Proibidos pelo CFM, anabolizantes causam efeitos colaterais irreversíveis

Em abril, CFM proibiu médicos de receitarem anabolizantes para fins estéticos ou competitivos. Uso de hormônios sintéticos requer cautela

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Infarto, impotência sexual, ansiedade, acne e até hepatite: o uso de anabolizantes para fins estéticos pode causar todos esses efeitos colaterais, e alguns danos à saúde podem ser irreversíveis. Além dos sérios riscos à saúde, não há nenhuma comprovação científica dos benefícios e da segurança. No Brasil, o número de pacientes com graves complicações não para de crescer.

Apesar da gravidade dos resultados, a prescrição de hormônios sintéticos para melhorar a aparência se tornou muito comum entre médicos de diversas especialidades no Brasil. A disseminação desta prática levou o Conselho Federal de Medicina (CFM) a proibir a prescrição médica de terapias hormonais “com finalidade estética, para ganho de massa muscular e/ou melhora do desempenho esportivo”.

A resolução, publicada no mês de abril no Diário Oficial da União, veta os médicos de receitar essas medicações para quem não tem nenhum problema de saúde e usa anabolizantes apenas para melhorar a fisionomia ou o rendimento físico. O médico que descumprir a regra pode ser alvo de denúncia e processo no CFM, e corre o risco até de perder o registro profissional.

“Tenho recebido cada vez mais casos encaminhados por cardiologistas, hepatologistas e psiquiatras”, observa Clayton Macedo, que coordena o núcleo de Endocrinologia do Exercício e do Esporte no Hospital Israelita Albert Einstein e o Serviço de Endocrinologia do Exercício e do Esporte da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Essas complicações, muitas vezes, são irreversíveis e potencialmente fatais.”

Mercado paralelo

Um dos principais especialistas no tema, o médico do esporte e endocrinologista Clayton Macedo lembra que, além dos anabolizantes prescritos nos consultórios, há ainda uma série de hormônios usados sem acompanhamento médico, comprados no mercado paralelo e muito populares entre frequentadores de academias.

Em alguns casos, os usuários compram produtos clandestinos ou destinados para uso veterinário, e as dosagens podem chegar a ser 100 vezes maiores do que a indicada para o tratamento de doenças para as quais os hormônios são, de fato, indicados, de acordo com o endocrinologista.

“Não existe segurança: os efeitos colaterais são imprevisíveis porque se o indivíduo tem algum tipo de predisposição ele pode ter efeitos colaterais graves mesmo com doses teoricamente baixas. Com doses maiores, os efeitos também vão aumentando”, afirma o médico, que é presidente do Departamento de Endocrinologia do Exercício na Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM). 

Para a maioria dos profissionais, a decisão do CFM foi um acerto, já que a disseminação dos anabolizantes foi além do mercado ilegal e passou a ganhar também os consultórios médicos nos últimos anos.

“Como muitos médicos estavam prescrevendo, isso gerava uma sensação de segurança para o paciente, quando na verdade não existem níveis seguros para o uso [de anabolizantes] com fins estéticos e competitivos”, explica Henrique Cardoso Cecotti, endocrinologista do Hospital Israelita Albert Einstein.  

A popularização desses medicamentos está relacionada a uma cultura estética que valoriza corpos musculosos e exerce pressão especialmente entre frequentadores de academias, que buscam padrões estéticos cada vez mais extremos.

“O que a gente vê nas redes sociais é uma premissa de que corpo musculoso é sinônimo de corpo saudável, e esta é uma analogia errada, porque músculo não é sempre sinal de saúde”, explica Karina Hatano, médica do esporte do Hospital Israelita Albert Einstein.

Como funcionam os anabolizantes 

Os esteroides anabolizantes e androgênicos (EAA) são hormônios sintéticos criados para tratar uma deficiência na quantidade de testosterona ou de outros hormônios andrógenos produzidos nos testículos.

Entre as condições que podem ser tratadas com anabolizantes estão puberdade tardia, hipogonadismo (produção insuficiente de hormônio sexual), micropênis neonatal (condição rara na qual o tamanho do pênis é menor do que o padrão) e caquexia (perda extrema de tecido adiposo, osso e músculo, comum em pacientes oncológicos).

“O anabolizante foi criado para tratar doenças, e existem condições que podem, sim, ser tratadas por hormônios sintéticos. O problema é que o uso para fins estéticos está tão disseminado que o anabolizante está ficando mais conhecido pelo malefício do que pelo benefício”, avalia a médica do esporte Hatano.

Para além das doenças em que existe consenso científico para o seu uso, os anabolizantes também são usados por pessoas saudáveis para estimular o ganho de massa muscular e a quebra de gordura. Isto porque a testosterona tem a capacidade de promover o crescimento celular e em tecidos do corpo, como o ósseo e o muscular.

