A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que 10% da população mundial tenham algum tipo de deficiência. Ou seja, são cerca 7,8 milhões de pessoas que vivem com algum impedimento de longo prazo, ocasionado por natureza física, mental, intelectual e/ou sensorial, que impede sua participação plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições.

É por esta razão que a comunidade médica e educadores do Brasil se mobilizam todos os anos, no Dia Nacional da Acessibilidade (5 de dezembro). O objetivo é conscientizar a sociedade sobre a desigualdade de oportunidades e outros problemas enfrentados por esses cidadãos, além de celebrar as conquistas realizadas ao longo dos anos.

Das barreiras ainda a serem superadas, a chamada “acessibilidade auditiva” é assunto que se destaca cada vez mais nas discussões temáticas relacionadas à data. Afinal, da mesma forma que os deficientes físicos e deficientes visuais, os auditivos também demandam ações inclusivas que lhes assegurem mais autonomia e liberdade.

A comunicação é, com certeza, o maior obstáculo que os deficientes auditivos têm para interagir com a sociedade de maneira efetiva. Há várias barreiras que os impedem disso e, geralmente, sequer percebemos”, observa a fonoaudióloga Christiane Nicodemo, do Hospital Paulista, especializado em saúde de ouvido, nariz e garganta.

Além da Educação, uma área em que a inclusão se mostra fundamental é a Saúde. Mas como as unidades de saúde estão enfrentando este desafio e garantindo mais acessibilidade às pessoas com deficiência auditiva? Para este Dia Nacional da Acessibilidade, reunimos algumas experiências positivas. Confira!

Rio de Janeiro treina profissionais de Saúde na língua de sinais

No Rio de Janeiro, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) está promovendo um curso profissionalizante de Língua Brasileira de Sinais (Libras) para qualificar profissionais de saúde de 32 unidades de Atenção Primária (clínicas da família e centros municipais de saúde) e de dois centros de atenção psicossocial (CAPS) e duas unidades de pronto atendimento (UPA) da Zona da Leopoldina para atendimento de pacientes com deficiência auditiva.

Em duas turmas iniciadas em abril e maio deste ano, mais de 60 alunos já se formaram – entre agentes comunitários de saúde e territoriais, enfermeiros e técnicos de enfermagem – com um norte em comum: proporcionar um atendimento mais acolhedor a esses usuários.  O projeto acontece nas clínicas da família Felippe Cardoso e Augusto Aloysio Novis, localizadas na Penha, com encontros presenciais e atividades remotas.

Entre as 60 pessoas que se formaram nas primeiras turmas está a agente comunitária de saúde (ACS) Camilla Bastoni, lotada no CMS Necker Pinto. Ela aproveitou o curso para aprimorar sua forma de trabalho com mais excelência e humanização e realizou o que já era um sonho antigo, o de aprender a se comunicar pela língua gestual-visual.

Após o curso já tive a oportunidade de utilizar a Libras. Em todas as ocasiões que tive, o que me marcou foi o sorriso do usuário ao ver que alguém ali conseguiria se comunicar com ele. Foi maravilhoso ver que, mesmo eu sinalizando que ainda estava aprendendo, eles sorriam, estavam felizes e tinham muita paciência em indicar pausadamente para que eu pudesse compreender o que eles precisavam”, revelou a agente comunitária.

Centro Carioca do Olho oferece atendimento com intérprete a pessoas surdas

Com deficiência auditiva, o jovem Thiago Evangelho passou por atendimento no CCO (Fotos: Karina Rivera/SMS)

Com o objetivo de oferecer um melhor atendimento e fortalecer a saúde visual de pessoas com deficiência auditiva, o Centro Carioca do Olho (CCO), em parceria com Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), realizou exames oftalmológicos aos alunos da instituição.

Entre agosto e novembro deste ano foram 133 atendimentos, incluindo 75 prescrições de óculos e diagnósticos, como astigmatismo, em 67 pacientes. A faixa etária dos alunos varia entre 4 e 73 anos, sendo 68 alunos do sexo masculino e 65 do feminino.

Eles passaram por check-in, triagem, pré-exame oftalmológico e consulta.  Nos atendimentos oftalmológicos, foram realizados exames de acuidade visual e refração, motilidade ocular, biomicroscopia, além de prescrição de óculos e encaminhamentos. Durante todo o atendimento os alunos contaram com o auxílio intérpretes com formação em Libras em cada equipe de atendimento, garantindo uma comunicação mais eficaz.

