A revolução começa com a maneira como cuidamos de quem cuida. Desde muito cedo, as mulheres aprendem a relacionar cuidado ao amor. Um mecanismo utilizado pelo sistema capitalista, que explora esse trabalho, realizado predominantemente por mulheres, sem o devido reconhecimento e sem a compensação que deveria vir com ele. A história em quadrinhos “Nos braços dela” (NADA∴Studio Criativo) expõe essa realidade, transportando o leitor para um mundo onde o cuidado é finalmente visto como o que ele é: essencial para a sobrevivência humana.
Contemplada pelo ProAC/SP 2023, a obra é de autoria da escritora e ilustradora Bárbara Ipê e da jornalista e escritora Tatiana Achcar. Com ilustrações também de Bárbara, a obra é prefaciada por Maíra Liguori, diretora das organizações Think Olga e Think Eva.. O texto de orelha é assinado pela ilustradora, designer e escritora Ale Kalko (@alekalko). diretora das organizações.
Mães solo, mães atípicas, babás, faxineiras, enfermeiras, professoras — cuidadoras que, no silêncio do cotidiano, dedicam-se exaustivamente a esse trabalho invisível, estão representadas pelos traços sensíveis da Bárbara Ipê e humanizadas pelas sete narrativas que dialogam diretamente com as nossas experiências diárias.
Maíra Liguori, diretora das organizações Think Olga e Think Eva, no prefácio do livro
Baseada em relatos reais, de mulheres que estão à frente de trabalhos de cuidado produtivos e reprodutivos, a HQ “Nos braços dela” (NADA) trata de assuntos da economia do cuidado, desvalorização e precarização destes trabalhos, essenciais à vida, e muitas vezes mascarados de amor ou habilidade nata das mulheres.
A HQ trata de histórias cotidianas sobre a maternidade, maternidade atípica, profissões do cuidado como enfermagem, educação e trabalhadoras domésticas. Elas trazem à tona sentimentos de desamparo, exaustão, sobrecarga e solidão, comuns a muitas mulheres.
O trabalho de cuidado é um tema fundamental a ser refletido em nossa sociedade. Após a pandemia de Covid-2019, foi desvendada a crise relacionada aos trabalhos de cuidado, quando as mulheres tiveram que conciliar, dentro de casa, seus trabalhos produtivos remotos e o cuidado com crianças, doentes, idosos e pessoas com deficiência, sem contar com vida doméstica e serviços como escola, transporte, cuidadores, alimentação, entre outros.
Em 2023, o tema da redação do ENEM (Exame nacional do Ensino Médio) foi sobre o desafio para o enfrentar a invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil. E acaba de ser aprovada na Câmara dos Deputados, a Política Nacional de Cuidados.
Desde então, pesquisas sociais e de gênero apontam para a necessidade de refletir ações, em âmbito individual, coletivo e institucional, no sentido de reconhecer, valorizar e remunerar os trabalhos de cuidado na sociedade. As autoras da HQ tiveram acesso a estas pesquisas, tendo como principal fonte o relatório Esgotadas, disponibilizado pela organização Think Olga.
Elas buscaram referências na literatura, no jornalismo, nos quadrinhos e na psicanálise, e escutaram os relatos de muitas mulheres em diferentes contextos sociais, de idade e regionais e profissionais. A partir destas inspirações foram criados os sete capítulos da obra “Nos braços dela”.
O livro traz à tona reflexões sobre a desigualdade de gênero na distribuição dos trabalhos de cuidado, sua invisibilização, desvalorização e falta de apoio institucional e de políticas públicas, o que acarreta sobrecarga de muitas mulheres, isolamento social, empobrecimento, distanciamento do mercado de trabalho e da vida política, além de vulnerabilidade de sua saúde física e mental. Quando as mulheres cuidadoras estão vulneráveis, as pessoas que precisam de cuidado também ficam desamparadas, ou seja, é um enorme problema social.
A HQ “Nos braços dela” representa um grito abafado de muitas mulheres ao trazer atenção a esse assunto tão fundamental e tão invisível. A obra também busca uma maneira de abrir reflexões profundas sobre o cuidado e as desigualdades de gênero. Além disso, é um convite ao foco sobre as relações humanas, a potência do coletivo e o alicerce de nossa sobrevivência: o cuidado.