“Os anabolizantes promovem o aumento da síntese de proteínas. Isso acontece por meio de um mecanismo pelo qual ele entra na célula e regula a síntese daquele gene. Cada célula tem uma função, produz uma proteína, e os esteroides fazem a modulação dessa produção”, explica o endocrinologista Macedo.

Os anabolizantes podem ser consumidos de forma oral, em comprimidos ou cápsulas, em soluções injetáveis, ou até mesmo em gel. Em comum, todos eles têm efeitos colaterais similares, mas a prevalência e até mesmo a duração desses eventos adversos podem variar de acordo com a dosagem e o tipo de medicamento utilizado.

Efeitos colaterais

Diversos estudos científicos já comprovaram os efeitos colaterais do uso de anabolizantes para fins estéticos, e muitos deles foram citados pelo CFM na decisão recente em que a prescrição passou a ser contraindicada. Além dos efeitos mais conhecidos, outros ainda estão sendo estudados.

De forma geral, o uso de anabolizantes gera efeitos colaterais como acne, queda do cabelo, distúrbios da função do fígado e aumento da pressão arterial, além de outros problemas ligados à circulação, como trombose, infarto e arritmias. Esses medicamentos também têm efeitos colaterais psicológicos, e podem levar a comportamento agressivo, ansiedade, paranoia e até alucinações.

Nas mulheres, os eventos adversos mais comuns estão relacionados ao surgimento de características sexuais secundárias masculinas. Essas características incluem, por exemplo, crescimento de pelos no rosto, engrossamento da voz, pele mais grossa e oleosa, diminuição dos seios e aumento de apetite. Além disso, podem ocorrer ainda aumento do tamanho do clitóris e irregularidade nos ciclos menstruais.

“Muitos dos efeitos colaterais que são verificados em mulheres, como o engrossamento da voz e o aumento do clitóris, são irreversíveis, ou seja, vão continuar mesmo após a interrupção do uso”, diz o endocrinologista Henrique Cardoso Cecotti, do Hospital Israelita Albert Einstein.

Já nos homens os efeitos têm relação com a menor produção de testosterona natural pelo organismo. Isto porque o corpo entende que há uma sobrecarga e diminui a produção natural nos testículos com o consumo do hormônio sintético.

“Os efeitos colaterais não vêm apenas durante o uso, mas são cumulativos, porque o uso de hormônio artificial bloqueia a produção própria. A função do testículo fica muito reduzida [com o uso de anabolizantes] até que, depois de meses ou anos [após a interrupção], ela vai retornando. Mas, em alguns casos, a produção de testosterona pode ficar comprometida para sempre”, explica Cecotti.

Em adolescentes, as consequências podem ser ainda piores. Isto porque os jovens ainda estão em fase de crescimento, e o desequilíbrio hormonal nesta fase pode comprometer o desenvolvimento, levando a uma maturação óssea acelerada que pode levar a baixa estatura.

Confira 10 perguntas e respostas sobre o uso dos anabolizantes

O assunto foi tema de uma reunião científica da Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte, que desconstruiu os principais motivos usados por prescritores das famosas “bombas” para fins estéticos e de performance. As terapias hormonais com esteroides androgênicos e anabolizantes (EAA) são um grupo de substâncias sintéticas formadas à base do hormônio testosterona. Não há comprovação dos benefícios e seu uso pode acarretar sérias complicações.

Confira a seguir 10 perguntas e respostas sobre o uso de anabolizantes:

Os médicos têm autonomia para prescrever remédios e, por isso, podem receitar anabolizantes?

Os médicos têm liberdade para prescrever medicamentos, mas essa autonomia tem limites e deve ser baseada na responsabilidade, avaliando sempre os malefícios e benefícios de cada prescrição. O tratamento deve respeitar o que é regulamentado e cientificamente comprovado. Mesmo que o paciente insista em algum tratamento, a conduta deve ser pautada pelos princípios da bioética. O uso de hormônios e seus derivados têm indicações muito precisas e só podem ser receitados em casos aprovados.

  1. Se a pessoa anda muito cansada, a testosterona pode ajudá-la a se sentir melhor?

A fadiga crônica é um quadro que, apesar de frequente, é muito complexo e pode ser causado por inúmeros fatores – desde hábitos de sono, condições metabólicas, cardiovasculares, psicológicas e estilo de vida. É preciso realizar uma investigação detalhada das causas para chegar a um diagnóstico adequado e ao tratamento correto. A testosterona não é a solução em nenhum caso.

