianças voltam chorando para casa porque sofreram bullying. Algumas dessas doenças afetam o pulmão, coração. Outras são visíveis, na pele, e essas pessoas sofrem ainda mais. A diversidade no ambiente escolar é muito importante. É preciso ter escolas que acolham, que sejam inclusivas e acessíveis”, diz Daniel. 

Apoio biopsicossocial

Outra questão contemplada no Estatuto dos Raros é a saúde mental. Daniel cita o conceito de saúde da OMS – “saúde não é apenas ausência de doenças, mas o completo estado de bem estar físico, mental e social” – para definir a essência do Estatuto dos Raros.

É preciso enxergar que o cuidado com o filho gera desgaste emocional. Muitas dessas famílias enfrentam questões de saúde mental relevantes, como ansiedade, depressão, crise de pânico”, diz Daniel.  

Segundo ele, outras leis na área são muito focadas na saúde, no atendimento em hospitais, no diagnóstico precoce. Já no Estatuto dos Raros, o cuidado vai muito além de saúde ou do acesso a medicamentos – pode envolver fornecimento de filtro solar ou de fórmulas especiais, fisioterapia, fonoaudiologia, saúde mental.

“Por isso é tão simbólico e histórico. Porque inclui não apenas questões de acesso a medicamentos e diagnóstico precoce, que é muito importante. O contexto social onde a pessoa vive tem impacto direto na saúde dela. São os chamados ‘determinantes sociais da saúde’”, explica Daniel.

Por isso, segundo ele, é importante criar formas e mecanismos não só para ter acesso à saúde, mas para o sistema como um todo – educação, trabalho, transporte. 

“É preciso entender que saúde vai além de remédio. Isso é inovador. O Estatuto traz um o olhar mais abrangente, mais holístico, sobre as doenças raras. Entende a pessoa além da doença dela, de forma direta e indireta, implícita e explícita”,

O ponto de partida

Para Daniel, o acesso a direitos vai muito além. “Nossa missão na Frente é criar um estado que seja inclusivo para todos. Que tenha escolas públicas que sejam acessíveis. Que garanta assistência em saúde para todos. Um mercado de trabalho que não discrimina pela cor de pele, pela sexualidade, pela doença que a pessoa tem. Todos merecem vida digna”.

E não pensem que o trabalho termina com o lançamento do Estatuto dos Raros, ao menos no Estado do Rio. “Mesmo que o texto tenha incluído muitas coisas importantes, não acaba aqui. A gente está aberto a ouvir sugestões para criar mais leis, novas  propostas públicas para acesso a direitos. Isso não é o fim. É o início, é o ponto de partida”. 

 

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