Tumor vascular benigno comum, os hemangiomas são as anomalias vasculares mais frequentemente encontradas em idade pediátrica. Eles acometem cerca de 5% das crianças e surgem nas primeiras semanas de vida, podem ter crescimento rápido nos primeiros meses e depois começam a regredir espontaneamente.
O hemangioma cavernoso é uma malformação venosa, em que as artérias, que usualmente são normais, transmitem uma pressão muito maior para o lado venoso e formam varizes em determinadas partes do corpo. Muito comuns em bebês, em cerca de 70% dos casos esses tumores benignos desaparecem até os 10 ou 12 anos.
Não foi o que aconteceu com a jovem Andressa Cordeiro, hoje com 25 anos. Ela levava uma vida normal em Luiziana, interior do Paraná, até os 10 anos de idade. “Minha mãe me conta que, quando eu era pequena, manchas vermelhas apareciam no meu rosto toda vez que ficava agitada”, conta Andressa.
A partir daí, em 2010, uma condição rara fez com que atividades corriqueiras, como beber água e ir para a escola, se tornassem difíceis. Ela foi diagnosticada com hemangioma cavernoso da face, uma malformação observada desde o nascimento, podendo progredir com o desenvolvimento da criança, causar um tumor vascular benigno e atingir proporções gigantescas.
Quando recebi o diagnóstico, não compreendia muito bem o que estava acontecendo. Mas o aumento anormal do tumor fez tudo ficar mais complicado, com riscos de hemorragias e necessidade de estar isolada”, complementa a paciente.
No caso de Andressa, o tumor evoluiu e continuou a crescer, fazendo ela perder um dos olhos, parte dos lábios e do nariz. O quadro da jovem tornava qualquer cirurgia uma escolha arriscada, levando a paciente a ser acompanhada pela equipe de neurorradiologia intervencionista por mais de uma década e precisando passar periodicamente por procedimentos para diminuir o risco de sangramento.
Médicos se unem para remover tumor facial do rosto de jovem
Paranaense enfrenta condição rara desde pré-adolescência e passa por cirurgia de reconstrução facial aos 24 anos em hospital SUS
No final de agosto de 2023, a equipe multidisciplinar do Hospital Universitário Cajuru, em Curitiba (PR), se reuniu e aceitou o desafio de dar a Andressa um novo rosto. Um dos médicos da equipe, o neurorradiologista intervencionista Gelson Luis Koppe, acompanha a paciente desde o início no Cajuru, com atendimento exclusivo pelo SUS.
Tenho mais de 25 anos de experiência no tratamento de condições semelhantes e este foi um dos casos mais delicados que já chegaram até meu consultório. Devido ao crescimento avançado do tumor, foi preciso estabilizar e melhorar a saúde da paciente antes que ela pudesse passar por uma cirurgia de grande porte”, explica o especialista que também atua no Hospital São Marcelino Champagnat.
Após uma cirurgia que durou mais de 18 horas e só foi possível em razão dessa união de médicos de diversas especialidades, Andressa foi deixando as dificuldades de executar pequenas tarefas e a impossibilidade de frequentar locais públicos vão ficando no passado. Para ela, é hora de refazer a rota e mirar novos caminhos, começando pelo mais simples.
Todo medo desapareceu quando soube que muitos médicos e enfermeiros estavam preocupados e cuidando de mim”, lembra a jovem. “Sinto-me aliviada, como se estivesse recebendo uma segunda chance na vida. Tudo é tão novo para mim que estou me adaptando gradualmente e começando a planejar o futuro”, finaliza a paciente.
Cirurgia de jovem com hemangioma cavernoso durou 18 horas
No dia 27 de agosto, a equipe liderada por Dr Koppe, entrou em ação com o objetivo de fazer uma embolização maciça, fechando e interrompendo o fluxo sanguíneo que alimentava o hemangioma. Foram mais de 18 horas, distribuídas em várias etapas, para remoção do tumor.
