Lançada recentemente pelo Instituto Vida Livre, durante o show beneficente Primavera dos Bichos, a campanha Vozes traz depoimentos de artistas relatando experiências de sofrimento humano, que, na verdade, são vividos por animais silvestres. A ação viralizou nas redes sociais nos últimos dias com um emocionante vídeo da cantora Maria Bethânia. Também participam voluntariamente da ação artistas como Xuxa, Glória Pires, Vera Holtz, Dira Paes, Fabiula Nascimento e Agnes Nunes.
“No nosso país, decapitar e torturar uma onça, sequestrar uma preguiça na mochila, espancar um gambá ou capturar dezenas de passarinhos são crimes tratados pela nossa legislação como “de baixo potencial ofensivo” e não são punidos. É urgente — e agora é possível — mudar essa história”, diz o Vida Livre, ao pedir que o Congresso Nacional apoie o Projeto de Lei 4.278/2023.
De autoria do deputado federal Marcelo Queiroz (PP-RJ), a nova proposta, no entanto, fica extremamente distante do que poderia se esperar para uma campanha tão bem articulada. O PL que pretende aprimorar as legislações ambientais em defesa dos animais silvestres poderia ter sido mais ousado em vista da tamanha ousadia que os traficantes de animais têm desde que o Brasil é Brasil.
Atualmente, no Brasil, qualquer crime contra a fauna, independente do grau de crueldade, é considerado de “baixo potencial ofensivo”, resultando em penas nulas e investigações inviabilizadas. Isso porque o Brasil conta com uma legislação datada de 1998, a Lei 9605, em que as punições aos crimes ambientais são muito brandas.
Lei Sansão: o que mudou depois da tortura do pitbull?
Mas o que seriam crimes ambientais de acordo com a lei de hoje? A Lei de Crimes Ambientais (LCA) é dividida por tipos de crimes, crimes contra a fauna, contra a flora, poluição e outros crimes, contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural, e contra a administração ambiental.
A última modificação mais notável sobre essa LCA, em relação à causa animal, foi a Lei Sansão (Lei 14.064/2020). Sansão foi um pitbull que foi amordaçado com arame farpado, torturado e teve as pernas posteriores decepadas com uma foice.
Tamanha crueldade e brutalidade moveu a opinião pública e a modificação da LCA teve também forte apoio do Executivo e do Legislativo brasileiros. Ou seja, população, poder público e privado em parceria para um causa nobre.
Felizmente, a alteração foi aprovada e Sansão recebeu cuidados e voltou a andar com próteses feitas em Denver, com auxílio da associação de proteção animal Patas para Você.
Sansão e muitos outros animais são torturados. Essa é a palavra correta sobre o que eles sofrem quando traficados, abusados, feridos, mutilados. A Lei Sansão fez três anos em 2023 e modificou o Art. 32 que estabelecia que praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos teria como pena detenção, de três meses a um ano, e multa.
Esse artigo passou a incluir o seguinte texto: “1º- A Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda”. Ou seja, pela modificação da LCA, quando o animal é torturado, o crime é punido com detenção de 2 a 5 anos mais multa.
O que pede o novo projeto de lei apoiado pela campanha Vozes?
A nova PL que ganhou apoio da campanha Vozes tem como objetivo fazer duas mudanças nodais na LCA:
No Art. 29 estabelece que “matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida tem como pena a detenção de seis meses a um ano, e multa”.
Pelo novo PL, a pena passa a ser reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e suspensão ou perda da permissão, licença ou autorização obtida. Ou seja, ainda há a conjunção “ou”. Além disso, a PL deseja incluir nova penalidade no Art. 32 sobre praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais:
1º-B Quando se tratar de animais silvestres nativos ou em rota migratória a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa.
Maus tratos a animais deve ser classificado como crime hediondo
Mas por que não reclassificar os crimes contra a fauna como hediondos? De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a palavra “hediondo” está descrita como algo sórdido, depravado, que provoca grande indignação moral, causando horror e repulsa. A expressão é utilizada com frequência para os crimes que ferem a dignidade humana, causando grande comoção e reprovação da sociedade. Eles são insuscetíveis de anistia, graça, indulto ou fiança.
Hoje, crimes hediondos são tipificados pela Lei de Crimes Hediondos (Lei Nº 8.072/90). O primeiro deles é o homicídio qualificado, ou seja, quando praticado em circunstância que revele perversidade. Também é considerado hediondo o homicídio praticado por grupo de extermínio, mesmo que cometido por uma só pessoa do grupo. Em 2015, duas leis incluíram, no rol de crimes hediondos, o assassinato de policiais e o feminicídio.
Os outros crimes enquadrados como hediondos são: extorsão qualificada pela morte, extorsão mediante sequestro, latrocínio, estupro, estupro de vulnerável, epidemia com resultado de morte, falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais, favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável, genocídio e posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito.
Além disso, há os crimes que são, por lei, equiparados aos crimes hediondos – o tráfico ilícito de entorpecentes, a tortura e o terrorismo. Segundo o CNJ, as penas dos crimes hediondos são cumpridas inicialmente em regime fechado, e a progressão de regime para pessoas condenadas nesse tipo de crime só pode ocorrer após o cumprimento de dois quintos da pena, em caso de réus primários, e de três quintos, em caso de reincidentes.
Tortura e tráfico de animais também causam horror e repulsa
Hoje, muitas famílias apresentam laços fortíssimos com os animais domésticos. Atos bárbaros contra os animais domésticos e silvestres também comovem a sociedade, por essa relação tão próxima no âmbito familiar e provocam grande indignação moral, causando horror e repulsa.
Então, o tráfico e a tortura deveriam ser hediondos por si só. Seja o tráfico de entorpecentes seja o de animais seja a tortura contra seres humanos seja contra animais.
A iniciativa tem seu mérito e muitos dizem que as modificações devem vir aos poucos. No entanto, a LCA é de 1998. E a mudança em 2023 que se deseja por esse PL é aumentar a pena de uma maneira ainda muito distante do que nossos animais merecem. 25 anos depois da LCA, a sociedade já concorda em sua maioria que crime contra animais é crime hediondo.