As constantes ondas de calor causadas pelas mudanças climáticas, associadas à urbanização e à grande circulação de pessoas em determinadas áreas, estão influenciando na expansão da dengue para o interior do país. Isso é o que revela o estudo Mudanças climáticas, anomalias térmicas e a recente progressão da dengue no Brasil, publicado no portal Scientific Reports da Nature.
O estudo é liderado pelo pesquisador Christovam Barcellos, do Observatório de Clima e Saúde, do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz). No artigo, Barcellos ressalta que a dengue vem se espalhando para as regiões Sul e Centro-Oeste, onde a doença não era tão comum.
Segundo ele, isso está ocorrendo por conta do aumento na ocorrência de eventos climáticos extremos, como ondas de calor, secas e inundações. Além disso, outro fator decisivo é a degradação ambiental, especialmente no Cerrado, que abrange o oeste dos estados de Santa Catarina, Paraná e São Paulo, os estados de Goiás, Rio Grande do Sul e grande parte de Minas Gerais. Essa região vem sofrendo com o desmatamento, queimadas e conversão de florestas em pasto.
O estudo constatou a coincidência dos mapas de ondas de calor que desde 2023 incidiam sobre o Cerrado entrando pelo interior, e de anomalias de temperatura, em comparação às áreas de maior incidência da dengue em 2023 e este ano. O pesquisador observou que havia uma incidência muito grande de ondas de calor na região central do país, superiores a três dias na região do Cerrado.
Anomalias de calor passam de 5 para 30 dias
Segundo ele, essas não eram áreas de alta incidência da doença. “É se fosse uma frequência de anomalias de temperatura, e é nessas áreas que está explodindo a dengue neste verão. Mas isso já vem acontecendo como tendência desde 2020”, disse. No interior do Paraná, Goiás, Distrito Federal e Mato Grosso do Sul, o aumento de temperaturas está se tornando quase permanente.
“”Antes eram cinco dias de anomalia de calor, agora são 20, 30 dias de calor acima da média ao longo do verão. Isso dispara o processo de transmissão de dengue, tanto por causa do mosquito quanto pela circulação de pessoas”, explica Barcellos.
Geralmente, as grandes cidades litorâneas e quentes, de Santos (SP) até Fortaleza (CE), registravam grandes surtos de dengue nos anos de 1990 a 2000.
“Agora, a gente tem surto de dengue, por exemplo, no Distrito Federal, onde a altitude é de cerca de 1.000 metros. Pela literatura tradicional, não era para ter casos, porque são regiões mais altas onde, à noite, geralmente, faz frio e o verão durava pouco, em geral de dezembro a março, e daí começava a diminuir a temperatura e ter uma seca muito forte. Esses padrões estão sendo alterados”, destaca.
Desmatamento, ‘ilhas de calor’ e falta de saneamento
Além do aumento da ocorrência de eventos climáticos extremos, como secas e inundações, a região pesquisada vem sofrendo degradação ambiental, especialmente no Cerrado, com o desmatamento muito acelerado, queimadas e conversão de florestas em pasto.
“É uma área que está sofrendo muitos processos de transformação, com geração de pastos, desmatamento, algumas queimadas, maior seca. Há aumento da frequência de dias quentes, anomalias climáticas”, explica.
Ele também destacou a falta de saneamento básico nessas áreas, dificultando a eliminação dos focos do vetor da dengue. “Dentro do Cerrado brasileiro, há cidades que já têm ilhas de calor, áreas de subúrbio ou periferias com péssimas condições de saneamento, tornando mais difícil combater o mosquito”, ressalta o pesquisador.
Epidemia de dengue pode durar muito tempo
Segundo o pesquisador, o problema não começou este ano. A curva de dengue vem aumentando desde setembro do ano passado, o que não era comum. Na maior parte das regiões brasileiras, o pico da dengue começa a diminuir a partir de abril. Alguns lugares, principalmente no interior, podem ter pico ainda em maio ou junho. “Isso é muito perigoso, porque as incidências são muito grandes e a epidemia de dengue pode durar por muito tempo”.
Barcellos disse que anos passados se houvesse dengue nesses lugares, era para durar muito pouco. “Era para começar em janeiro e acabar em março. Mas, como o verão está durando muito, com mais chuva e temperatura maior, a temporada de dengue aumenta”.
‘Combate tem que ser mais eficaz e rápido’
Barcellos ressaltou que o estudo serve como alerta para determinadas regiões, porque começou antes e pode durar mais em algumas dessas áreas. “A capacidade de previsão a gente tem”. Segundo ele, é preciso que haja uma articulação do governo federal, utilizando tecnologia que possa ser passada às prefeituras via governos estaduais, para o combate efetivo ao mosquito transmissor da dengue.
“Existem drones hoje em dia para visitar áreas onde o mosquito consegue entrar, e sistemas de informação mais rápidos e eficazes”, comenta. Na sua opinião, seria interessante que os agentes de saúde tivessem em mãos todos os dados de pessoas que já tiveram dengue, com endereços, porque ali tem um foco do mosquito. “Isso ajudaria a organizar o trabalho dos agentes de saúde que, hoje, não têm instrumentos para o trabalho em campo”, defendeu.
Como a dengue é uma doença urbana, rara no meio rural, ele disse que as prefeituras poderiam usar o estudo para detecção de surtos e localização de focos. “O combate tem que ser mais eficaz e rápido”, disse o pesquisador da Fiocruz.
Estudo avaliou dengue em 21 anos
O estudo utilizou técnicas de mineração de dados para avaliar a associação entre anomalias térmicas, fatores demográficos e mudanças nos padrões de incidência de dengue ao longo de um período de 21 anos (2000-2020) nas microrregiões do Brasil.
“Esses mapas eram muito parecidos. A gente colocou os históricos de dengue de 2000 até 2020 em uma máquina, ou mineração de dados, e viu a coincidência de períodos desses indicadores de temperatura. Chamaram a atenção dois fatores importantes, a altitude e essas anomalias de temperatura”, explicou.
O artigo também é assinado pelos pesquisadores Vanderlei Matos, do Observatório de Clima e Saúde do Icict/Fiocruz; e Rachel Lowe e Raquel Martins Lana, do Centro de Supercomputação de Barcelona, com o qual o Observatório mantém cooperação técnica por meio do projeto Harmonize.
Com informações da Fiocruz e Agência Brasil