Por meio de agentes embolizantes, essa técnica possibilitou a obstrução das artérias e veias, prevenindo possíveis hemorragias durante os próximos procedimentos. “Precisamos ocluir as veias e algumas artérias para que a equipe médica pudesse trabalhar”, contextualiza o neurorradiologista intervencionista.
No dia seguinte, cirurgiões de diferentes hospitais entraram em cena para finalmente remover o tumor e reconstruir o rosto. Inicialmente, a médica Marja Reksidler, dos hospitais Erasto Gaertner e Pequeno Príncipe, conduziu a cirurgia de ressecção. Sua participação foi fundamental para a segurança do procedimento e remoção completa da malformação da face de Andressa.
Foi um grande desafio, porque além de ser extensa, a lesão também era muito vascularizada, o que aumentava o risco de sangramento. Mas com a integração do conhecimento entre os profissionais, foi possível reduzir os riscos e ajudar a paciente a retomar a vida da melhor maneira possível”, afirma a cirurgiã de cabeça e pescoço.
Cirurgião plástico atuou na reconstrução da face
Posteriormente, o cirurgião plástico Alfredo Duarte, do Hospital São Marcelino Champagnat, deu início à reconstrução da face. “Como houve perda de pele, músculos e nervos, fizemos o transplante de tecido da própria paciente para a região onde estava o tumor. Por isso, optamos por um retalho do músculo grande dorsal para garantir a movimentação facial e a cobertura cutânea”, detalha Alfredo.
Esse tecido faz parte da região posterior e inferior do tronco e da cintura escapular, entre a coluna vertebral e a região axilar. “Ainda temos mais etapas de cirurgias pela frente para reconstrução do lábio, do olho e do nariz, mas já estamos muito felizes com os resultados e honrados em participar ativamente desse processo de reintegração da Andressa na sociedade”, acrescenta.
Forças-tarefas como essa, que reúnem profissionais de várias áreas, são essenciais em cirurgias como a de Andressa, que exigem, além de infraestrutura de ponta, a troca de experiências entre todo o corpo clínico, com um mesmo objetivo em comum.
Em 2021, o cirurgião plástico Alfredo Duarte organizou outra grande intervenção no Hospital São Marcelino Champagnat para a retirada de um tumor de 30 kg de uma paciente, com a participação de um médico norte-americano especialista na remoção de tumores volumosos.
Leia mais
8 entre 10 bebês com doença rara têm pais sem a patologia
Atriz mirim morre aos 11 anos, após diagnóstico de tumor cerebral
Câncer adrenal: entenda o tumor raro que matou Emilie Dequenne
Anomalias vasculares acometem 0,5% dos nascidos vivos no Brasil
Alterações estão presentes em cerca de 2% dos pacientes submetidos a exames. Maioria foi identificada em mulheres acima de 18 anos
O caso de Andressa é raro, mas não é incomum. Promovida na semana do dia 15 de maio, a Semana Nacional de Conscientização sobre Hemangiomas e Anomalias Vasculares – instituída no Brasil pela Lei nº 14.588/2023 – reforça a necessidade de atenção a essas condições que, apesar raras, podem afetar recém-nascidos, crianças e adultos.
Um levantamento inédito envolvendo todos os exames de tomografia computadorizada e ressonância magnética de uma única instituição (996.569 estudos realizados entre 2009 e 2019) identificou anomalias vasculares em aproximadamente 2% dos pacientes, ou 18,49 para cada 1.000 exames (17,41 hemangiomas; 0,69 cavernoma e 0,39 malformação vascular por 1.000 exames).
Os dados estão no artigo científico “Perfil radiológico de 18.430 anomalias vasculares: incidência e distribuição demográfica em uma população adulta”, realizado por pesquisadores do Einstein e publicado em 2023 no periódico Annals of Vascular Surgery (Para acessar o estudo clique aqui).