Ultimamente, as conversas sobre cuidado têm se intensificado na sociedade, e esse é um movimento saudável em direção ao bem-viver. Cuidar é muito mais do que uma lista de afazeres; é o próprio tecido da vida, o que sustenta a humanidade em sua maneira interdependente de sobreviver”, aponta Maíra Liguori, no prefácio.
“A compreensão do trabalho de cuidado como um bem comum nos dá uma nova perspectiva. Para além de algo que ‘tem que ser feito’, cuidar é um ato político, que deve ser reconhecido e valorizado por meio de políticas públicas para garantir sua redistribuição de forma mais justa”, aponta Gabriela Guenther, mediadora do clube de leitura Leia Mulheres de Botucatu (SP).
“O livro que você tem em mãos captura de maneira sensível a complexidade do cuidar e os problemas que sua invisibilidade traz para as mulheres e para toda a sociedade: do desamparo à sobrecarga, da solidão à culpa, do mundo interno, que se mobiliza completamente para dar conta da carga física, mental e emocional que o cuidar implica, e do mundo externo, que é inóspito, insuficiente, que agride e abandona tanto quem cuida quanto quem precisa de cuidado.”
Arte, escrita e maternidade solo
Bárbara Ipê e Tatiana Achcar são mães solo e compartilham das dificuldades de conciliar o trabalho produtivo com a criação de qualidade e com a presença de seus filhos. Além deste ponto em comum, elas também compartilharam estudos e reflexões sobre os trabalhos de cuidado e feminismos, temas que as motivam na militância feminista e também mbiental, duas pautas com tanto em comum.
A partir da pesquisa da linguagem nos quadrinhos, elas se motivaram a criar juntas a HQ “Nos braços dela”. O projeto levou cerca de um ano para ser produzido.
Bárbara nasceu e cresceu em Botucatu (SP), morou durante oito anos em Florianópolis (SC), retornou à Botucatu há 10 anos. Já Tatiana nasceu e cresceu em São Paulo, capital, e as viagens sempre fizeram parte de sua formação. Morou fora do Brasil, vivendo sobre duas rodas de uma bicicleta. Morou em Florianópolis e agora reside em Botucatu.
Bárbara é formada em Oceanografia pela UFSC em 2014 e em Pedagogia pela UNINTER em 2022. Assumiu sua carreira como artista, escritora e ilustradora em 2019. Atualmente mergulha na experiência de criar e produzir quadrinhos.
Desde pequena, sempre gostou muito de desenhar e já publicou as obras infanto-juvenis “Dona Cida” (Editora Patuá), em 2021; e a HQ “Meliponi & SuperApi” (NADA∴Studio Criativo), em 2023. Essas obras foram contempladas por editais ProAC, nos quais atuou como escritora, ilustradora, gestora e produtora cultural.
Já Tatiana é jornalista, escritora e ativista pelos direitos das pessoas com deficiência — sua filha tem Síndrome de Down — e pelos direitos das mulheres. Em sua trajetória profissional, percorreu as maiores redações do país como repórter de uma vasta gama de assuntos, mas dois mobilizaram Tatiana com paixão: educação e sociobiodiversidade. Produziu e escreveu um livro-reportagem sobre o modo de vida tradicional da população caiçara e os desafios da disputa pela terra.
O processo criativo mexeu profundamente com as autoras, refletindo diretamente em suas vidas pessoais, relações e formas de ver o mundo e se posicionar. “Fomos descobrindo um monte de artimanhas do patriarcado e um pacto social que determina que resta às mulheres a tarefa de cuidar dos outros e não de priorizar e maximizar seus próprios interesses e ganhos”, aponta Tatiana. “Aos homens é permitido defender seu interesse próprio enquanto as mulheres sustentam o frágil amor que deve ser conservado. Sendo excluídas.”
Experimentamos juntas o desabrochar de muitas reflexões que produziram lágrimas, risadas, encontros e desencontros. Uma experiência verdadeira de união e criação entre mulheres, driblando o script de rivalidade, competição e separação determinado pelo patriarcado”, reflete Bárbara Ipê. “Recomendamos: mulheres unam-se, criem juntas, abracem as diferenças. Temos muita potência”.
