O médico sanitarista José Gomes Temporão, de 68 anos, está no principal “grupo de risco” para a Covid-19, assim como a mulher, de 65, e confinado em sua casa como dezenas de milhões de brasileiros. Mas não é isso que o angustia nessas últimas semanas e sim a impotência diante das enormes dificuldades que o país vai atravessar. Com a experiência de quem foi ministro da Saúde durante todo o segundo mandato de Lula, quando enfrentou a epidemia de H1N1 em 2009, ele desenha um cenário dramático para as próximas semanas no Brasil.
Caminhamos para um colapso da saúde pública e o grande responsável é o presidente da República, que vem colocando em risco a saúde da população brasileira. Vamos assistir nas próximas semanas milhares de brasileiros morrendo por conta da irresponsabilidade de nossos governantes”, aponta.
Segundo Temporão, o SUS vai salvar muitas vidas, comprovando a importância de um sistema universal de atendimento em saúde pública, mas vai mostrar também muitas fragilidades, por conta da brutal desigualdade social no país, um agravante do quadro mundial da pandemia.
O ex-ministro analisa a atual crise política e econômica brasileira, que prejudica as ações da Saúde no combate à pandemia de Covid-19, sob três dimensões: a importância do Estado, o respeito à ciência e o fortalecimento do SUS. Nesta entrevista à jornalista Ana Helena Tavares, ele comentou cada uma delas e aponta como deve ser o “novo normal” por aqui.
“Temos o pior dos cenários: crise econômica, crise política e crise sanitária. As condições políticas que o Brasil vive estão comprometendo drasticamente a capacidade de o país responder com qualidade a esse desafio de saúde pública. Caminhamos para um colapso da saúde pública e o grande responsável por essa questão, em última análise, é o presidente da República, que vem se portando de maneira irresponsável, colocando em risco a saúde da população brasileira.
Eu diria que o que vamos assistir nas próximas semanas serão milhares de brasileiros morrendo por conta da irresponsabilidade de nossos governantes. Porque o que está levando grande parte das pessoas a romperem com o isolamento social é a impossibilidade de sobreviverem em casa. 40 milhões de trabalhadores que trabalham por conta própria. 11 milhões de desempregados. E as medidas econômicas que o governo anunciou até agora são risíveis. Os 600 reais que não estão nem chegando às pessoas adequadamente.
Quando nós precisaríamos nesse momento de uma política anticíclica, totalmente heterodoxa, com uma renda universal, com investimentos maciços na área de saúde, com uma reconversão da nossa indústria para a produção de equipamentos e insumos para o SUS. Nada disso você vê o governo discutir. Então, é pouco sério nesse momento defender retorno ou flexibilização do isolamento social. O fluxo de veículos nas cidades aumentou, as pessoas estão saindo de casa, e isso aponta para um cenário muito dramático nas próximas semanas.”, avalia.
Sobre o papel do Estado, Temporão acredita que tudo o que estamos vivendo serve para desnudar “a falácia de que o mercado tudo resolve e que o Estado é a grande causa de todos os problemas do Brasil”. Ele acredita que “a situação econômica vai ficar no chão e sem o Estado forte que lidere o processo de reerguimento da economia nós não vamos avançar”. Sobre a questão da ciência, o sanitarista considera “inadmissível que a gente consiga viver num país como o Brasil com um governo que nega e despreza a ciência, e ainda ataca os cientistas”. Já sobre o SUS, o ex-ministro aponta a necessidade de se repensá-lo e fortalecê-lo, garantindo sua sustentabilidade econômica.
H1N1 X COVID-19
Em 2009, o mundo enfrentou outra crise sanitária com o vírus H1N1, que começou no México e teve a capacidade de passar de suínos para humanos. Não era um coronavírus, mas sim da família influenza. Temporão comenta as semelhanças e, principalmente, as diferenças, e explica por que, naquela época, não houve necessidade de isolamento social global como vemos hoje:
“Eu estava outro dia revendo notícias de abril e maio de 2009 e a sensação de impotência, de medo, de insegurança, era tudo muito parecido com o que se viu no Brasil dois meses atrás. Mas as diferenças são muito expressivas. Primeiro, naquela época nós tínhamos medicamento. No caso do coronavírus, não temos.
Segundo, tivemos condições de num tempo muito curto haver vacina. Isso porque o vírus H1N1 é da família influenza, para a qual já havia vacina. Essa que se toma regularmente. E o Instituto Butantã, em São Paulo, é dos maiores produtores de vacinas no mundo. Então, em janeiro de 2010, o Brasil já teve condições de vacinar 100 milhões de pessoas. Metade da população. Foi o país que mais vacinou no mundo.
