A morte de Sarah Raissa Pereira de Castro, de 8 anos, no Distrito Federal, no último domingo (13), chamou a atenção do Brasil inteiro para a prática conhecida como “desafio do desodorante“. Trata-se de uma espécie de prova de resistência, compartilhada por crianças e adolescentes nas redes sociais – principalmente no Tik Tok – que consiste em inalar grandes quantidades de desodorante aerossol.

A chamada “trend” faz parte de uma categoria perigosa de desafios conhecida como chroming ou huffing, que estimula a inalação de vapores tóxicos de produtos de uso doméstico, como sprays de limpeza, tinta, esmalte e desodorantes.  chroming não é novidade, mas tem ganhado força com a ampla circulação de vídeos curtos e virais em plataformas populares entre crianças e adolescentes.

Dados do Instituto DimiCuida revelam que, entre 2014 e 2025, ao menos 56 crianças e adolescentes com idades entre 7 e 18 anos perderam a vida no Brasil em decorrência de desafios compartilhados nas redes sociais.

A busca por aceitação nas redes sociais e o desejo de pertencer a um grupo pode fazer com que crianças e adolescentes se exponham a riscos extremos sem consciência das consequências”, explica a psicóloga Bruna Bettini, que atua em Brasília no espaço Uwake. “O cérebro ainda em desenvolvimento tem mais dificuldade de avaliar riscos e ponderar decisões.

Bettini também alerta para os impactos emocionais e sociais desses desafios. “Não é apenas sobre a curiosidade ou a brincadeira. Existe uma pressão silenciosa para se mostrar ‘valente’, ousado, engraçado. A validação por curtidas e comentários muitas vezes supera o senso de autopreservação.”

Enquanto isso, famílias, escolas e sociedade civil enfrentam o desafio de proteger as infâncias em um ambiente digital onde os perigos nem sempre são visíveis. A psicóloga destaca o papel dos pais e responsáveis é essencial na mediação do que os filhos acessam e consomem digitalmente. Para Bruna Bettini, o diálogo dentro de casa é a ferramenta mais poderosa de prevenção.

Mais do que proibir, é preciso conversar com as crianças, entender o que estão assistindo, com quem estão interagindo e ensinar, com afeto e direcionamento, sobre os perigos da exposição irresponsável.”

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Tragédia anunciada: o papel da escola nessa equação

A tragédia escancarou mais uma vez os riscos silenciosos que rondam crianças conectadas sem supervisão. O caso, semelhante ao de Brenda Sophia Melo de Santana, de 11 anos, que morreu em março na cidade de Bom Jardim (PE), pelas mesmas circunstâncias, não pode ser visto como um acidente isolado, trata-se de uma ‘tragédia anunciada’.

A infância é marcada por impulsos, falta de repertório e vulnerabilidade biológica. O cérebro de uma criança dessa idade ainda não tem estrutura para avaliar riscos ou resistir a conteúdos manipulativos”, explica Mariana Ruske, pedagoga e fundadora da Senses Montessori School. “Desafios perigosos se espalham rapidamente nas redes sociais, e o algoritmo não distingue idade, apenas engajamento. Criança não tem freio. É como deixá-la atravessar uma rodovia sozinha.”

Segundo ela, o acesso livre à internet por crianças pequenas, especialmente sem mediação adulta, representa uma negligência inaceitável. Mais do que limitar tempo de tela, é preciso estabelecer vínculo e confiança. “Criança que teme punição, esconde. Criança que sente segurança, compartilha. E isso pode ser a diferença entre a vida e a morte.”

Para Mariana, a escola deve ser aliada ativa da família. “Proibir o uso de celulares em sala é um bom começo, mas é preciso ir além: oferecer oficinas sobre segurança digital, abrir espaço para conversas sobre emoções, frustrações e impulsos, ensinar autorregulação. Estamos em 2025, e a educação precisa reconhecer que formar seres humanos resilientes, empáticos e conscientes é tão importante quanto ensinar equações e datas históricas.”

A tragédia de Sarah Raíssa não pode ser apenas mais um lamento coletivo. Ela precisa nos mover. Como pais, mães, educadores e sociedade, nossa missão é inegociável: proteger nossas crianças. E isso começa com limite, presença e afeto. Ser firme não é ser agressivo. Ser gentil não é ser permissivo. É ser responsável”, finaliza Mariana.

A responsabilidade das plataformas digitais

Sem governança digital que priorize a segurança, os riscos disfarçados de brincadeiras continuarão sendo normalizados

A psicóloga Bruna Bettini também defende a necessidade de maior responsabilidade por parte das plataformas digitais. “Estamos falando de conteúdos com potencial letal sendo acessados por crianças com poucos cliques. As empresas precisam agir com mais firmeza na moderação dessas tendências.”

