Em meio à elevação de casos de Covid-19 após as festas de fim de ano e do risco de um novo colapso no sistema de saúde, os cientistas e médicos brasileiros ainda têm que travar uma batalha contra a epidemia do negacionismo, protagonizada pelo presidente da República. A vacinação em crianças de 5 a 11 anos – autorizada pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e finalmente aprovada pelo Ministério da Saúde – tem sido alvo constante de ataques de Jair Bolsonaro (PL).
O ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito das fake news no Supremo Tribunal Federal (STF), vai analisar um pedido protocolado pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) nesta sexta-feira (7/1), para que o presidente seja proibido de espalhar fake news sobre a vacinação infantil. Em caso de descumprimento da medida, a multa pode chegar a R$ 200 mil por dia.
O pedido de Randolfe foi apresentado no âmbito do inquérito aberto pelo STF em 2019 para apurar disseminação de fake news e ameaças a autoridades. Bolsonaro é investigado desde agosto neste mesmo inquérito, por decisão de Alexandre de Moraes. Sobre o novo pedido, o ministro pode decidir imediatamente, de forma individual, ou submeter o tema diretamente ao plenário do Supremo.
“O episódio relatado repete reprovável conduta adotada pelo Presidente da República durante toda a pandemia: usar as prerrogativas que seu cargo lhe confere para divulgar informações falsas e, assim, sabotar a vacinação da população contra a Covid-19, bem como as demais práticas preventivas recomendadas pela ciência”, diz o senador.
No pedido protocolado no STF, Randolfe – que atuou fortemente na CPI da Covid – menciona declarações dadas por Bolsonaro ao longo desta semana com críticas à Anvisa e à aprovação da vacina para crianças de 5 a 11 anos.
“Além de confundir e desinformar a população sobre assunto da mais alta relevância para a saúde e a vida de todos os brasileiros ─ sejam crianças, adultos ou idosos ─, a sanha contra as vacinas por parte do titular do Poder Executivo a nível federal repercute nas ações adotadas pelo Ministério da Saúde”, prossegue o documento.
Diante de novos ataques – proferidos pelo presidente logo após sua alta hospitalar para tratar uma emergência causada supostamente pelo consumo excessivo de camarão durante suas férias no Sul do país – a Sociedade Brasileira de Imunizações (Sbim) emitiu uma nota de repúdio (leia na íntegra aqui).
“Ao deturpar informações apresentadas por renomados cientistas na audiência pública, menosprezar as sérias complicações da doença na população infantil — ignorando centenas de óbitos — e criar artifícios para adiar o início da vacinação, o presidente cria um desnecessário clima de medo, que pode motivar inúmeros pais ou responsáveis a não levarem suas crianças às salas de vacinação. Em outras palavras, o discurso pode causar hospitalizações, mortes e sofrimento evitáveis”.
A Sociedade Brasileira de Pediatria também rebateu as declarações em nota de repúdio que não cita o nome de Bolsonaro: “A população não deve temer a vacina, mas, sim, a doença que ela busca prevenir”. Defendeu que a “vacina previne a morte, a dor, sofrimento, emergências e internação em todas as faixas etárias”. A nota diz ainda que negar esse benefício e desestimular a adesão dos pais à imunização dos seus filhos é “um ato lamentável e irresponsável, que, infelizmente, pode custar vidas”.
AMB vai à Justiça contra vazamento de dados de médicos
A Associação Médica Brasileira (AMB) divulgou, nesta sexta-feira (7/1), uma nota de repúdio contra o vazamento de dados pessoais de médicos que defenderam a vacinação infantil na audiência pública convocada no último dia 4 pelo Ministério da Saúde. A entidade também informou que “vai tomar todas as medidas cabíveis para responsabilizar os detratores dos médicos, inclusive do ponto de vista legal”.
“A ação criminosa, por agentes públicos, teve como alvos alguns dos mais respeitáveis especialistas do país: Isabella Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações, Marco Aurélio Sáfadi, da Sociedade Brasileira de Pediatria e Renato Kfouri, diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações”, diz a nota. Sáfadi e Kfouri são também consultores do Comitê Extraordinário de Monitoramento Covid-19 da AMB, o CEM Covid.
Esta semana, a deputada federal Bia Kicis (PSL-DF), aliada de Bolsonaro, admitiu ter repassado dados cos médicos, como CPF, e-mail e telefones, em um grupo WhatsApp, que posteriormente circularam na internet. As informações vazadas fazem parte de declarações assinadas pelos profissionais antes da audiência. Após o vazamento dos dados, os especialistas foram alvo de ameaças de grupos negacionistas.
“Lamentável e condenável, a iniciativa configura ataque à liberdade de pensamento e de expressão, tentativa de intimidação, além de método de incitar ameaças por parte das forças negacionistas a médicos comprometidos exclusivamente com a ciência e a boa assistência aos brasileiros”, defendeu a AMB.
A entidade lembrou ainda que “em todo o episódio envolvendo a imunização para crianças de 5 a 11 anos, estas mesmas forças negacionistas e antivacinas fazem coro contra a ciência, retardando a vacinação a esse público específico. Viram as costas à saúde dos brasileiros, como, aliás, o fazem desde o início da pandemia”.
Como legítima representante dos médicos do Brasil, a AMB afirma que “não se calará em momento qualquer diante de ataques à boa Medicina, à assistência digna aos cidadãos, aos médicos que exercem sua autonomia pautados em sólidas evidências científicas”.