Os acessos aos procedimentos oftalmológicos no Centro Carioca do Olho (CCO) garantem o aumento da autonomia dos indivíduos surdos, melhorando sua qualidade de vida e inclusão social. Thiago Evangelho da Silva, de 24 anos teve a sua última consulta realizada no dia 30 de novembro e falou sobre como a questão visual é importante para a comunicação de pessoas com deficiência auditiva:

Essa é uma parceria muito importante. Nós, que somos deficientes auditivos, dependemos muito da visão para a comunicação. Fazer no particular é difícil por causa da acessibilidade e porque é tudo muito caro. Aqui, a gente pôde fazer exames, ter o apoio dos profissionais e dos intérpretes do INES e experimentar óculos na ótica da unidade”, disse.

Campainha em hospital ganha sinalização visual

Nos hospitais São Marcelino Champagnat e Universitário Cajuru, em Curitiba (PR), que fazem parte do Grupo Marista, o tema chegou às equipes assistenciais. O coordenador da farmácia do Hospital Universitário Cajuru, Maikon Jorge Baceto, teve a ideia de implementar uma campainha no hospital que, além do som, tivesse uma sinalização visual para atender às pessoas com deficiência auditiva.

Foi só depois de sentir na pele, ao longo de trocas e conversas, que consegui reconhecer as reais necessidades de acessibilidade que fazem parte do dia a dia das pessoas com deficiência. Não só passei a compreender melhor, mas também encontrei maneiras de fazer a diferença na prática”, conta ele.

Entendendo que a deficiência é apenas uma parte da condição e identidade de uma pessoa, o programa de Diversidade e Inclusão do Grupo Marista busca fornecer informações e engajar colaboradores para serem agentes de transformação social.  Entre as ações, são realizadas rodas de conversa com representantes de cada pilar, eventos de liderança e treinamentos para os colaboradores.

É um trabalho de formiguinha, mas que tem trazido benefícios para empresa, colaboradores, pacientes e sociedade como um todo, pois a diversidade permite pensar de forma inovadora, com pessoas diferentes e olhares diferentes”, explica a coordenadora de Atração e Inclusão do Grupo Marista, Tania Mior Botemberger.

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Treinamento em libras para profissionais de saúde do Rio

Agentes de Saúde conversam em libras com paciente na recepção da Clínica da Família Zilda Arns, no Complexo do Alemão (Fotos: Marcos de Paula / Prefeitura do Rio)

Outro profissional de saúde formado no curso de Língua Brasileira de Sinais oferecido no Rio de Janeiro é o agente comunitário Ronaldo Pacheco, da Clínica da Família Zilda Arns. O profissional já sabia o básico da comunicação em libras, por conta de sua esposa, e decidiu entrar logo nas turmas iniciais para se aprimorar. O ACS acompanhou o pré-natal e toda a gravidez de uma usuária surda, e relembra como ela ficou agradecida pelo contato realizado.

Posso dizer que é muito gratificante fazer a diferença na vida de todos os nossos usuários cadastrados na unidade. Eu me lembro com muito carinho quando recordo a minha experiência no curso e tudo o que eu aprendi. Eu me apaixonei pela comunicação em Libras”, compartilhou o ACS.

Com o aumento da procura, outras três turmas foram abertas no mês de setembro para suprir a demanda. Atualmente, são 105 profissionais distribuídos em três classes, cada um conciliando o tempo entre o serviço e a educação.

O ACS Johnny Barbosa da Silva, do CMS Nagib Jorge Farah, é um deles. Ao saber do curso pela gerente de sua unidade, motivado por adquirir conhecimento para ajudar as pessoas e também transformar a sua carreira profissional, ele correu para se inscrever.

Está sendo desafiador. O que me marcou nas aulas foi o fato de eu estar conseguindo falar pela língua de sinais. A primeira coisa que aprendi foi o alfabeto manual, as letras do meu nome. Consigo formular nomes próprios, de frutas, paz, amor e alegria”, diz Johnny, animado.

A professora de Libras Viviane Pinheiro é responsável por transmitir conteúdos da Língua Brasileira de Sinais e a prática da conversação entre os alunos. Uma vez por semana, em duas horas, Viviane traça diferentes estratégias de comunicação para preparar a desenvoltura da compreensão de perguntas e respostas, sob contexto da rotina de uma unidade de saúde.