Para especialistas em internet, a tragédia evidencia a gravidade da exposição de crianças a conteúdos perigosos e levanta uma questão urgente: qual é, afinal, a responsabilidade das plataformas digitais diante desse tipo de material?

Segundo Marcelo Crespo, coordenador dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da ESPM e especialista em Direito Digital, esses desafios circulam livremente no ambiente online há anos, sem uma moderação eficaz.

Eles impõem situações de extremo risco à integridade física de crianças e adolescentes, envolvendo práticas como automutilação, ingestão de substâncias tóxicas, simulações de asfixia, entre outros comportamentos potencialmente letais, como foi o caso do Desafio da Baleia Azul” e doDesafio do Apagão”, que causaram outras mortes em anos anteriores.

Crespo reforça que a responsabilização legal de criadores de conteúdo e das próprias plataformas é plenamente possível. “O Estatuto da Criança e do Adolescente e o Marco Civil da Internet oferecem base jurídica para responsabilização. Quando há indução ou instigação a práticas perigosas, deve-se considerar, inclusive, a responsabilização penal, até mesmo por homicídio.”

Para ele, o grande desafio é que a legislação brasileira ainda caminha de forma lenta diante da velocidade com que esses fenômenos surgem e se espalham nas redes. “O Estado avança vagarosamente com iniciativas voltadas à proteção da infância, mas é preciso ir além. Sem uma governança digital que realmente priorize a segurança das crianças, continuaremos assistindo à naturalização de riscos extremos disfarçados de brincadeiras.”

Especialista em comunicação na internet, o sociólogo Marcelo Senise diz que “o caminho não reside em controlar o que pode ou não ser dito, mas em estabelecer mecanismos claros e eficazes de responsabilização para quem produz, impulsiona e lucra com conteúdos manifestamente perigosos”.

Segundo ele, “isso significa responsabilizar diretamente os criadores que idealizam e promovem desafios que atentam contra a integridade física e psicológica. Significa cobrar das plataformas digitais uma postura muito mais proativa e transparente na moderação desses conteúdos” (veja mais no artigo ao final da matéria).

Como agir agora?

A pedagoga Mariana Ruske lista algumas dicas essenciais para pais e educadores

  • Supervisione e limite o acesso digital: Crianças pequenas não devem ter autonomia online.
  • Observe sinais de alerta: Mudanças no comportamento, isolamento, irritabilidade ou sono alterado podem indicar exposição a riscos.
  • Acolha os erros: Castigar ou ignorar pode afastar a criança. Escutar e orientar abre portas.
  • Converse sempre: Seja o porto seguro para onde seu filho sabe que pode voltar.
  • Exija e proponha ações na escola: Segurança digital e educação emocional precisam estar no currículo da vida.

O que fazer em caso de emergência?

Segundo especialistas, o impacto do ‘desafio do desodorante’ no organismo é devastador. Ao ser inalado, o produto entra rapidamente na corrente sanguínea pelos pulmões — órgãos extremamente vascularizados — e pode provocar arritmias cardíacas severas, culminando em parada cardíaca e óbito em poucos minutos.

Além disso, o desodorante contém substâncias como etanol (em níveis até 90% superiores aos encontrados em bebidas alcoólicas), ácido clorídrico e compostos antissépticos, que podem causar desde queimaduras internas até reações alérgicas extremas, como o edema de glote — quando a garganta se fecha, impedindo a respiração.

Seus efeitos imediatos se assemelham à intoxicação alcoólica: tontura, euforia, fala arrastada, vômitos, convulsões e dificuldade para respirar. Os produtos inalados têm em comum a facilidade de acesso e o fato de estarem presentes em praticamente todos os lares.

Caso uma criança inale uma substância tóxica, a orientação médica é clara: deve ser levada imediatamente ao pronto-socorro. Pode haver necessidade de oxigenação por inalação ou intubação. “Jamais se deve provocar o vômito ou oferecer qualquer substância, como leite ou água, sem orientação médica”, alertam especialistas.

Entenda o caso

Sarah Raissa Pereira de Castro, 8 anos, foi socorrida na última quinta-feira (10) e levada ao Hospital Regional de Ceilândia (HRC), mas teve morte cerebral confirmada dias depois. Segundo a Polícia Civil, a garota foi encontrada em sua casa, desmaiada, segurando um frasco de desodorante aerossol e parentes de Brenda a levaram às pressas ao hospital.

No último domingo (13), a 15ª Delegacia de Polícia do Distrito Federal instaurou um inquérito para apurar as circunstâncias da morte da criança.  Os investigadores tentam esclarecer se e como Sarah teve acesso à divulgação do desafio e identificar os eventuais responsáveis por sua publicação.

Os envolvidos poderão responder por homicídio duplamente qualificado (por emprego de meio capaz de causar perigo comum e por se tratar de vítima menor de 14 anos), crime cuja pena pode chegar a 30 anos de reclusão.

