Em todo o país, são mais de 705 mil mortes de brasileiros por Covid–19 durante a pandemia e quase 38 milhões de pessoas que foram infectadas pelo Sars-CoV-2, o que representa uma letalidade de 1,9% no país. Em todo o mundo, são registrados quase 7 milhões de mortes pela doença. Com 3% da população mundial, o Brasil é responsável por 10% dos óbitos por Covid–19. Números que são alarmantes, causa, principalmente, da alta taxa de pessoas infectadas pelo vírus no pais, com suas diferentes variantes surgidas durante a pandemia.
Para o médico sanitarista, Gonzalo Vecina, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP, ex-presidente da Anvisa, ex-secretário municipal de saúde de São Paulo e ex-CEO do Hospital Sírio Libanês, a mortalidade pela doença se mantém e não podemos agir como se a pandemia tivesse acabado. “É importante não esquecer que a Covid continua matando. Está matando mais os idosos, os mais frágeis, mas ainda está matando pessoas que poderiam estar vivas, aqui conosco”, afirma Vecina.
A fala de Gonzalo Vecina ocorreu durante o painel Impactos da pandemia no Sistema de Saúde do Encontro promovido em São Paulo no último dia 11 de setembro pelo HubCovid, uma iniciativa criada em 2020 pelo Instituto de Pesquisa e Apoio ao Desenvolvimento Social (Ipads) e Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), com apoio da Fundação Johnson & Johnson.
Suspensão das aulas por dois anos foi um equívoco, diz especialista
Segundo Vecina, foram muitos os erros cometidos, principalmente nos dois primeiros anos de pandemia. “Uma parte deles, toda a humanidade cometeu. Agora, outra parte, nós conseguimos cometer sozinhos aqui no Brasil”, disse ele. Um dos principais, segundo ele, foi cometido na área de educação.
“Fico muito indignado quando lembro como nós tratamos a questão da educação. Ter suspendido aulas durante dois anos levou a um prejuízo para uma parte da população que nós só vamos enxergar daqui a 10 ou 15 anos, que é a falta de aprender a conviver um com os outros. Privamos as crianças disso”, lamentou.
O médico sanitarista conta que ao participar de lives com professores, eles estavam indignados com a forma com que o Estado brasileiro tratava a educação e isso, segundo ele, isso acabou contaminando a discussão. Outra questão, afirma, é que eles tinham naturalmente medo de morrer.
“Agora, na maior parte dos países civilizados do mundo, a interrupção do ensino foi mais inteligente: tem casos, para. Não tem casos, continua. E, paralelamente, levantando as barreiras possíveis para diminuir a probabilidade da ocorrência de casos”, comentou Vecina.
O erro de pensar que era uma doença de contato
Um segundo erro apontado por Gonzalo Vecina foi o fato de ter prevalecido, inicialmente, a primeira interpretação que apareceu pela frente, de que se tratava de uma doença de contato.
“Quanto tempo nós demoramos para descobrir que essa doença é uma doença respiratória e não uma doença de contato? Contato é importante? O contato tem sua importância, mas não era tão importante quanto nós evidenciamos no início dessa crise. Nós tratamos inicialmente essa crise como sendo uma crise de contato, por pura ignorância”, recorda Vecina.
Tese da ‘imunidade de rebanho’ atrapalhou
Um dos maiores erros, continua Gonzalo Vecina, foi o governo anterior acreditar na existência da imunidade de rebanho. Ele criticou a aposta do governo brasileiro a partir do exemplo da Suécia. “Imagina um país como o Brasil usar a Suécia como exemplo para alguma coisa”, analisou.
“A imunidade de rebanho é uma realidade científica? Sim, é. Exceto se nós tivermos uma renovação da carga microbiana. E nós tínhamos uma renovação da carga microbiana com o aparecimento de novas gerações do vírus. Então, o vírus original foi substituído pelo vírus com as variantes que nós tivemos no mundo inteiro. Alfa e beta não estiveram aqui no Brasil; a gama foi produzida aqui no Brasil, depois houve a delta, que veio da Índia; a ômicron, que veio da África do Sul junto de sua filharada toda, que é muito grande. E outras, mais recentes, estão vindo”, contou.
Gonzalo Vecina questiona o discurso adotado na pandemia, em especial durante a iminência do fim da primeira onda, que ao alcançar a imunidade de rebanho a doença cessaria e a economia se salvaria.