  1. Os efeitos colaterais dos anabolizantes são pequenos e reversíveis?

Pelo contrário, não há dose segura para o uso dessas substâncias, e a lista de efeitos colaterais é longa, pois afetam vários sistemas. No cérebro, podem levar ao aumento da agressividade, chegando a quadros mais graves, como alucinações. Eles alteram a composição corporal, facilitando o acúmulo de gordura abdominal e visceral, causando fragilidade nos tendões e aumentando o risco de ruptura.

Nos homens, pode ocorrer o desenvolvimento das mamas e a redução dos testículos, enquanto nas mulheres há crescimento dos pelos corporais, engrossamento da voz e aumento do clitóris. Em todos os casos, há riscos cardiovasculares, de infertilidade, queda na libido, aumento do colesterol, além de serem tóxicos para o fígado, entre outros. Alguns danos são reversíveis, mas o processo de “desmame” pode ser muito difícil. Outros efeitos colaterais podem ser irreversíveis e até fatais.

  1. O uso de testosterona diminui o risco cardiovascular?

Esse benefício só foi cientificamente comprovado em pacientes com hipogonadismo, que é uma deficiência comprovada dos hormônios sexuais. Essa condição afeta o funcionamento dos ovários e testículos, bem como a produção de hormônios. A causa primária da deficiência hormonal deve ser investigada e tratada por um especialista.

Uma pesquisa realizada em idosos com perda muscular que utilizaram testosterona constatou um aumento do risco cardiovascular. Em pessoas saudáveis, o uso de testosterona pode acarretar um maior risco de hipertensão arterial, diabetes, infarto, derrame cerebral, arritmias, insuficiência cardíaca e morte prematura.

  1. Estudos mostram que a testosterona melhora a massa muscular. Como ela diminui gordura e aumenta músculos, pode ser usada para tratar obesidade e reduzir principalmente a gordura abdominal?

Embora a testosterona aumente a massa muscular, os estudos mostram benefícios apenas em pacientes específicos, com quadros graves de caquexia (uma condição médica caracterizada por perda de peso, perda de massa muscular e fadiga extrema em pessoas que estão gravemente doentes) ou queimaduras, e que usaram doses farmacológicas do hormônio. Ainda assim, não há dados de segurança e de desfechos a longo prazo.

Segundo especialistas, não se pode extrapolar esses resultados para populações saudáveis, que usam doses altíssimas de hormônio, muitas vezes associados com outras drogas para contrabalancear os efeitos colaterais e que aumentam mais ainda os riscos.

Já a afirmação que esteroides como a testosterona são eficazes para tratar obesidade não tem embasamento científico. Esses pacientes podem apresentar hipogonadismo funcional, um quadro que é revertido com a redução de peso. A obesidade é uma doença crônica e complexa que tem fatores genéticos, ambientais e comportamentais. Seu tratamento requer uma abordagem integral a longo prazo, que envolve mudanças no estilo de vida, como uma alimentação equilibrada, prática regular de exercício físico e, se necessário, intervenções médicas específicas, como a terapia medicamentosa.

  1. Se as mulheres podem tomar pílula ou fazer Terapia de Reposição Hormonal (TRH), por que não podem tomar esteroides?

Os efeitos dos contraceptivos e da TRH vêm sendo largamente estudados desde a década de 1950 e há protocolos específicos de quais hormônios utilizar em cada caso e quais mulheres não podem se beneficiar deles, seja para fazer o planejamento reprodutivo ou para combater efeitos do climatério (período que antecede a menopausa). Os riscos são conhecidos e as contraindicações devem ser respeitadas.

A TRH é feita com estrógeno e, em alguns casos, progesterona. Na menopausa, o estrógeno despenca causando os efeitos negativos como secura vaginal, aumento do colesterol, diminuição da libido, entre outros. A testosterona não faz parte da reposição hormonal da mulher pois ela não está associada a nenhum sintoma negativo. Os níveis desse hormônio caem gradativamente a partir dos 20 anos e o patamar não muda significativamente na menopausa.

Por isso, nos casos de queda na libido e fadiga, por exemplo, é preciso investigar causas como depressão, sintomas do climatério, infecções, hipotiroidismo, para citar apenas algumas. Não há nenhuma necessidade de dosar a testosterona na mulher, a menos que haja suspeita de excesso (em caso de tumores ou síndrome dos ovários policísticos, por exemplo).

Se as pessoas trans podem usar hormônios, por que eles não podem ser usados com fins estéticos por outras pessoas? 

O uso de hormônios por pessoas trans é uma intervenção médica legítima, com amplo respaldo de recomendações científicas. São casos muito específicos em que os benefícios superam os riscos. Mas deve ser feito por profissionais especialistas em diversas áreas, sempre sob grande supervisão.