“Qual é o interesse daquelas pessoas ‘taradas por vacina’?”
Na quinta-feira (6), um dia depois de o Ministério da Saúde divulgar o cronograma para aplicação da vacina da Pfizer em crianças, Bolsonaro voltou a criticar a imunização infantil em entrevista à TV Nova Nordeste, de Pernambuco. Além de dizer que não vai vacinar a filha de 11 anos, acusou os técnicos da Anvisa de terem algum interesse na liberação da vacina.
“A Anvisa lamentavelmente aprovou a vacina para crianças entre 5 e 11 anos. A minha filha de 11 anos não será vacinada. E você vai vacinar seu filho contra algo que o jovem por si só uma vez pegando o vírus a possibilidade de ele morrer é quase zero? O que é que está por trás disso? Qual é o interesse da Anvisa por trás disso aí? Qual é o interesse daquelas pessoas ‘taradas por vacina’? É pela sua vida? É pela sua saúde? Se fosse estariam preocupados com outras doenças do Brasil, que não estão”, acrescentou o presidente.
Na noite desta quinta-feira (6), na live que faz semanalmente, o presidente voltou a atacar a Anvisa. “Eu pergunto, você tem conhecimento de uma criança de 5 a 11 anos que tenha morrido de Covid? Eu não tenho”, questionou, ignorando dados do próprio Ministério da Saúde de que 311 crianças de cinco a 11 anos morreram vítimas da Covid-19 desde o início da pandemia.
O presidente falou ainda sobre possíveis efeitos colaterais da vacina, e sugeriu que a população procure conselhos, mas não necessariamente de médicos. “Converse com os seus vizinhos. Quantos garotos contraíram Covid e não aconteceu absolutamente nada com ele?”, sugeriu Bolsonaro.
Queda de braço com presidente da Anvisa
A queda de braço entre o presidente e a Anvisa ganhou força em dezembro, quando a agência aprovou o uso do imunizante da Pfizer para a faixa etária. Bolsonaro ameaçou divulgar os nomes dos técnicos que liberaram a vacina.
Diante da onda de intimidação, o diretor-presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, um oficial da reserva da Marinha que foi indicado pelo próprio Bolsonaro – tem se queixado que o Planalto tem excluído a agência das decisões sobre a pandemia.
Em resposta aos novos ataques de Bolsonaro, insinuando que a Anvisa teria interesses por trás da decisão sobre a vacinação infantil, Barra Torres divulgou uma longa carta neste sábado (8), em que rebate as declarações, cobra retratação do presidente e ainda o desafia a provar as supostas irregularidades na agência reguladora, sob pena de praticar crime de responsabilidade por prevaricação.
“Se o senhor dispõe de informações que levantem o menor indício de corrupção sobre este brasileiro, não perca tempo nem prevarique, Senhor Presidente. Determine imediata investigação policial sobre a minha pessoa aliás, sobre qualquer um que trabalhe hoje na Anvisa, que com orgulho eu tenho o privilégio de integrar”, disse Barra Torres.
Confira a íntegra da nota
Nota – Gabinete do Diretor Presidente da Anvisa, Sr. Antonio Barra Torres
Em relação ao recente questionamento do Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, quanto à vacinação de crianças de 05 a 11 anos, no qual pergunta “Qual o interesse da Anvisa por trás disso aí?”, o Diretor Presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, responde:
Senhor Presidente, como Oficial General da Marinha do Brasil, servi ao meu país por 32 anos. Pautei minha vida pessoal em austeridade e honra. Honra à minha família que, com dificuldades de todo o tipo, permitiram que eu tivesse acesso à melhor educação possível, para o único filho de uma auxiliar de enfermagem e um ferroviário.
Como médico, Senhor Presidente, procurei manter a razão à frente do sentimento. Mas sofri a cada perda, lamentei cada fracasso, e fiz questão de ser eu mesmo, o portador das piores notícias, quando a morte tomou de mim um paciente.
Como cristão, Senhor Presidente, busquei cumprir os mandamentos, mesmo tendo eu abraçado a carreira das armas. Nunca levantei falso testemunho.
Vou morrer sem conhecer riqueza Senhor Presidente. Mas vou morrer digno. Nunca me apropriei do que não fosse meu e nem pretendo fazer isso, à frente da Anvisa. Prezo muito os valores morais que meus pais praticaram e que pelo exemplo deles eu pude somar ao meu caráter.
Se o senhor dispõe de informações que levantem o menor indício de corrupção sobre este brasileiro, não perca tempo nem prevarique, Senhor Presidente. Determine imediata investigação policial sobre a minha pessoa aliás, sobre qualquer um que trabalhe hoje na Anvisa, que com orgulho eu tenho o privilégio de integrar.
Agora, se o Senhor não possui tais informações ou indícios, exerça a grandeza que o seu cargo demanda e, pelo Deus que o senhor tanto cita, se retrate.
Estamos combatendo o mesmo inimigo e ainda há muita guerra pela frente.
Rever uma fala ou um ato errado não diminuirá o senhor em nada. Muito pelo contrário.
Antonio Barra Torres
Diretor Presidente – Anvisa
Contra-Almirante RM1 Médico
Marinha do Brasil
Com AMB, Sbim e agências (atualizado em 8/1/22, às 20h)