Bárbara cita como influência os trabalhos de Vera Iaconelli, Lilia Schwarcz, Marília Marz, Regiane Braz, Chantal Montellier, Liv Strömquist, Marjane Satrapi, Ana Penyas, Chloé Cruchaudet, Aimée de Johng, entre outras. Já Tatiana fala de Silvia Federici, bell hooks, Elena Ferrante, Fernanda Young, Gay Talese, Carol Ito e Ale Kalko.
Palavra de Especialista
Burnout materno e a desigualdade no cuidado: a sobrecarga invisível das mães brasileiras
Por Bárbara Ipê e Tatiana Achcar*
A chegada de uma criança transforma a vida de quem cuida dela. Enquanto as mães, quase sempre, se dedicam integralmente, muitos pais ainda participam pouco. A paternidade precisa ser tão natural para os homens quanto a maternidade é para as mulheres. Se a sociedade evoluiu com as mães como pilares da criação, imagine o impacto de um real engajamento paterno.
No Brasil, 7 em cada 10 mulheres são mães, e 4 em cada 10 criam os filhos sozinhas. Isso representa 11 milhões de mães solo, das quais 90% são negras. Além disso, 72,4% vivem apenas com os filhos, sem uma rede de apoio próxima, e 12% apresentam sinais graves de esgotamento mental (IBRE/FGV). A sobrecarga começa desde os primeiros dias de vida do bebê.
O aleitamento materno, recomendado pelo Ministério da Saúde até os dois anos ou mais, equivale a uma jornada de 1800 horas por ano, exigindo cerca de 500 calorias diárias da mãe, além da privação de sono e da exaustão física. Apesar disso, a licença-maternidade dura apenas quatro meses, e as pausas para amamentação no trabalho são insuficientes para atender às necessidades do bebê e da mãe.
Além das dificuldades físicas e emocionais, há também o impacto profissional. Muitas mulheres enfrentam preconceito e até demissão ao retornar ao mercado: 50% das mães perdem seus empregos até dois anos após a licença-maternidade, segundo a FGV. Enquanto isso, 80% das mães relatam exaustão ao equilibrar filhos, casa e trabalho – entre os pais, esse índice cai para 48%.
Burnout materno
O esgotamento das mães brasileiras atingiu um nível alarmante. Nove a cada dez já sofreram burnout materno, e entre as que trabalham fora, 68% são afetadas pela Síndrome de Burnout. As mães de crianças com deficiência física, intelectual, TEA, TDAH e outras neurodivergências estão entre as mais impactadas, sofrendo altos índices de ansiedade, depressão, sobrecarga e exclusão social, segundo a pesquisa Kiddle Pass/B2Mamy.
O Projeto de Lei nº 2774/2022 propõe a redução da jornada de trabalho em 50% para mães de crianças com Síndrome de Down, evidenciando a necessidade de políticas públicas para aliviar essa sobrecarga.
A vulnerabilidade emocional e mental das mães está diretamente ligada às condições socioeconômicas. Segundo o PNUD, entre 2018 e 2021, uma em cada quatro mães em situação de vulnerabilidade socioeconômica apresentou sintomas depressivos no primeiro ou segundo ano pós-parto – ou em ambos. O Instituto Baresi (2012) aponta que 78% dos pais abandonam as mães de crianças com deficiência ou doenças raras até os filhos completarem cinco anos de idade, agravando ainda mais essa sobrecarga.
Nos últimos 10 anos, o número de mães solo aumentou 18%, sendo 90% delas negras. A feminização da pobreza é um fenômeno global, e no Brasil, essa desigualdade é evidente: 62,8% das pessoas que vivem em domicílios chefiados por mulheres sem cônjuge e com filhos menores de 14 anos estão abaixo da linha da pobreza (IBGE). Além disso, 45% das mães solo trabalham no mercado informal, enfrentando condições precárias de rendimento e bem-estar financeiro.
Quanto maior a vulnerabilidade socioeconômica, maior a vulnerabilidade emocional e mental dessas mães. Enquanto o cuidado permanecer desigualmente distribuído, a sobrecarga continuará recaindo sobre as mulheres, perpetuando um ciclo de exaustão, pobreza e invisibilidade. A solução passa pelo reconhecimento, pela valorização do trabalho de cuidado e pelo compartilhamento real dessa responsabilidade entre homens, mulheres e toda a sociedade.