E a intervenção só é realizada após intensa avaliação visando o bem-estar emocional, já que essas pessoas enfrentam grande sofrimento e precisam ser acolhidas e incluídas. O uso de esteroides anabolizantes com fins estéticos tem riscos graves e imprevisíveis para a saúde e podem até ser fatais.

  1. Se a taxa de hormônios cai com a idade, por que não se pode aumentar a dose deles?

O corpo envelhece como um todo. Não adianta colocar doses de hormônio de um jovem num corpo de idoso porque os desfechos serão diferentes. Se a dosagem hormonal está normal para a idade, deve-se procurar outras causas para as queixas do paciente, como anemia, obesidade, diabetes ou até mesmo câncer. Dar hormônio a quem não precisa poderá mascarar outras doenças e até dificultar o diagnóstico e o tratamento. E, às vezes, só o fato de tratar a doença de base ajuda a regular os níveis hormonais.

  1. O implante usado para liberar os hormônios (também conhecido como “chip da beleza”) é feito sob medida e customizado a partir do quadro do paciente. Ele seria uma alternativa?

O único implante aprovado pelas autoridades sanitárias é um contraceptivo específico. Os outros não são aprovados. Por isso, não se conhece exatamente sua composição, a dosagem, nem as informações farmacocinéticas – como a velocidade de absorção, a eficácia e a segurança das substâncias usadas.

Muitas vezes levam uma mistura de hormônios e até metformina, um medicamento para diabetes que não tem indicação de uso subcutâneo. Vale lembrar que os implantes hormonais têm ação anabolizante e podem causar os mesmos efeitos colaterais virilizantes dos demais derivados da testosterona. Para piorar, pode ser difícil retirá-los em caso de complicação.

Pode-se usar anabolizantes desde que com acompanhamento adequado dos efeitos colaterais?

Como a prescrição é proibida para fins estéticos e não há estudos que atestem a segurança e eficácia para melhora do desempenho esportivo, os profissionais que receitarem não têm embasamento científico para nortear sua prática. Não existe dose segura de anabolizantes e o acompanhamento transmite uma falsa segurança. Tanto que é comum receitar um pacote de remédios para combater os possíveis efeitos colaterais causados pelos hormônios – o que só agrava o quadro.

Discussão do CFM

Apesar da abundância de evidências científicas contra o uso de anabolizantes, a resolução do Conselho Federal de Medicina que decidiu pelo veto à prescrição de esteroides para fins estéticos não ocorreu sem polêmica.

O processo teve início em agosto do ano passado, segundo o endocrinologista Macedo, que foi um dos principais nomes envolvidos nas discussões realizadas no CFM.

“Foi criada uma câmara técnica de endocrinologia no CFM em agosto, unindo especialistas em endocrinologia, medicina do esporte, urologia e ginecologia, já por conta dessa prevalência de prescrições, e por um aumento no número de endocrinologistas relatando mais atendimentos a pacientes com complicações após uso de anabolizantes”, explica o médico.

Ao longo de vários meses, a câmara técnica montou um esboço da resolução, e o texto foi discutido entre diversos porta-vozes e conselheiros no CFM. A resolução foi aprovada, finalmente, nos últimos dias de março, e publicada em 11 de abril.

Em uma carta conjunta enviada ao CFM, as sociedades envolvidas na resolução relataram um aumento no número de “jovens médicos recém-formados que, seduzidos por promessas de altos rendimentos, diferenciação e colocação rápida no mercado de trabalho, acabam por seguir esses caminhos, que se apresentam como fáceis atalhos”.

“Eles pegam dois ou três esteroides juntos e vão misturando, e aumentando a dose, e vão somando ainda outras medicações para tratar os efeitos colaterais mais comuns, mas que também têm seus próprios efeitos colaterais”, conta Macedo.

Segundo a médica do esporte Karina Hatano, profissionais ligados à confederações esportivas podem ser punidos se prescreverem anabolizantes para os atletas sem finalidade comprovada.

“O anabolizante é proibido no esporte de alto nível, configura doping. Então, se o médico do esporte ligado a uma confederação prescreve uma medicação dessas com fins estéticos ou esportivos ele pode ser punido e até suspenso do esporte, assim como atleta”, explica Hatano.

Diversos profissionais da área de endocrinologia também apoiaram a decisão do CFM, e defendem que a resolução é importante para coibir um problema de saúde pública.

“Os pacientes não têm conhecimento técnico, não têm como discernir o que é certo e o que é errado. Então, é preciso coibir esse tipo de prática por parte dos médicos. Uma das funções do CFM é proteger a sociedade da má prática médica, da ação dos médicos que pode ser lesiva às pessoas, e é um caso em que estava ocorrendo essa ação”, completa Cecotti.

Fonte: Agência Einstein

 

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