Palavra de Especialista

Desafio fatal: quando a viralização mata e a omissão cobra seu preço

A trágica morte de uma criança em Brasília, vítima de um desafio online, não é apenas um caso isolado – é o sintoma de um sistema que falha em proteger os mais vulneráveis. A resposta não pode ser a censura, mas sim a responsabilização urgente de quem cria, dissemina e lucra com o perigo

Por Marcelo Senise*

A notícia chocou o país e expôs, mais uma vez, a face sombria da conectividade irrestrita: uma criança de apenas 8 anos, em Brasília, perdeu a vida ao inalar desodorante, supostamente induzida por um “desafio” viralizado em plataformas como TikTok e Kwai. Essa tragédia não é um raio em céu azul. É a consequência direta de um ambiente digital onde a busca incessante por engajamento muitas vezes atropela a ética, a segurança e, neste caso, a própria vida.

O episódio reacende, com força e urgência inadiáveis, o debate sobre a necessidade de limites e regulamentação para as redes sociais, mas nos coloca diante de uma encruzilhada crucial: como proteger sem censurar?

É inegável que qualquer menção à regulamentação das redes sociais dispara imediatamente alarmes sobre a liberdade de expressão. E aqui, minha posição é clara e radicalmente contrária a qualquer forma de censura. A livre manifestação do pensamento é um pilar inegociável de qualquer sociedade democrática.

Contudo, é preciso afirmar com a mesma veemência: liberdade de expressão não pode, jamais, ser confundida com um salvo-conduto para a irresponsabilidade, para a disseminação de conteúdos nocivos ou para a indução de práticas que colocam vidas em risco, especialmente as de crianças e adolescentes, cuja capacidade de discernimento ainda está em formação.

Marco civil da internet

O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) estabeleceu um modelo de responsabilidade para intermediários que busca, justamente, equilibrar a liberdade na rede com a proteção de direitos. Ele prevê a responsabilização das plataformas por conteúdos de terceiros apenas após ordem judicial específica.

Embora fundamental para evitar a censura prévia e proteger o fluxo de informações, esse modelo se mostra dolorosamente insuficiente diante da velocidade e do alcance de desafios virais letais como o do desodorante. Esperar uma ordem judicial enquanto um vídeo perigoso se espalha exponencialmente é, na prática, assistir à tragédia em câmera lenta.

A reação política ao caso de Brasília, com senadores cobrando explicações das plataformas e propondo a criminalização específica desses desafios, é um passo necessário, mas ainda tímido diante da magnitude do problema. Discursos e notas de repúdio não bastam. Precisamos ir além.

O caminho, a meu ver, não reside em controlar o que pode ou não ser dito, mas em estabelecer mecanismos claros e eficazes de responsabilização para quem produz, impulsiona e lucra com conteúdos manifestamente perigosos. Isso significa responsabilizar diretamente os criadores que idealizam e promovem desafios que atentam contra a integridade física e psicológica. Significa cobrar das plataformas digitais uma postura muito mais proativa e transparente na moderação desses conteúdos.

Seus algoritmos, desenhados para maximizar o tempo de tela e o engajamento, acabam por criar câmaras de eco que amplificam o perigo, transformando “brincadeiras” mortais em tendências globais em questão de horas. As plataformas não são meros quadros de aviso; elas são arquitetas ativas do ambiente digital e devem ter deveres de cuidado compatíveis com seu poder e influência.

Projetos como o PL 4144/24, que tramita na Câmara e propõe responsabilizar provedores por conteúdos falsos e desinformação, apontam na direção correta ao exigir sistemas de verificação e rotulagem. A discussão precisa avançar para incluir também a responsabilidade sobre conteúdos que, embora não necessariamente “falsos”, incitam comportamentos de alto risco. As boas práticas de moderação, que envolvem clareza nas regras, consistência na aplicação e direito à revisão, precisam ser a norma, não a exceção.

A morte desta criança em Brasília é uma ferida aberta na nossa sociedade conectada. Ela nos obriga a confrontar a complacência com que temos tratado os perigos do universo digital. A solução não virá de extremos – nem da censura que amordaça, nem da liberdade absoluta que abandona os vulneráveis à própria sorte. Ela reside no equilíbrio difícil, mas imprescindível, entre garantir a livre expressão e exigir responsabilidade de todos os atores envolvidos.

É hora de transformar a indignação em ação concreta, focada na proteção da vida e na responsabilização de quem transforma cliques em tragédias. Afinal, quantas vidas mais precisarão ser perdidas para que finalmente entendamos que a omissão também mata?

*Marcelo Senise é idealizador do Instituto Brasileiro para a Regulamentação da Inteligência Artificial, sócio fundador da Social Play e CEO da CONECT I.A. Sociólogo e marqueteiro, é especialista em comportamento humano, informação e contrainformação, análise em sistemas emergentes e IA.

Com Assessorias e Agências

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