A legislação em vigor no Brasil prevê que a mulher tem direito ao aborto nos casos de gravidez decorrente de estupro, se a gestação representar risco de vida a ela ou em caso de anencefalia fetal. Mas o fato de haver essa previsão legal não garante que as mulheres consigam alcançar seus direitos da forma como deveriam.

Somente seis das 27 unidades federativas disponibilizam informação pública sobre aborto nos sites das secretarias de saúde. Uma gestante pode demorar, em média, de dois a três meses até achar um programa que a acolha. Além disso, as principais prejudicadas nesse cenário são mulheres jovens, pobres e negras.

O alerta é de Olímpio Moraes, diretor médico da Universidade de Pernambuco (UPE), que participou do debate Acesso ao aborto legal no SUS: Como acolher e garantir direitos?, realizado nesta quarta-feira (3), na Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP), vinculada à Fiocruz, no Rio de Janeiro. Segundo ele, a lei que assegura o aborto legal no país é “uma política escondida”.

Se vocês procurarem no Brasil onde tem acesso a aborto previsto em lei, vão ter muita dificuldade pela internet. Eu consigo saber onde tem quimioterapia, pré-natal de alto risco, doação de órgãos, mas abortamento não é dado à população o direito de informação. Apenas 3,6% dos municípios têm um serviço de violência a abortamento previsto em lei. É muito pouco”, disse Olímpio Moraes.

Críticas aos médicos obstetras do SUS

O diretor médico da Universidade de Pernambuco (UPE) disse que os médicos obstetras precisam cumprir o que diz a legislação, principalmente porque a sua formação profissional já prevê aprendizados relacionados ao aborto legal.

Objeção de consciência é um direito, mas quando você é recrutado. Médicos do SUS não estão aí para defender crenças. O nosso patrão é o Estado brasileiro. Para todos os obstetras que vão fazer Obstetrícia agora tem as EPAs [competências de determinada prática médica]“, destacou.

Segundo Olímpio, as EPAs são 21 competências que o médico tem que aprender para dizer que é obstetra. E saber a lidar com casos de violência contra a mulher e abortamento está entre elas.

Eles (obstetras) são treinados para isso. Não pode dizer que tem ‘objeção de consciência’. Se tem isso, vai fazer Dermatologia. Quem paga é o SUS. Estamos trabalhando para que não haja essa desculpa, que não é aceitável”, disparou Olímpio.

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Projeto de lei que criminaliza aborto legal após 22 semanas

Coordenado pelo Observatório do SUS, o encontro discutiu a proposta do Projeto de Lei 1904/2, que prevê autorização para abortos legais até 22 semanas de gestação, mesmo em casos de violência sexual. O PL também aumenta pena máxima para quem fizer o procedimento, igualando a interrupção da gravidez ao homicídio.

Pesquisadores e especialistas presentes no evento apontaram as principais dificuldades das mulheres e meninas vítimas de violência sexual ao acessar o procedimento no sistema público de saúde. Para o diretor médico da Universidade de Pernambuco (UPE), é por causa da falta de ação do poder público que muitas vítimas deste crime acabam só tendo acesso ao aborto legal após 22 semanas de gestação.

Não existe estuprada que, por maldade, vai levar a gestação até 22 semanas porque quer ver o feto nascer prematuro, sofrer, ir para a UTI e ficar sequelado. Não existe essa maldade. Não atrasa porque foi culpa dessa mulher. Ela deixou chegar até esse ponto por causa do Estado brasileiro, que fechou todas as portas”, disse Olímpio.

‘Aborto é questão de saúde pública, não é matéria de contra e a favor’

Debora Diniz, antropóloga, professora da Universidade de Brasília e defensora dos direitos reprodutivos das mulheres, entende que a repercussão do projeto de lei foi pior do que a esperada pelos grupos que a defendiam. Por isso, segundo ela, o momento é de avançar na luta por uma justiça social reprodutiva, sem abdicar dos conhecimentos científicos.

A questão do aborto, como outras em saúde pública, não é matéria de contra ou a favor. Não é matéria para confundir e não falarmos sobre ciência. As religiões têm que ser respeitadas, mas não são elas que determinam a vida pública e o bem comum”, defendeu Debora Diniz.

Ela sugeriu um “exercício de reflexão e ponderação” sobre como continuar o debate público sobre a urgência da descriminalização do aborto, a partir do aprendizado sobre o que ela chama de “brutal projeto de lei”. “Descriminalizar não é legalizar. Temos evidências sólidas de que isso pode levar à redução do número de abortos”, destacou a pesquisadora.

Para Elda Bussinguer, presidenta da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), além da pressão pelo cumprimento atual da lei, é preciso organizar uma reação pública da sociedade civil, por entender que o projeto vai além de uma questão moral ou religiosa.

Esse é um projeto de poder sobre os corpos femininos, de silenciamento das mulheres, de coisificação dos nossos corpos. Precisamos quebrar o pacto de silêncio que mantém milhares de meninas espalhadas por esse país sendo violentadas todos os dias por seus pais, tios, irmãos, primos e mesmo religiosos, que rompem com todos os princípios que dizem defender e mantém mulheres violentadas e silenciadas”, disse.

Retrocesso e ameaça à saúde de mulheres e meninas’, diz Fiocruz

Em nota, a Fiocruz se posicionou recentemente contra o Projeto de Lei (PL) 1904. De acordo com a instituição, a proposta representa “retrocesso e ameaça à saúde de mulheres e meninas”. E defende que “o Estado brasileiro deve garantir acesso a políticas de prevenção, proteção e suporte à violência e ao abuso sexual”.
De acordo com a Fiocruz, “a gravidez em vítimas de estupro, sobretudo crianças, exige uma abordagem sensível e baseada em direitos para que os efeitos possam ser minimizados e que lhes sejam garantidas a chance de uma vida digna”.
Leia a nota de posicionamento na íntegra aqui.

Da Agência Brasil e Agência Fiocruz, com Redação

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