Educar profissionais da área da saúde é enriquecer a nossa cidadania, é pensar que estamos tornando cada vez mais a comunidade surda com autonomia de ir a sua clínica da família e dizer que está com dor, que deseja tomar uma vacina ou uma medicação e participar de um planejamento familiar”, destacou a professora Viviane.

Idealizado pelo coordenador de Atenção Primária à Saúde da Zona da Leopoldina, Thiago Wendel, o curso já rendeu resultados em menos de um ano, possibilitando a quebra da barreira linguística entre o usuário e o profissional. Todas as unidades de Atenção Primária da região já contam com pelo menos um profissional capacitado em Libras e a meta é crescer esse quadro.

Quando pensamos em saúde, temos que pensar na maneira de garantir o acesso de todos de forma equânime. O direito à saúde não pode ser negado por uma falha de comunicação. Unir saúde e educação acessível é uma forma de ampliar o nosso cuidado e as ferramentas que usamos. Garantimos assim um atendimento digno e de maior qualidade a uma grande parcela da população”, conta Thiago Wendel.

Com três turmas em andamento, a expectativa é que novas edições, tanto para iniciantes quanto para avançados, tenham início em janeiro de 2025. Os profissionais interessados nas novas turmas podem procurar a gerência de suas respectivas unidades de lotação.

Atendimento a estudantes com surdez no Centro Carioca do Olho

A parceria entre o Centro Carioca do Olho (CCO) e o Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) destaca a importância da necessidade de acessibilidade a serviços de oftalmologia. Os atendimentos no CCO têm sido fundamentais para apoiar o INES em sua missão inclusiva e enriquecer o aprendizado do centro no atendimento a pacientes surdos. O estudante Marllon Pereira, de 27 anos, também aplaudiu a iniciativa.

É importante que as unidades de saúde tenham acessibilidade porque nós, pessoas com deficiência auditiva, temos dificuldades nos acessos a esses locais, principalmente dificuldade de comunicação. Então, é importante ter um intérprete de libras, porque quando uma pessoa surda procura esses espaços ela precisa de informações, precisa entender de maneira clara o que está sendo dito. O atendimento foi vital, ir lá e conhecer esse espaço e ter outras pessoas surdas me ajudou muito”.

Segundo o assessor do INES, André Lima, muitos membros da comunidade surda não estão cientes da importância de exames regulares e da necessidade de receber o diagnóstico precoce.

Marllon Pereira diz que pessoas com deficiência auditiva enfrentam barreiras no acesso a unidades de saúde devido à dificuldade de comunicação (Fotos: Karina Rivera/SMS)

A experiência do mundo do surdo é prioritariamente visual, garantir uma assistência oftalmológica para esse público é muito importante. Poder enxergar bem pode significar, para nosso aluno, a chance de se comunicar bem em Libras. Com isso, a parceria entre o INES e a Secretaria Municipal de Saúde é imprescindível para dar acessibilidade linguística e prover atendimento de qualidade aos surdos”, diz ele.

O CCO é um centro de referência em oftalmologia no município do Rio de Janeiro. A unidade da Secretaria Municipal de Saúde (SMS-Rio) fica localizada no complexo do Super Centro Carioca de Saúde, em Benfica, zona norte, e conta com equipamentos de grande precisão e tem capacidade para realizar consultas, exames, tratamentos ou cirurgias, como catarata, córnea, estrabismo, glaucoma, retina, oftalmopediatria. Além disso, outro serviço disponível na unidade é a Ótica Carioca, que faz a dispensação de óculos de grau para os pacientes.

Promover saúde ocular de qualidade e acessível é fundamental para garantir a inclusão e a plena cidadania da população surda. A saúde ocular é um direito de todos, e estamos dedicados a tornar esse direito uma realidade para a comunidade surda da cidade do Rio de Janeiro”, informa o diretor do CCO, Rodrigo Pegado.

Segundo ele, o projeto proporcionou a unidade uma experiência de adaptação dos cuidados oftalmológicos às necessidades específicas das pessoas com deficiência auditiva. A parceria também reafirma o compromisso de ambas as instituições com a inclusão e o acesso à saúde de qualidade para toda a população.