Nosso objetivo era descobrir com que frequência elas acometiam as pessoas, e conseguimos identificar este percentual de 1,8%”, afirma a cirurgiã-vascular Maria Fernanda Portugal, pesquisadora e doutoranda do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Ciências da Saúde do Einstein.
As anomalias vasculares descrevem anormalidades ou distúrbios do sistema vascular (veias e artérias) que podem ser simples ou complexas. Ocorrem antes ou após o nascimento, durante o desenvolvimento das artérias, veias e/ou vasos linfáticos, podendo ser herdadas ou esporádicas.
Elas são classificadas como malformação ou tumores vasculares e podem ser consideradas como um conjunto de doenças de alta prevalência em 0,5% dos nascidos vivos, aumentando em crianças prematuras e sendo três vezes mais frequente em meninas.
Hemangioma x cavernoma
Hemangiomas, considerados tumores benignos, foram os mais frequentes, Análise avaliou ressonâncias e tomografias em um período de mais de 10 anos
Entre as mais frequentes temos o hemangioma, que é um tumor benigno comum na infância, formado pela proliferação excessiva e desordenada de minúsculos vasos sanguíneos que se acumulam na pele ou em órgãos internos, e que podem desaparecer sem a necessidade de intervenção, enquanto outros podem necessitar de tratamento.
As anomalias identificadas em menores de 18 anos já foram exploradas em outros trabalhos. Já acima dessa faixa etária, para a qual estudos são mais raros, a maior parte das alterações foi identificada em mulheres submetidas a exames de imagem”, explica o Marcelo Passos Teivelis, pesquisador e orientador do trabalho.
Já o cavernoma, um aglomerado de vasos sanguíneos anormais geralmente encontrado no cérebro e na medula, também é uma anomalia frequente. Ele consiste em uma lesão benigna, porém com risco de gerar sangramentos e compressão de estruturas do sistema nervoso central.
Na maioria das vezes, contudo, essa malformação não causa nenhum sintoma e só é descoberta acidentalmente, quando o paciente realiza exames de imagem por outro motivo. Nesse caso, o tratamento pode ser indicado para prevenir eventuais hemorragias ou resolver compressões.
Esse levantamento teve como objetivo saber a realidade no país, ou seja, mostrar a proporção de anomalias em uma população geral – e conseguimos isso”, explica o cirurgião-vascular Nelson Wolosker, co-orientador da pesquisa e reitor da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein.”
A importância do diagnóstico correto e precoce
Lesões avermelhadas na pele e malformações no rosto de crianças devem ser investigados em consultas médicas. Sintomas podem indicar a ocorrência de anomalias vasculares
Segundo Luiza, algumas síndromes específicas apresentam malformações vasculares associadas a outras alterações, como a síndrome de Sturge-Weber — caracterizada por malformações capilares na face, glaucoma e alterações vasculares cerebrais — e a síndrome de Klippel-Trenaunay — que envolve comprometimento venoso, capilar e crescimento exagerado dos membros.
Essas síndromes complexas são ainda mais raras. A síndrome de Klippel-Trenaunay, por exemplo, acomete cerca de um em cada 22 mil indivíduos. Por isso, é fundamental que esses pacientes sejam acompanhados por equipes multidisciplinares com profissionais especializados no diagnóstico e tratamento das anomalias vasculares.
De acordo com a cirurgiã vascular e vice-diretora Científica da Sociedade Brasileira de Angiologia e de Cirurgia Vascular – Regional São Paulo (SBACV-SP), Luísa Ciucci Biagioni, a correta identificação de cada condição é fundamental para tranquilizar as famílias e programar o tratamento. Equipe multidisciplinar é fundamental para evitar o comprometimento da alimentação, audição, visão, respiração e até mesmo a fala dos paciente
O diagnóstico correto permite a compreensão da doença e a definição do tratamento que pode ser expectante, com medicações, cirurgias ou até embolizações. Sem a classificação correta, há risco de tratamentos inadequados, complicações e sequelas importantes, como sangramentos ou lesões em estruturas saudáveis, incluindo nervos e músculos”, alerta.
