Papai estudou até a quinta série primária, mas era ótimo de matemática. Sabia fazer conta de cabeça. Até hoje não descobri como ele fazia a tal prova dos 9 com tanta desenvoltura. Honestíssimo, não atrasava uma conta.  Zezinho Macedo, como era conhecido na minha terra, trocou o emprego de operário numa fábrica de leite em pó pelo balcão de um velho armazém. Queria ficar mais perto dos filhos. E sem que eu soubesse, me dava lições de amor todos os dias.

Seu Zezinho era um homem simples, íntegro e trabalhador. Vivia para o trabalho e a família. Dono de birosca que evoluiu pra um mercadinho, nunca foi de frequentar bar nem restaurante. Pudera. Acordava às 5h de domingo a domingo. Trabalhava duro no balcão até as oito da noite (só aos domingos fechava meio-dia) para criar os quatro filhos, com ajuda da minha mãe, outra lutadora. Gostava de uma cervejinha, mas só bebia em casa, evento de família ou na quermesse da paróquia que frequentávamos.

Papai era meio rude, mas era bom e dono de um coração de ouro. Nutria um amor incondicional pelos filhos, mesmo sem quase nunca demonstrar. Primeiro, éramos três irmãos, tudo escadinha. Diferença só de um ano entre um e outro. Dias antes de eu completar 11 anos, veio a caçula. Não me lembro dele pegar os filhos no colo, dar carinho, beijar, abraçar nem conversar muito. Com minha irmã temporona, já numa época em que mamãe vivia internada ou acamada em casa (essa história vou contar em outro post), era diferente. Adorava preparar a mamadeira pra ela e levar na cama. E fez isso até ela ficar grandinha…

Papai nos transmitia amor e proteção ao seu jeito. Se não era tão afetuoso como outros pais, também nunca ‘encostou o dedo’ em nenhum de nós. Disciplinava com o olhar reprovador e a palavra às vezes dura, mas sempre firme e correta. Às vezes ele brincava, de um jeito meio sério que só a gente entendia. Me lembro até hoje que ele me levava de bicicleta de carga pra escola, sempre apressado. Às vezes sentia vergonha. Mas era uma diversão.

Programa de domingo? Almoçar na casa da vovó e ir à igreja católica com a mamãe, eu e meus três irmãos. Era um sujeito meio grosso, é verdade. Neto de português e italiana, não tinha papas na língua e não trocava de roupa pra dar o fora em quem o enchesse a paciência. Sim, era muito impaciente com os fregueses às vezes.

Apesar da casca grossa, virava uma manteiga derretida quando ouvia um hino qualquer na igreja. Era a sua catarse semanal. Chorava que nem criança em todas as missas (e eu puxei essa mania dele). Era amoroso com os filhos e os amigos ao seu jeito. E não media esforços para defendê-los.

Previdente, comprou uma casinha velha, depois um terreninho do lado, e mais outro e outro… Dono de uma visão empreendedora ao seu modo, tornou-se um pequeno comerciante e construtor. Era muita luta. Ao lado da minha mãe, na periferia de uma cidade simples do interior, onde o trem passava na porta de casa e cavalos e charretes circulavam nas ruas, ergueu um pequeno e modesto patrimônio, com muito sacrifício e honestidade.

Sempre preocupado com o futuro dos quatro filhos, esqueceu de si mesmo para trabalhar, cuidar da família e fazer obra – o que lhe dava um grande prazer. A cada um de nós ofereceu o seu melhor. Nunca nos desamparou. E o melhor era comida farta, roupa digna, boa educação (numa época em que ensino bom era na escola pública) e um teto pra chamar de nosso. Nada de luxo.

Cresci vendo meu pai e minha mãe trabalharem todos os dias até ela adoecer, aos 37 anos (como já disse, essa história eu conto em outro post). Meus pais quase não saíam de casa porque acordavam cedo demais, estavam sempre cansados e, o principal: tinham que economizar dinheiro pra criar e educar os filhos. Mas eles adoravam receber parentes para um almoço em família. Festeiro como eu, gostava de marcar um churrasco com cervejinha gelada no terraço (Dia dos Pais, certamente, seria dia).

A alegria do meu pai era trabalhar na beira do balcão (ficava estressado, muitas vezes, mas amava) e ver os filhos todos juntos na mesa de almoço. Muito longe dos tempos das selfies frenéticas que inundam as redes sociais, tenho poucas fotos com ele, principalmente quando era criança. Naqueles tempos analógicos era difícil uma família de “classe média baixa” contratar um ‘retratista’. As máquinas fotográficas caseiras não eram tão baratas e a qualidade era muito ruim.

A foto ao lado foi num dos dias mais felizes da vida dele. E da minha também. Era setembro de 1991. Papai e mamãe faziam 25 anos de casados, bodas de prata. E eu comemorava aniversário. Chamamos a família, amigos, vizinhos e colegas de faculdade para um ‘churrasco na laje’. Ele riu, dançou, falou besteira… e bebeu sua cervejinha preferida. Não se cabia de tanta felicidade.

Menos de um ano depois, ele viveria a pior dor que um pai pode sentir. Em 15 de agosto de 1992, um domingo seguinte ao Dia dos Pais, um dos meus irmãos se foi aos 24 anos, numa curva perigosa da vida, a bordo de uma moto, no mesmo dia em que comemoraria os três meses do seu filho e primeiro neto do meu pai – e o único que ele conheceu.

