O que se vê agora é que alguns querem ser donos da definição de quem é uma mulher”.
Alvo de campanha pela sua exclusão das Olimpíadas de 2024, Imane Khelif comemorou a marca de um milhão de seguidores no Instagram e utilizou a rede social para publicar um agradecimento pelo apoio que vem recebendo do mundo inteiro.
Obrigada a cada um de vocês pelo apoio incrível! Esta jornada não seria a mesma sem todos vocês. Juntos, estamos fazendo história, com um soco de cada vez. Fiquem ligados para mais momentos emocionantes!”, publicou.
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Entenda a polêmica
‘Decisão arbitrária’, diz o COI
Na quinta-feira (1 de agosto), o COI – que não mede os níveis de testosterona dos atletas que participam dos Jogos Olimpicos – esclareceu que as regras de elegibilidade para Paris 2024 foram baseadas nas de Tóquio em 2021 e não podem ser alteradas durante uma competição.
No comunicado, o COI informou que as atletas sofreram ataques enganosos em redes sociais e classificando os testes aplicados pela IBA como pouco claros e arbitrários. Antes disso, ambas sempre estiveram nos parâmetros estabelecidos pelo COI e pela Unidade de Boxe de Paris 2024 (PBU).
Os ataques contra essas duas atletas se baseiam inteiramente nessa decisão arbitrária, que foi tomada sem nenhum procedimento adequado – especialmente considerando que essas atletas participam de competições de alto nível há muitos anos”, disse o COI.
Pugilista da Argélia sofre de hiperandrogenismo
A delegação da Argélia informou nas redes sociais que Imane tem hiperandrogenismo e, após ser desclassificada do Mundial de Boxe em 2023, “está em tratamento e as coisas voltaram ao normal desde que foi autorizada pelo COI a participar dos Jogos Olímpicos de 2024”.
De acordo com a Associação Americana de Endocrinologistas Clínicos, hiperandrogenismo é um termo usado para descrever alguns sinais clínicos presentes em mulheres. As manifestações geralmente são detectadas de acordo com cada especialidade médica.
Um dermatologista, por exemplo, pode perceber acne, excesso de pelos e alopecia, enquanto um ginecologista pode detectar disfunções menstruais, como amenorreia ou ausência de menstruação, e disfunções ovarianas, como cistos e infertilidade.
Na maioria dos casos, segundo a entidade, os sintomas não são percebidos até que a paciente chegue ao final da adolescência ou mesmo após os 20 anos. “A principal tarefa do médico ao tratar uma paciente com sintomas associados ao hiperandrogenismo – por exemplo, acne, hirsutismo, desordens reprodutivas e doenças metabólicas – deve ser determinar a presença de altos níveis de andrógenos e sua fonte”.
Quando detectar alto nível de testosterona
O sexo é definido pelos cromossomos, que determina como são os órgãos genitais, os órgãos reprodutivos internos e os hormônios. Mas ao menos um a cada 10.000 bebês nascidos, segundo dados divulgados pela ONU, pode apresentar uma divergência entre esses fatores.
É possível, por exemplo, que os órgãos sexuais externos sejam femininos, mas os internos, masculinos, ou vice-versa. Ou que os níveis de hormônios masculino (testosterona) e femininos (progesterona e estrogênio) estejam em desacordo com o sexo da pessoa.
Popularmente conhecida como um hormônio masculino, a testosterona também pode ser encontrada em mulheres, mas em doses muito mais baixas. Produzido principalmente nos testículos, o hormônio também é encontrado, em quantidades menores, nos ovários e nas glândulas adrenais de pessoas de ambos os sexos.
Homens apresentam níveis de testosterona significativamente mais elevados quando comparados às mulheres. Durante a puberdade masculina, os níveis aumentam consideravelmente e se mantêm relativamente estáveis até a idade adulta. Já nas mulheres, os níveis do hormônio variam durante o ciclo menstrual e tendem a cair com a chegada da menopausa.
Dentre outros fatores, a testosterona é responsável por estimular a reconstrução do tecido muscular, bastante requisitado em treinamentos de força, como a musculação. Consequentemente, também estimula a força e a hipertrofia, ou seja, o ganho de massa muscular. O hormônio influencia ainda características sexuais secundárias masculinas, como o crescimento de pelos faciais e corporais e a voz mais grave.
