Por Laura Brito*
Desde 2017, no Brasil, celebramos a Semana Nacional da Pessoa com Deficiência Intelectual e Múltipla, comemorada de 21 a 28 de agosto de cada ano. A data foi instituída pela Lei 13.585 de 2017 e tem como objetivo a conscientização da sociedade sobre a necessidade da inclusão social, além do combate ao preconceito e à discriminação.
A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, de 2015, trouxe uma transformação no que conhecemos como deficiência, com o reconhecimento de que ela se revela na interação com uma ou mais barreiras, que podem obstruir a participação plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas.
As barreiras são qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade, à comunicação, entre outros. Ou seja, o problema está nos entraves que a sociedade coloca ao pleno desenvolvimento de algumas pessoas e não nas pessoas em si.
Um dos tipos de barreira são as atitudinais, que são atitudes ou comportamentos que impedem ou prejudicam a participação social da pessoa com deficiência em igualdade de condições e oportunidades. E em atenção à Semana Nacional da Pessoa com Deficiência Intelectual e Múltipla vamos falar da conduta de infantilizar pessoas adultas com deficiência.
Não é raro que se use a expressão ‘guarda’ para se referir à representação jurídica e aos cuidados que devem ser dedicados a uma pessoa adulta com deficiência. Não existe guarda de pessoas com mais de 18 anos. A guarda é um instituto jurídico próprio do direito da infância e implica a prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente – normalmente por seus pais, mas pode ser exercido por terceiro em casos excepcionais.
Não se trata de preciosismo jurídico. As palavras importam e constroem o mundo em que vivemos. Pessoas adultas têm capacidade presumida, ao contrário das crianças. Às pessoas com deficiência intelectual, dentro de suas possibilidades de comunicação e autonomia, deve ser franqueada a possibilidade de tomada de decisões existenciais, como a possibilidade de se casar, constituir união estável e o livre planejamento familiar.
Ao contrário, o casamento infantil deve ser rechaçado. A possibilidade de formação de uma família é um exemplo claro de como uma pessoa com deficiência intelectual não é e não pode ser considerada uma criança.
Enquanto em uma pessoa adulta presumimos a capacidade, na criança pressupomos a sua absoluta incapacidade até os 16 anos de idade. Na infância, a representação por seus pais é a regra; na vida adulta, partimos da plena capacidade para, eventualmente, ficar comprovada a incapacidade relativa, especialmente para os atos negociais.
Quando uma pessoa adulta, em razão de deficiência intelectual, não pode gerir seu patrimônio e sua renda, ela poderá se valer de alguma das figuras de apoio da legislação: a tomada de decisão apoiada ou a curatela.
Esta última é muito mais comum entre nós e permite que a pessoa curatelada seja representada nas decisões patrimoniais. Ainda que a curatela seja um modelo de substituição de vontade e, portanto, delicado, ela deve sempre ser pensada para uma aplicação nos atos em que é realmente necessária.
Quando bem usada, a curatela é uma medida de proteção das pessoas com deficiência intelectual e múltipla, que permite a gestão regular e transparente de seus bens e de seus rendimentos. Ela é o instrumento jurídico adequado para o cuidado com pessoas maiores cuja capacidade se mostra relativa em razão da deficiência.
A curatela nunca deve ser confundida com a guarda, sob pena de se dar roupagem jurídica à infantilização de pessoas adultas com deficiência. Para uma adequada proteção das pessoas vulneráveis, precisamos parar de confundir pessoas adultas com deficiência com crianças. Nesta semana de conscientização, façamos a nossa parte: sejamos ponte e não barreira.
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Curatela e anticapacitismo: cuidar e celebrar as diferentes formas de existir
A celebração de todas as existências, assim como o incentivo para que a diversidade esteja presente em todos os ambientes é coisa recente. No Direito brasileiro, a compreensão de que a deficiência é uma existência que encontra barreiras nos outros, em arquiteturas hostis e na falta de informação veio com a Lei Brasileira de Inclusão, também chamada de Estatuto da Pessoa com Deficiência, de 2015.
Com ela, afastamos a noção de que as pessoas com deficiência intelectual deveriam ser tratadas como absolutamente incapazes, ressaltando que, mesmo que precisem de representação para atos de natureza patrimonial, preservam a autodeterminação e a possibilidade de existirem sendo quem elas são.
A essa luta pela existência digna das pessoas com deficiência chamamos anticapacitismo e que pode ser resumida na dimensão do “nada sobre nós sem nós”. Ou seja, de que as pessoas com deficiência, inclusive intelectual, devem ser ouvidas para que possamos avançar para uma sociedade mais livre e plural.
Com essa mudança de perspectiva tão relevante, a curatela foi colocada em xeque. Se a pessoa com deficiência intelectual não pode ser tida como absolutamente incapaz, a que serviria uma ação judicial que nomeia a ela um representante legal? A quem serve a interdição?
A reflexão sobre o destino da curatela nos levou a uma conclusão essencial: ela precisa ser um instituto protetivo das pessoas com deficiência intelectual. Ou seja, a curatela não serve para o afastamento da autodeterminação, mas é importante na medida em que diminui a vulnerabilidade.
Isso porque as pessoas com deficiência, em nossa sociedade, são pessoas vulneráveis no sentido de que têm uma maior probabilidade de terem seus direitos fundamentais violados. A curatela, então, serve para que, especialmente nos atos negociais, elas sejam representadas por quem possa proteger os seus interesses. Aliás, permite que essa representação ocorra de forma regular e fiscalizada pelo Ministério Público e pelo Judiciário.
Os pais não mantêm poder familiar ou guarda sobre as pessoas com deficiência intelectual com mais de 18 anos. Elas não são crianças. Por isso, nesse contexto, se os pais continuam praticando atos negociais em nome dos filhos, ainda que de boa-fé, fazem isso de maneira irregular.
Além disso, a curatela permite que a pessoa com deficiência intelectual seja atendida pelo Estado com especial proteção, a fim de terem garantidos os seus direitos fundamentais. Nesse sentido, o Estado é seguridade social: saúde, assistência e previdência social.
A partir dessa perspectiva, a curatela não é apagamento, ela é proteção. Por isso, se você faz parte da rede de cuidado e proteção de uma pessoa com deficiência intelectual, converse abertamente sobre a importância da curatela. O anticapacitismo começa com a quebra do silêncio.
*Laura Brito é advogada especialista em Direito de Família e das Sucessões, possui doutorado e mestrado pela USP e atua como professora em cursos de Pós-Graduação, além de ser palestrante, pesquisadora e autora de livros e artigos na área.