E terceiro, percebeu-se rapidamente que a letalidade do H1N1 era muito semelhante à letalidade dos outros vírus influenza. Vários estudos já apontam que a letalidade do coronavírus é muito maior. E as pessoas com coronavírus (em estado grave) necessitam ficar internadas por mais de 15 dias. São diferenças muito importantes que levaram a que naquele momento não fosse necessário uma estratégia de contenção, de isolamento, como hoje. Ou seja, este vírus é muito mais agressivo, é muito mais grave, tem uma capacidade de disseminação muito grande. Infelizmente, nós ainda não temos ciência para ter uma medicação e a vacina ainda está distante”.
Influência da crise política no enfrentamento à pandemia
No momento em que se dá a pandemia do novo coronavírus, o Brasil é governado pela extrema-direita e, além da crise sanitária, o país convive com uma crise política. Como um problema influencia o outro?
“Influencia muito. De modo muito negativo. Por quê? Trata-se de uma doença nova. Podemos dizer que estamos vivendo um experimento singular na história da humanidade. Um dos princípios para se enfrentar uma situação desconhecida, em qualquer país ou governo, deve ser o respeito à ciência. E olhar o que está acontecendo nos outros lugares do mundo. Nos falta exatamente isso. Essa coerência, essa coesão.
Nesse momento, a liderança máxima de um país tem o papel intransferível de passar para a sociedade tranquilidade, firmeza e transparência. Liderar o processo de enfrentamento à pandemia. E o que nós estamos vendo desde o início é a negação de todos esses princípios. O presidente, claramente, nega a ciência. Virou garoto-propaganda de um medicamento, quando, na verdade, acabou de sair um artigo publicado* mostrando que há evidência de que a hidroxicloroquina faz mais mal do que bem.
Brigou o tempo todo com o seu ministro e o demitiu. Nomeou um novo ministro que ainda não disse a que veio. Insiste na dicotomia entre economia e saúde, que é uma falsa questão. Na verdade, nesse momento, a economia tem que estar a serviço da saúde”.
Colapso no sistema de saúde
As características específicas da Covid-19 já levaram ao colapso de sistemas de saúde em vários países.
“É importante dizer que nenhum sistema de saúde do mundo está preparado para enfrentar uma situação como essa. Qual é a questão central, para as pessoas entenderem? Nós estamos falando de uma doença que cerca de 80% das pessoas que entrarem em contato com o vírus não vão sequer apresentar sintomas ou vão apresentar sintomas muito leves. 15% vão apresentar sintomas que eventualmente necessitarão de algum tipo de assistência.5% vão desenvolver casos mais graves.
O problema é que esses 5% vão necessitar de atenção muito especializada em hospitais, usando medicação, fazendo diálise, porque existe uma falência renal em muitos pacientes, necessidade de ventilação, cuidados intensivos. Isso sobrecarrega o sistema de saúde de qualquer país, basta ver o que aconteceu na Itália, na Espanha, e está acontecendo nos EUA. A rigor, nenhum país está totalmente preparado.
Dizendo isso, temos que pensar que SUS nós temos. Um SUS que nas últimas 3 décadas foi atacado pela sociedade, pela grande mídia, e deixado ao relento pelos governantes de vários matizes políticos e ideológicos”, dispara o ex-ministro.
Um general no Ministério da Saúde
O atual ministro da saúde Nelson Teich nomeou o general Eduardo Panzuello para a secretaria executiva, com a tarefa de agilizar as medidas em relação a insumos, remédios e equipamentos. Temporão vê com extrema preocupação a nomeação de militares para funções estratégicas no combate à pandemia.
“Se alguém escolhesse um sanitarista para ser o segundo homem do ministério da Defesa, soaria exótico. Então, acho que essa nomeação é descabida. Não faltam técnicos de qualidade e competentes para assumir esse cargo. Não sei até que ponto isso foi imposto para o novo ministro, a quem eu não conheço. Mas pode ter certeza de que é uma pessoa que não conhece nada de saúde. Pode conhecer muito de logística, mas pelo fato de não conhecer do setor de saúde, num momento de pandemia, acho uma medida altamente questionável”.