A psicanalista Vera Iaconelli propõe uma discussão interessante ao refletir sobre o instinto materno enquanto um mito: “atribuir só aos pais a responsabilidade e o crédito de criar a próxima geração reforça a ideia mercadológica e meritocrática de que o cumprimento de expectativas é fruto de decisões privadas e não de condições sociais.
Se a política de responsabilizar as mulheres pelo cuidado das próximas gerações já era insustentável no passado, agora tende ao colapso. O filho muitas vezes “se revela um fardo por competir com o trabalho, o tempo, a vida pessoal, as finanças e a vida conjugal”.
37% das brasileiras não desejam ter filhos
Segundo pesquisa da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, 37% das brasileiras não desejam ter filhos. Iaconelli ressalta que esta divisão da reprodução ainda é usada para subalternizar a mulher na esfera privada e pública. Cuidar da próxima geração, diz Iaconelli, passa por cuidar das mulheres/mães num primeiro momento, mas passa sobretudo pela responsabilização da sociedade como um todo.
Diante desse cenário de sobrecarga materna e desigualdade na distribuição do cuidado, a HQ “Nos braços dela” surge como um potente retrato das experiências reais de mulheres que sustentam, muitas vezes sozinhas, o trabalho de cuidado. A obra explora não apenas a maternidade – incluindo a maternidade atípica –, mas também o cuidado com idosos, doentes e o impacto dessa responsabilidade em profissões historicamente femininas, como a enfermagem, a educação e o trabalho doméstico.
As histórias revelam sentimentos comuns a milhões de mulheres brasileiras: exaustão, desamparo e invisibilidade. Ao dar voz a essas vivências, Nos braços dela contribui para um debate urgente sobre a economia do cuidado, a desvalorização desse trabalho essencial e a necessidade de uma divisão mais justa da responsabilidade entre indivíduos, famílias, empresas e o Estado.
Sobre as autoras
Entre quadrinhos, literatura, jornalismo e maternidade
Bárbara Ipê é escritora, quadrinista e ilustradora desde 2019. Mãe de dois meninos, equilibra seu tempo entre processos criativos, estudos e trabalhos, com os prazeres e desafios da maternidade. Tenta equilibrar os papéis de mãe solo e artista com um ideal: ler e estudar por três horas e mais três horas de criação e produção. Já publicou as obras infanto-juvenis “Dona Cida” (Editora Patuá), em 2021; e a HQ “Meliponi & SuperApi” (NADA∴Studio Criativo), em 2023, projetos contemplados por Editais do ProAC/SP.
Tatiana Achcar é jornalista, escritora e ativista pelos direitos das pessoas com deficiência e pelos direitos das mulheres. Escreve reportagens, artigos e opiniões e cria estratégias e conteúdo de comunicação para empreendedoras e suas empresas. Em sua trajetória profissional, foi repórter de grandes redações cobrindo pautas de educação e sociobiodiversidade. Escreveu e produziu o livro-reportagem “Vida caiçara” (Editora ABooks, 2008).
Há dois anos ela criou o blog “Artimanhas do patriarcado” para desvendar os artifícios que o sistema patriarcal usa para tentar manipular e prejudicar mulheres. Recentemente Bárbara criou uma série de quadrinhos chamada “A Saga da mãe solo ilustradora”. As tirinhas são publicadas semanalmente em sua rede social (@barbara.ipe). Essa criação foi fruto da elaboração da oficina de capacitação em criação de HQ, oferecida como ação de contrapartida e de maneira gratuita para jovens e adultos nas cidades de Botucatu e Pardinho, em São Paulo. “Para o ano que vem tenho algumas parcerias em vista para criação de novos quadrinhos e literatura infanto-juvenil”, conclui Bárbara.
Serviço:
Título: “Nos braços dela”
Autoras: Bárbara Ipê e Tatiana Achcar
Gênero: História em Quadrinho
Editora: NADA∴Studio Criativo
Onde comprar: no site do NADA Studio Criativo
Número de páginas: 114
Instagram: @nos.bracos.dela.hq