“O que aconteceu não foi isso. Nós tivemos uma das maiores mortalidades do mundo. A primeira onda matou 200 mil pessoas e a segunda onda matou 400 mil pessoas. E, a partir daí, a delta e a ômicron se encarregaram das outras cento e poucas mil pessoas que morreram no país. Em grande medida, esse número elevado da mortalidade se deveu ao fato de nós não termos feito lockdown, de termos demorado para conseguir fazer rastreamento e, ao fazer o rastreamento, fazer isolamento. Deixamos também de fazer diagnóstico precoce e de monitorar as novas variantes que estavam surgindo. Além disso, quase não tivemos vacinas por conta da incapacidade do governo federal”, comenta.
Vulnerabilidade x critério de risco
O último erro da condução da pandemia, apontado por Gonzalo Vecina, foi confundir vulnerabilidade e critério de risco. O médico sanitarista explica que o Brasil utilizou o critério de risco, enquanto, em sua avaliação, o critério mais importante para um país com tantas desigualdades quanto o Brasil é o de vulnerabilidade.
“Quem é que mais pode morrer? É o velho ou é o pobre? É o pobre. Quem mais essa crise matou? O pobre. Então, o critério epidemiológico mais adequado para tomar decisões não era risco, mas sim vulnerabilidade. Nós temos que repensar, numa sociedade tão desigual, a importância do critério da vulnerabilidade para tomar decisões de saúde pública, como quem vacinar primeiro, velho ou o cara que trabalha no transporte coletivo? Ou o preto que tem que, todo dia, que ir para a rua porque não tem dinheiro em casa e tem que buscar comida, porque, senão, as pessoas morrem de fome. Então, esse critério da vulnerabilidade é um critério importante na saúde pública que nós deixamos de lado”, lamenta Vecina.
Desigualdades sociais e impacto global da pandemia na saúde mental
A pandemia de Sars-CoV-2 exacerbou fatores de risco para a saúde mental que já estavam presentes antes da chegada do vírus. Havia inequidades sociais e econômicas como desemprego e pobreza; desigualdade de gênero; violência; racismo e discriminação; insegurança alimentar, emergências humanitárias e mudanças climáticas. Na saúde, vivenciou-se o luto, isolamento e, principalmente, no caso dos profissionais de saúde, a sobrecarga de trabalho, que afetou diretamente a saúde mental.
Em sua apresentação, a psicóloga e sanitarista Catarina Dahl trouxe evidências de que 75% a 90% das pessoas, sobretudo em países de baixo-médio poder econômico, não têm acesso ao tratamento de saúde mental. Uma em cada cinco pessoas em contextos de conflitos armados vive com alguma condição de saúde mental. A economia global perde mais de US$ 1 trilhão por ano devido à depressão e ansiedade, com o gasto médio em saúde mental correspondendo a 2% a 3% do gasto total da saúde em países de médio-baixo poder econômico, sendo que a maior parte dos gastos (60%) destina-se a hospitais psiquiátricos.
“Esse cenário, que já era ruim, se agravou na pandemia. Sofremos com a diminuição do PIB, acompanhado do aumento da pobreza, violência interpessoal e da insegurança alimentar, além de termos vivenciado a disrupção de serviços”, lamentou Catarina Dahl, doutora em Saúde Mental (IPUB/UFRJ) e consultora de diversos organismos multilaterais, como o Banco Mundial, Fundo de População das Nações Unidas e Organização Mundial da Saúde (OMS).
Segundo a especialista, 45% dos países do mundo relataram disrupções nos serviços para tratamento de condições de saúde mental, neurológicas e usos de substâncias. Segundo a OMS, houve cerca de 25% de aumento na prevalência de depressão e ansiedade no primeiro ano de pandemia, em lugares altamente afetados pela Covid–19; mulheres foram mais afetadas que homens, jovens de 19 a 24 foram mais afetados que pessoas mais velhas.
Já os dados sobre a mortalidade por suicídio são variados e não indicam claramente uma mudança nas taxas desde o início da pandemia. Ainda segundo a OMS, dados de países de baixo e médio poder econômico são frágeis ou inexistentes. “O que mostra que o cenário real é ainda mais preocupante”, reforçou Catarina Dahl.
A psicóloga e sanitarista ressalta a necessidade de se aplicar uma abordagem de toda a sociedade (a whole-of-society-approach) para promover, proteger e cuidar da saúde mental ao longo da vida; integrar a saúde mental em todas as políticas; entender a Saúde Mental e Apoio Psicossocial como parte integral da cobertura universal à saúde e um componente fundamental para o desenvolvimento, recuperação social e econômica de indivíduos, sociedades e países após emergências e a construção da paz, assim como ser ofertada uma abordagem sensível ao gênero e de combate ao racismo e discriminação.