‘Existem muitos Brasis e muitos SUS’
As diferenças regionais brasileiras se refletem em diferenças na qualidade de atendimento e na oferta de leitos do SUS em cada região, analisa Temporão, o que se agrava pela desigualdade social do país e pelo pouco investimento público:
“Hoje, não temos uma estrutura de financiamento que dê sustentabilidade ao SUS. E temos que lembrar que no governo Temer, em 2016, foi aprovada a famigerada emenda constitucional 95 que congelou os gastos em políticas sociais por 20 anos. Isso significa que, de 2016 para cá, o orçamento do Ministério da Saúde, perdeu, pelo menos, 20 bilhões de reais. Isso foi um crime contra a saúde pública e contra as políticas sociais. E o Congresso Nacional aprovou, sob o aplauso de grande parte da sociedade brasileira.
Então, nesse momento em que as pessoas precisam tanto do SUS, perguntam: ‘bom, onde é que nós erramos? Por que não temos leitos? Por que não temos respiradores? Profissionais? Por que os profissionais não são bem remunerados? O que está acontecendo? Por que nós não produzimos aqui? Dependemos de tudo ser produzido e importado de fora?’ Ora, é um conjunto de fatores, é um somatório, de fragilização econômica, financeira, tecnológica.
Existem muitos Brasis e muitos SUS. Uma coisa é o SUS da região amazônica. Outra coisa é o SUS do Sul e Sudeste. Outra é o SUS do Nordeste. E isso agravado pela brutal desigualdade socioeconômica, que é uma singularidade brasileira e um agravante do quadro que está se desenhando aqui. Então, eu afirmaria o seguinte: sim, o SUS vai salvar muitas vidas. O SUS vai ser absolutamente imprescindível e espero que a sociedade brasileira aprenda com isso e reflita sobre a importância de termos um sistema universal que seja sustentado politicamente por todos os brasileiros. Para nós e para as próximas gerações. Mas, ao mesmo tempo, nós vamos ver o SUS mostrar fragilidades, as quais são estruturais, não apenas conjunturais, e precisamos refletir sobre isso”, alerta o médico.
“Informação com transparência é tão importante quanto ter leitos”
Onze anos atrás, época do H1N1, o Whatsapp estava sendo criado e as redes sociais ainda estavam engatinhando. Não se via todo mundo com celular como hoje. Essa explosão tecnológica também exerce influência positiva e negativa sobre o combate à pandemia, como explica Temporão:
“Por um lado, isso é bom porque você tem uma possibilidade muito grande de disseminar informação de qualidade. Por outro lado, você tem uma fábrica incrível de notícias falsas. Inclusive, já existe uma discussão na sociedade brasileira quanto à punição para quem produz e dissemina as chamadas fake news. Porque (no caso da pandemia) é um crime contra a saúde pública.
Por outro lado, há uma possibilidade maior de redes de colaboração de pesquisadores, discutindo, apresentando evidências, avançando em termos de conhecimento. Eu diria que a informação com transparência numa situação como essa é tão importante quanto ter leitos, respiradores, médicos e enfermeiros.
E o Brasil está mostrando isso: como o ruído na comunicação, como a falta de transparência, como a irresponsabilidade de governantes, a falta de coesão e de uma condução homogênea e harmônica do enfrentamento dessa situação, pode causar problemas. Então, quanto mais clara, transparente e objetiva a comunicação, orientando a população, transmitindo segurança, mas mostrando a realidade, tem um valor inestimável para resultados positivos”.
O exemplo português
Portugal tem sido um dos países mais elogiados quanto à eficiência no combate à pandemia. Para Temporão, que é português de nascimento, vários fatores explicam esse sucesso, mas o primeiro deles foi a adesão da sociedade portuguesa ao isolamento e o outro a seriedade dos governantes:
“Deu certo, primeiro, porque a sociedade portuguesa aderiu massivamente ao isolamento social. Aliás, a sociedade fez isso antes do governo. O governo correu atrás da sociedade. Segundo, o sistema de saúde português é como o nosso SUS. Eles têm um sistema universal também. E, claro, é um país com 10 milhões de habitantes em uma situação de um sistema muito mais sólido, de muito mais qualidade que o nosso, com muito mais recursos. Quando você olha para a Europa como um todo, Portugal não é um país ricos, mas, comparado com a situação brasileira, é muito mais homogêneo.
E, o mais importante, lá nós não temos um primeiro ministro que vai para a televisão, com frequência, falar sandices. Ou criar inquietação na sociedade ou dizer que as pessoas têm que sair de casa para trabalhar. Ou que não escute o que o ministro da saúde está dizendo. Isso lá não acontece. Tudo isso explica: coesão, liderança, qualidade do sistema de saúde, menor desigualdade social e um primeiro-ministro sério que preza a ciência e defende a vida dos seus concidadãos acima de qualquer coisa.”
“Como será o amanhã?”
Um samba enredo de 1978, da União da Ilha, composto por João Sérgio, perguntava “como será o amanhã?” E completava: “Responda quem puder”. Segundo Temporão, nesse momento ninguém pode.