Sabemos que o cuidado com a visão impacta diretamente na qualidade de vida e na aprendizagem, e nosso compromisso é proporcionar um atendimento especial, diferenciado e especializado, respeitando as necessidades específicas de cada público”, completou Pegado.

Acessibilidade para pessoas surdas na educação

Os desafios para a acessibilidade auditiva começam ainda bem cedo, na escola. O ator e professor de Libras Fábio de Sá. que já nasceu surdo, lembra que, na época de criança, acessibilidade era uma palavra desconhecida.

As pessoas escreviam para se comunicar com a gente. Quando entrei na escola de surdos, em 1992, tive contato com a língua de sinais pela primeira vez, mesmo assim não existia material didático específico para Libras. A gente saía e éramos invisíveis porque nada era adaptado ou pensado para uma criança surda ou com qualquer outra deficiência”, recorda Fábio.

Para ele, as coisas só começaram a mudar quando a internet ganhou força com as redes sociais. “As redes trouxeram o debate, nos deram voz. Agora programas de TV são adaptados, as crianças de hoje terão voz no futuro porque estão vivendo num mundo onde a inclusão é uma realidade, mesmo que ainda não seja a ideal”, frisa o ator que também é consultor, tradutor e intérprete de Libras dos vídeos da campanha Defenda-se.

Criada pelo Centro Marista de Defesa da Infância (CMDI), a iniciativa promove a autodefesa de crianças contra a violência sexual por meio de uma série de vídeos educativos, com linguagem acessível para meninas e meninos de 4 a 12 anos. Os conteúdos apresentam situações que contribuem no reconhecimento de estratégias que dificultam a ação dos agressores.

Para o vídeo mais recente, lançado em maio deste ano, crianças surdas foram convidadas para serem intérpretes dos personagens na versão em Libras, com a coordenação de Fábio. Além disso, uma das personagens da animação, Laura, se comunica pela Língua Internacional de Sinais. Os vídeos, que podem ser acessados gratuitamente no site da campanha (defenda-se.com), já foram vistos por milhares de crianças nas salas de cinemas e de aula.

Queremos pensar essa inclusão com sensibilidade, para que as crianças com deficiência também tenham acesso aos vídeos e se sintam representadas. Com a consultoria, a tradução do conteúdo para Libras considerou o vocabulário de crianças surdas”, comenta o analista do Centro Marista de Defesa da Infância, Rafael Teixeira.

Acessibilidade auditiva: um desafio extra à inclusão de PcDs

Embora a legislação federal já preveja uma série de obrigatoriedades, por meio da Lei Brasileira de Inclusão (LBI), a especialista destaca que há muitos aspectos ainda a ser observados.

Nesse contexto, ela destaca como exemplos as portarias eletrônicas (cada vez mais presentes em edifícios residenciais) e as baias de atendimento individual (muito comuns em consultórios, laboratórios, cinemas etc.), além dos tradicionais autofalantes de supermercados, alarmes sonoros e a própria campainha de nossas casas.

Por serem instrumentos que dependem da audição, isso inviabiliza a comunicação com qualquer pessoa que tenha surdez. Muitas vezes, nem mesmo a presença de intérpretes de libras permite uma comunicação efetiva, já que muitos surdos não são alfabetizados na linguagem de sinais.

Da mesma forma, há pessoas surdas que não são alfabetizadas em português e só utilizam as libras. Portanto, são situações que precisam ser repensadas, de forma ampla, abrangendo toda sua comunidade e respeitando cultura e individualidade de cada um”, pondera a especialista.

Sinalizantes e oralizados

Otorrinolaringologista e foniatra do Hospital Paulista,  Gilberto Ferlin explica que as pessoas surdas ou com deficiência auditiva que se comunicam através da Língua de Sinais são conhecidas como “sinalizantes”. Já as pessoas que são alfabetizadas no português sabem fazer leitura labial e preferem vocalizar, essas conhecidas como “oralizadas”.

Existe uma grande diversidade nesse universo que, aqui no Brasil, é formado por cerca de 2,3 milhões de pessoas. Por isso, é importante levar esse aspecto em consideração ao pensar em recursos de acessibilidade. Precisamos pensar cada vez mais em tornar os espaços que fazemos parte mais acessíveis para todas as pessoas. Isso vai desde o nosso grupo de amigos ao ambiente corporativo e familiar.”

Com Assessorias

 

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