Desafios em um país grande e heterogêneo
Em sua fala, o médico psiquiatra Rodrigo Martins Leite, professor e coordenador do Programa de Psiquiatria Social e Cultural (PROSOL) – IPq HCFMUS e ex-coordenador de saúde mental do município de São Paulo, destacou o fato de o Brasil ser um país heterogêneo, com muita disparidade regional. “Em meio a uma grande complexidade, o SUS precisa dar conta de diferentes necessidades, que exigem vários níveis de governança de linhas de cuidado em saúde mental”, afirmou.
Ainda segundo o especialista, a linha de cuidado, que envolve a promoção, prevenção, tratamento e reabilitação, deve oferecer acolhimento, escuta qualificada e construção de vínculo.
“Faz-se necessário um projeto terapêutico que faça sentido para aquele indivíduo, que seja singular, de acordo com a vivência, as perspectivas e o contexto social daquela pessoa e que leva em conta, inclusive, as dimensões e características do município em que ele vive”, explicou Leite.
Segundo o médico psiquiatra Marcelo Kimati Dias, , doutor em ciências sociais, professor do departamento de saúde coletiva da UFPR e assessor de relações institucionais do departamento de Saúde mental do Ministério da Saúde, todos os ideais que estão contidos dentro da saúde mental no Brasil são produto do Sistema Único de Saúde.
“A gente ter a política de saúde mental com o protagonismo e a liderança do SUS é garantia de que vai ser uma política que vai promover equidade, dar acesso universal ou que, ao menos, ela vai lutar nesse sentido de promover um cuidado integral”, enalteceu.
Especialistas discutem impacto da pandemia na população
O encontro do Hub Covid reuniu especialistas e gestores de saúde pública para analisar o impacto da pandemia na população brasileira e propor ações efetivas para o Brasil pós-pandêmico, mantendo a atenção para transformações epidemiológicas, contágio, sequelas da Covid longa e controle de contágio e óbitos.
De acordo com o médico epidemiologista André Ribas de Freitas, consultor científico do HubCovid e doutor em Epidemiologia e professor de Epidemiologia e Bioestatística na Faculdade de Medicina São Leopoldo Mandic, onde coordena um curso de pós-graduação em Saúde Coletiva, foi uma perda de janela de oportunidade não ter sido feito o isolamento dos contatos.
“Tínhamos recursos no país. Havia ociosidade de algumas áreas nas unidades de saúde, como os agentes comunitários, enfermeiros, técnicos de enfermagem e dentistas, que poderiam ter sido mobilizados para uma ação coordenada de rastreamento de contato, isolando justamente aquelas pessoas que estavam transmitindo o vírus”, afirmou.
Na avaliação de Alessandro Chagas, especialista em Saúde Pública e assessor técnico do Conasems, por mais desastroso que tenha sido o enfrentamento da pandemia no Brasil, o modelo tripartite foi essencial para o SUS ter sido positivamente decisivo. “Se não fosse o modelo tripartite de financiamento e gestão, a convicção é que teria sido bem pior”, afirma.
O médico Adriano Massuda, doutor em saúde coletiva, professor da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (EAESP-FGV) e pesquisador do Centro de Estudos em Planejamento e Gestão de Saúde (FGV-Saúde), reforçou que a pandemia expôs lacunas na atenção primária, a qual é crucial para a coordenação e continuidade dos cuidados.
Para ele, é importante se rever o modelo de remuneração que paga principalmente os provedores individuais, o que dificulta a prestação do SUS. “Além disso, há necessidade de maior investimento em prevenção e detecção precoce”.
O painel também contou com as participações de Thiago Lavras Trapé, doutor em Saúde Coletiva, docente na área de Sistemas de Saúde e Gestão na Faculdade São Leopoldo Mandic e presidente e coordenador de projetos de impacto social pelo Instituto de Pesquisa e Apoio ao Desenvolvimento Social (Ipads), e de Everton Pereira da Silva, geógrafo, educador comunitário e coordenador do Eixo de Direito à Saúde do Redes da Maré.
A mediação foi da enfermeira Regiane Soccol, líder de Estratégia de Impacto Global da J&J, especialista em Saúde Pública e Negócios da Columbia Business School e em Finanças Sociais na Universidade de Oxford. O evento, na íntegra, está disponível em vídeo no canal do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) no YouTube.
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Fonte: Hub Covid