Maioria dos hemangiomas infantis não precisa de cirurgia
Geralmente esses tumores se apresentam como lesões planas ou abauladas. As lesões superficiais apresentam tonalidade rosa a vermelho-brilhante, com forma semelhante a um morango, mas também se apresentam em tons azulados, com vasos superficiais visíveis e, às vezes, um halo pálido ao redor.
Essas lesões podem sangrar ou ulcerar por pequenos traumas e são mais frequentes em meninas, numa proporção de quatro para um, predominando na face e no tronco. Nos casos mais extensos, costumam deixar cicatrizes esbranquiçadas e vasos dilatados superficiais, após a involução.
Os tumores têm evolução favorável, podendo regredir completamente, no entanto, em alguns casos a criança precisará de tratamento cirúrgico, com lasers ou medicamentoso para o desaparecimento.
Nos casos em que não desaparecem sozinhas, as anomalias podem comprometer atividades crucias das crianças, pois à medida que a criança cresce, a malformação também aumenta e pode ocasionar problemas que vão além da estética.
Dentre os impactos, estão interferências na fala, alimentação, audição, visão e respiração, que podem prejudicar o dia a dia e a qualidade de vida dos pacientes”, explica o cirurgião plástico Dov Charles Goldenberg, membro do Centro Multidisciplinar para o Tratamento de Anomalias Vasculares Craniofaciais do Centro de Medicina Intervencionista do Einstein.
Quando é preciso operar
Apesar da complexidade dessas condições, a Dra. Luísa enfatiza que a maioria dos hemangiomas infantis pode ser acompanhado clinicamente. Casos que envolvem lesões próximas aos olhos, pálpebras, ponta do nariz ou região genital merecem atenção especial devido ao risco de complicações como ulcerações ou prejuízo funcional.
Goldenberg explica que as indicações de abordagem cirúrgica para anomalias craniofaciais ocorrem em diferentes contextos: quando da presença de deformidade relacionada ao crescimento em áreas faciais funcionais, ou seja, em quadros nos quais essas causam comprometimento funcional devido à obstrução visual, comprometimento das vias aéreas ou problemas de alimentação. Nesses casos, a ressecção total ou parcial precoce é obrigatória.
Complicações locais após tratamento farmacológico, como sangramentos, infecções ou ulceração, também podem necessitar que o caso vire cirúrgico. O procedimento intervencionista é necessário, ainda, para tratar deformidades e minimizar cicatrizes que surgem em alguns casos devido a ressecções realizadas para resolver um problema emergencial.
Malformações vasculares periféricas
Já as malformações vasculares periféricas (MVPs) são estruturas vasculares anômalas, formadas ainda no período embrionário, que crescem de forma proporcional ao desenvolvimento da criança e não regridem durante a vida. Elas envolvem a formação de vasos sanguíneos ou linfáticos displásicos (anormais). Muitas vezes, podem estar associadas a deformidades como hipertrofia de membros, alterações musculares, esqueléticas, neurológicas ou oculares.
Malformações vasculares extensas podem cursar com infecções, sangramentos, tromboses venosas, dores crônicas e dificuldades de locomoção. Ainda não há cura para as malformações vasculares, o objetivo do tratamento é minimizar as complicações, melhorar a qualidade de vida e, sempre que possível, reduzir o tamanho das lesões.
Após avaliação clínica e exames específicos, definimos as prioridades terapêuticas em conjunto com o paciente e sua família. Em algumas situações, optamos por acompanhamento clínico, em outras, utilizamos terapias medicamentosas, intervenções percutâneas ou procedimentos endovasculares, dependendo do tipo, da localização e da gravidade das anomalias”, finaliza a médica.
Com Assessorias