Perder um filho foi demais para o papai. Ele enlutou, entristeceu, quis morrer. Não compreendia porque a ordem natural da vida fora invertida. E foi ali que, de fato, ele começou a morrer. Tornou-se diabético. Diziam que era emocional. Passou a beber sozinho atrás do balcão, algumas doses a mais. Sofria era calado de depressão.

Mesmo assim, nunca parou de trabalhar todos os dias. Passou a planejar se aposentar aos 50, comprar uma casa na outra cidade onde eu vivia à época, a 250 km da nossa terrinha, para aproveitar mais a vida perto de mim. Falava em dividir com os filhos o pequeno patrimônio para poder descansar. Dizia que não queria mais trabalhar tanto na vida. E foi então que, moído pela dor oculta de perder um filho, chegou a vez do meu pai herói.

No dia 7 de dezembro de 1994 (coincidentemente este é o dia em que minha filha nasceu, 11 anos depois), papai era levado para uma mesa de cirurgia para retirar o que deveria ser uma simples pedra no rim.  Vítima de erro médico (veja aqui), não resistiu a uma infecção hospitalar que se generalizou e lhe tomou a corrente sanguínea. A septicemia o abateu exatamente 100 dias e seis outras cirurgias depois da primeira. Se foi muito cedo, aos 51, lutando pela vida que um médico irresponsável lhe roubou. Passei anos da minha vida sonhando com ele num leito de hospital.

Quinze anos depois, aos 65 anos, mamãe foi se encontrar com ele em outro plano, após um sofrimento que parecia não ter fim. Foram sete anos convivendo com as crueis cicatrizes no cérebro, no corpo e na alma, deixadas por um AVC isquêmico que lhe tirou a fala e os movimentos. Ela também foi uma grande guerreira, batalhadora e empreendedora. Exemplo de simplicidade e bondade.

Como disse antes, mamãe merece um post à parte. Mas vou abrir aqui um parênteses… Com apenas a segunda série primária, nascida e criada na roça, como meu pai, ela costurava e tomava conta do balcão, enquanto uma moça cuidava da gente. Eu e meus dois irmãos mais velhos éramos bem pequenos, mas aquelas cenas não saem da minha cabeça.

Nos fins de semana, ela fazia questão de cozinhar para toda a família. Cozinheira de mão cheia, fazia deliciosos pratos, típicos da cozinha mineira, que influencia a culinária da minha cidade. Frango frito, maionese (com maçã) e arroz branco era o prato favorito do papai aos domingos. E comíamos assistindo Silvio Santos numa TV preto e branco. Como eu era feliz e não sabia…

Nesse Dia dos Pais, as fotos e textos fofos que tomam conta das redes sociais me fazem lembrar do Seu Zezinho. Desde março de 1995 meus dias dos pais nunca mais foram os mesmos… Naquele ano, dia 18 de março, ele se despedia dessa vida, apenas dois meses antes de completar 52 anos. Incompreensível para mim que estou a caminho dos 50.

A sua maior herança – e essa ninguém vai me roubar – é seu exemplo de retidão, caráter e integridade. Foi um empreendedor, um exemplo de superação. Com sua simplicidade e rudeza – sim, era um homem rude, na estreita perspectiva de um homem simples do interior – me passou lições que poucos pais ainda hoje ensinam aos seus filhos.

Com ele aprendi que Trabalho, Honestidade, Justiça, Generosidade, Ética e Solidariedade são valores que nascem com a gente, mas que podem ser ensinados e devem sempre ser cultivados. 

Se saí de casa aos 17 anos pra morar numa cidade a 100km de distância e cursar a faculdade de Jornalismo com que sonhava e não a de Letras da minha cidade que minha mãe queria; se encarei o preconceito da ‘sociedade’ do bairro humilde onde vivia (diziam à boca miúda que o diploma da filha do ‘Seu Zezinho’ ia ser uma barriga), foi por causa dele.  

Papai me fez acreditar nos meus sonhos, a ter fé, a apostar que é possível mudar. Até mesmo de cidade. Ele apostou em mim. Ele acreditou no meu sonho. Ele me permitiu voar. E me ensinou que é preciso coragem, força e determinação para seguir em frente, mesmo cambaleando em meio às curvas da vida. Sei que, conquistada a independência que meu pai me ajudou a construir, aos 20 anos, já tinha muito orgulho de mim e da mulher e profissional que me tornei.

Infelizmente ele se foi bem antes de me ver mãe. Se estivesse entre nós, papai estaria com 76 anos. Clarinha, minha filha de 13 anos, também tem saudade. Esta semana chorou de novo, de saudade do avô que só conheceu pelas poucas fotos e pelas minhas histórias. Sim, o meu pai morreu, mas vive dia após dia na minha história. Guardo bem mais que apenas a lembrança de ter convivido com um homem simples, íntegro e bom. Seus ensinamentos não foram em vão.

Papai, onde quer que esteja, sei que agora está em paz. Mas a saudade é eterna. Sigo te amando para sempre. E agradeço por me fazer a pessoa que eu sou, com muitos defeitos, é certo (e quem disse que tem que ser perfeito?), mas com algumas virtudes também. Minha gratidão eterna pelo que foi e representa na minha vida. Afinal, pode passar um ano, cinco anos, 24 anos, mas a gente nunca esquece. Pai é pra sempre!  E pra sempre vou te amar.

Obs: Essa foto foi uma das mais felizes recordações da minha vida. Porque sempre “é melhor ser alegre que ser triste, a alegria é a melhor coisa que existe, é assim como a luz no coração…”

 

 

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