“O grau de incerteza é enorme. O novo ministro (Nelson Teich) fala em testar mais para ter mais conhecimento da realidade e a partir daí iniciar um processo de flexibilização do isolamento social. Ora, primeiro, não se sabe até que ponto esses testes rápidos, que usam uma gota de sangue para fazer o diagnóstico, são eficazes, qual a qualidade deles.
Segundo ele, não existem pesquisas ainda que assegurem se o grau de imunidade das pessoas que entraram em contato com o vírus é permanente ou não. Terceiro, não se sabe se esse grau de imunidade é alto ou baixo. Ou seja, sabe-se muito pouco. Qualquer afirmação nesse sentido é chute, na verdade. Qualquer epidemiologista, ou pesquisador, sério teria nesse momento sérias precauções de defender qualquer tipo de flexibilização do isolamento social.
“Nova normalidade”
“Não há nenhuma previsão” de volta à chamada “normalidade” e possivelmente teremos que nos adaptar a uma “nova normalidade”. É o diagnóstico do médico sanitarista:
Eu diria que grandes eventos com multidões aglomeradas, esqueça. Probabilidade de daqui a alguns meses, eu não saberia dizer quantos, talvez dois ou três, você iniciar um processo de volta a essa nova normalidade, que não será uma normalidade normal, será uma normalidade nova que a gente não sabe ainda qual é, por etapas, por setores, é o mais provável. Aliás, isso começa a acontecer agora na Alemanha. Também na França. Eles estão alguns meses na nossa frente e vamos poder aprender com eles.
Então, nós temos que aguardar ainda um pouco mais. A ciência mundial está fazendo um gigantesco esforço. É impressionante como nós avançamos de 2009 para cá, pensando na minha época de H1N1, em termos de redes de pesquisadores, recursos para pesquisas, novas investigações… Nós vamos ver muitas coisas interessantes e novas nas próximas semanas, nos próximos meses, mas nesse momento em que conversamos o grau de incerteza é muito grande”.
O medo maior é pela situação do Brasil
É natural que situações de incerteza gerem medo. Temporão diz que gostaria de dar “uma contribuição maior” nesse momento e assegura que não teme tanto por si, mas muito mais pelo país:
Tenho 68 anos, vivo com minha mulher que tem quase 65 anos, com minha sogra que tem quase 90, com filho. Evidentemente que todos nós ficamos preocupados. No meu caso, como sou médico e estou acompanhando de perto toda a situação, sei de muitas informações e claro que tenho preocupação. Mas minha grande angústia nesse momento é estar observando sem poder dar uma contribuição maior.
Tenho trabalhado muito, tenho dado dezenas de entrevistas, tenho escrito artigos, tenho feito o que eu posso. Participo de muitas redes, muitos grupos que trocam informações, que conversam, que mobilizam pessoas, acho que isso é fundamental. Mas hoje eu te diria que estou mais angustiado pelo que vai acontecer com o nosso país, pelas dificuldades que vamos atravessar nos próximos meses, do que pela minha situação individual”.
“Nós poderíamos estar conversando lado a lado, aqueles beijinhos iniciais, um abraço, um cumprimento, mas estamos aqui (cada um em sua casa numa conversa por vídeo). Claro que isso mexe com todos nós, uma situação nova. Experimentam-se, ao mesmo tempo, evidências políticas, científicas, de saúde pública, antropológicas, sociológicas e culturais. Mas espero que a gente saia dessa situação também com o olhar diferente para algumas dimensões”, concluiu.
“Fiquem em casa”
O ex-ministro alerta que o isolamento social é “a única resposta que a ciência pode nos dar nesse momento”.
“Isso pode parecer dramático, mas é a verdade. Nós não temos até o momento nenhum medicamento que atue diretamente sobre o vírus, que pudesse ser usado no início dos primeiros sintomas, reduzindo o grau de gravidade. É o que gostaríamos de ter: uma droga que aos primeiros sintomas a pessoa pudesse tomar e impedisse a evolução para casos mais graves. Infelizmente, não temos. A primeira vacina começa a ser testada agora na Alemanha. Teremos os primeiros resultados preliminares em junho ou julho. Se funcionar, é possível que no primeiro semestre do ano que vem tenhamos uma vacina. Aí o cenário muda. Tendo essa vacina, poderemos utilizá-la e proteger as pessoas”.
Com edição e revisão de Rosayne Macedo, editora do Portal ViDA & Ação, a com vídeo publicado originalmente no blog “Quem Tem Medo da Democracia”