Intersexo x transgênero: entenda a diferença
Em 2023, após a desclassificação de Imane do Mundial, o presidente da Federação Russa de Boxe chegou a afirmar que a atleta da Argélia seria intersexo, mas Khelif nunca deu nenhuma declaração confirmando isso.
A intersexualidade é diferente do transgênero. Neste caso, a pessoa não se reconhece no sexo que nasceu. Este não é o caso de Imane e é por isso que, segundo o Comitê Olímpico, ela pode competir na categoria feminina.
Diferente do intersexo, as pessoas transgênero não se identificam com o gênero de nascimento. Não há uma questão física, como ter os dois cromossomos, por exemplo. Essas condições não interferem em questões de gênero. Cada pessoa, independentemente da condição genética, terá a própria identidade de gênero
Segundo o urologista Ubirajara Barroso Júnior, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), pessoas intersexo são diferentes de transexuais, mas podem haver pessoas intersexo e também se identificarem como transexuais. “Como a pessoa se identifica é uma questão particular de cada um”, ressalta o especialista.
O interesse de busca por intersexualidade ultrapassou o interesse por transexualidade nos últimos 90 dias. No dia 21 de junho houve um pico de buscas sobre o termo, motivado pelo personagem intersexo da telenovela “Renascer”, da Rede Globo. Os dados são do Google Trends.
O que significa uma pessoa ser intersexo?
O termo intersexo é abrangente e usado para descrever uma ampla gama de variações corporais nas características sexuais inatas. Assim, segundo a Abrai e o Escritório do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), as pessoas intersexo são aquelas que têm características sexuais que, desde o nascimento, não se enquadram nas normas médicas e sociais para corpos femininos ou masculinos.
Essas características podem estar relacionadas a cromossomos, órgãos genitais, hormônios, entre outros. Em algumas pessoas, as características intersexo são perceptíveis logo no nascimento; em outras, podem surgir na puberdade ou ficarem aparentes apenas em fases mais tardias da vida.
Uma pesquisa da Organização das Nações Unidas (ONU) estimou que entre 0,05% e 1,7% da população mundial nasce com características intersexo — o que pode significar até 3,5 milhões de pessoas apenas no Brasil.
Essas pessoas podem ter alterações hormonais, genitais ambíguos e outras diferenças anatômicas, ou ainda nascer com códigos genéticos diferentes do padrão. Um exemplo: o corpo pode ser fisicamente feminino, mas o seu código genético ser XY (X é o cromossomo feminino e Y é o masculino), o que pode afetar o desenvolvimento e a produção de hormônios.
Qual a diferença entre hermafrodita e intersexo?
O termo “hermafrodita” já foi, durante muito tempo, utilizado de forma genérica para denominar pessoas intersexo. Esse termo, no entanto, deixou de ser usado por ser considerado limitante e de cunho pejorativo, reforçando estereótipos negativos.
Segundo nota informativa da Organização das Nações Unidas (ONU) Direitos Humanos, o termo hermafrodita assume um “significado estreito e limitado dentro do campo da ciência e, portanto, pode promover ideias incorretas e homogeneizadas sobre a aparência e as capacidades de corpos intersexo.
A nota reforça, no entanto, que algumas pessoas usam e reivindicam o termo para si — o que torna “primordial” que se respeite a escolha das pessoas em relação à terminologia que elegem para se referirem a si mesmas.
Segundo a Abrai, hermafrodita é uma pessoa que tem uma condição congênita (desde o nascimento) onde há presença de testículo e ovário, com presença ou não de genitália ambígua — quando os órgãos sexuais não são bem formados ou não são claramente masculinos ou femininos.
Já intersexo é o termo generalista que engloba todas as condições biológicas que não se enquadram nas definições médicas de “macho e fêmea” — o que significa que “hermafrodita” é apenas uma das definições englobadas pelo termo.
Outros exemplos de intersexualidade são:
- insensibilidade androgênica;
- regressão testicular;
- hiperplasia adrenal congênita;
- Síndrome de Klinefelter;
- Síndrome de Turner;
- Síndrome de Rokitansky, entre outras.
Atletas intersexo: relembre outros casos
Não é a primeira vez que esses questionamentos sobre mulheres que não se encaixam perfeitamente no sexo feminino geram polêmica numa olimpíada. Relembre outros casos de atletas que enfrentaram
Edinanci Silva – judoca brasileira
Atleta mulher intersexo, Edinanci Silva, hoje com 45 anos, foi a quatro Olimpíadas pelo Brasil (Atlanta-1996, Sidney-2000, Atenas-2004 e Pequim-2008) e foi alvo de preconceito. Ela precisou se submeter a um teste feito Comitê Olímpico Internacional (COI), em 1995, que atestaria sua elegibilidade para participar da Olimpíada de Atlanta, no ano seguinte. Antes da viagem para os Estados Unidos, ela não passou no chamado “teste de feminilidade”. E depois de descobrir ter nascido intersexo, foi preciso passar por duas cirurgias antes de embarcar para Atlanta.
Na época, atletas que disputariam em categorias femininas eram postas nuas e submetidas a exames ginecológicos, uma espécie de “teste de feminilidade”. O exame foi abolido poucos anos depois pelo COI. Nos Jogos de Sydney, em 2000, já não era obrigatório.
Ednanci possuía testículos externos e chegou a retirá-los por um procedimento cirúrgico, que também visava eliminar a quantidade anormal de hormônios masculinos. Ela conta que fez a cirurgia por questões de saúde, já que o médico informou que, futuramente, isso poderia acarretar em um câncer.
A judoca entrou para o hall da Fama do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) neste ano, mas em entrevistas, a atleta ressalta que chegou a pensar em suicídio pelos ataques sofridos e atribuiu à mídia parte da culpa pelos ataques que sofreu na rua.
Em Guarulhos, quando as pessoas me reconheciam, diziam: ‘Isso aí é um homem’ usavam palavras chulas para me atacar.”, disse, em depoimento ao UOL.
Annet Negesa – corredora ungandense
Enquanto Edinanci fez a cirurgia de retirada dos testículos por questões de saúde, a corredora ungandense Annet Negesa foi submetida a uma cirurgia contra a própria vontade. A atleta – que representou a Uganda no Mundial de Atletismo em 2011 e foi ouro na 10ª Jogos Pan-Africanos no mesmo ano – nasceu com genitais masculinos internos e teve que fazer uma cirurgia chamada gonadectomia.
Acordei com cortes na barriga e, na verdade, fiquei me perguntando: ‘O que aconteceu comigo? O que fizeram comigo?’”, disse em entrevista à CNN Internacional
Annet alega que a indicação cirúrgica foi feita por profissionais do World Athletics, órgão mundial do atletismo. A entidade nega. Ela ainda afirmou que tinha entendido que a cirurgia não era para retirar órgãos internos, mas para ajudar a controlar os níveis de testosterona. Ela relata ter dores de cabeça e abdominais constantes após o procedimento. A cirurgia, que ainda é envolta por muitas polêmicas, fez com que ela saísse da vida esportiva.
Caster Semaya – corredora sul-africana
Desde a sua primeira vitória internacional, quando ganhou o ouro Campeonato Mundial de 2009, em Berlim, a corredora sul-africana Caster Semaya vem sendo alvo de polêmicas e foi submetida a um teste de gênero para atestar a vitória. A vitória foi mantida, mas o assunto gerou polêmica e as pessoas continuaram a questionar o resultado.
Depois disso, ela também ganhou ouro nas Olimpíadas de 2012 e de 2016 e bronze no Campeonato Mundial de 2017. No entanto, em 2019, a World Athletics estabeleceu novas regras que impediam pessoas intersexo de competir.
Desde então, a atleta vem enfrentando batalhas na Justiça contra as regras estabelecidas pela entidade. Após passar por diversas instâncias, o caso chegou em novembro de 2023 à Grande Câmera do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, onde está analisado atualmente.
Caster nasceu com uma vagina e testículos internos, mas não tem útero e ovário, e também não menstrua.
Dutee Chand – atleta indiana
Primeira na Índia a ganhar uma medalha de ouro na corrida de 100 metros em uma competição global, a indiana Dutee Chand também teve sua trajetória incomodada por testes de gênero. Tudo começou em junho de 2014, quando a atleta ganhou duas medalhas de ouro no Campeonato Asiático de Atletismo Júnior em revezamentos de 200 metros e 4 × 400 m.
Mas ela foi retirada das competições seguintes por alegações de hiperandrogenismo – quando os hormônios sexuais masculinos estão mais elevados, o que pode causar o aumento de pêlos corporais ou faciais e menstruação pouco frequente ou ausente, características de intersexualidade.
Com isso, ela ficou inelegível para participar como atleta feminina, até ganhar uma ação judicial em 2015 movida no Tribunal Arbitral do Esporte. Desde 2016, ela também atua como treinadora de outros atletas indianos.
Com informações do G1 e SBT