Muito tem se falado do autismo em mulheres e suas complexidades. Então, vamos hj tentar desmitificar esse fato? O diagnóstico tardio do Transtorno do Espectro Autista, ou TEA, em mulheres é uma realidade alarmante que afeta milhares de vidas.
Figuras públicas como a atriz brasileira Letícia Sabatella; Alexis Wineman, ex-participante do Miss América, e a ativista climática Greta Thunberg ilustram a diversidade de experiências e realizações de mulheres autistas, desafiando estereótipos e inspirando outras.
A atriz Letícia Sabatella, de 53 anos de idade, descobriu apenas há dois anos a condição que possui. Incluída no TEA nível 1 de suporte, considerado o mais leve de todos, a artista afirmou em entrevista que está num momento de despertar para o seu diagnóstico tardio e que lida bem com isso. No entanto, são muitos os adultos que descobrem somente nesta fase a condição.
Após o diagnóstico de TEA nos filhos, é comum que os pais recebam a orientação de realizar testes neuropsicológicos para uma compreensão mais aprofundada. Foi dessa forma que a enfermeira Érika Pavoleti descobriu, aos 41 anos, também fazer parte do espectro. Motivada pelo diagnóstico de seu filho ainda na infância, Érika realizou uma série de testes ao perceber que características observadas em seu filho refletiam aspectos de sua própria vivência.
Outro caso emblemático que ilustra uma realidade comum é o de M.A.L., paciente de 50 anos, divorciada e mãe. M.A.L. descobriu estar no espectro durante o climatério, quando as dificuldades sensoriais e a desregulação do humor se intensificaram. Ela passou por décadas de diagnósticos equivocados, depressão grave e três relacionamentos mal-sucedidos. Após o diagnóstico correto e tratamento adequado, a melhora foi significativa.
Segundo Matheus Trilico, neurologista especializado em Transtorno do Espectro Autista (TEA) e Transtorno do Défict de Atenção e Hiperatividade (TDAH) em adultos, essa situação é um desafio complexo e urgente.
Na minha prática clínica, observo mulheres chegando ao consultório após décadas de busca por respostas. O diagnóstico tardio significa décadas de sofrimento inexplicado e tratamentos ineficazes”, enfatiza. “Essas mulheres frequentemente relatam um senso de não pertencimento, sentindo-se ‘estranhas’. O diagnóstico correto traz uma sensação de ‘libertação’ e autoconhecimento de valor inestimável.”
Percepção do mundo e alívio com o diagnóstico
O diagnóstico tardio de TEA trouxe para Érika um misto de alívio e compreensão. A enfermeira sempre sentiu que havia algo diferente em sua forma de se relacionar com as pessoas. A rigidez em suas interações, a dificuldade de manter contato visual e a interpretação literal das palavras, características comuns em pessoas no espectro autista, muitas vezes a levaram a ser incompreendida.
O TEA não se inicia na fase adulta ou na adolescência. Para realizar o teste neuropsicológico e diagnosticar o transtorno, é preciso revisitar a infância. Atualmente, não tenho amigos da escola ou da faculdade. Perdi muitas amizades por causa da interpretação equivocada do que eu digo, sendo chamada de grosseira ou mal-educada”, explica.
Como enfermeira de formação, Érika relata que sua necessidade de seguir normas e protocolos à risca trouxe desconfortos no ambiente de trabalho. “Quando via algo fora do padrão, não conseguia ignorar”, diz ela. Em uma situação específica, enquanto ocupava o cargo de Enfermeira Chefe, Érika assumiu o plantão de uma técnica de enfermagem, que utilizava esmalte vermelho nas unhas e se recusou a usar luvas, necessário para realizar a medição da pressão arterial.
Mas a atitude da enfermeira chefe foi interpretada de forma negativa pela coordenação do hospital, o que evidenciou, para ela, a falta de compreensão e aceitação das características do espectro autista. “A rigidez na rotina, no sentido de que tudo precisa ser feito de uma determinada forma, é muito presente. É muito difícil quebrar um protocolo ou alterar um método. Se, por exemplo, começar a fazer algo da direita para a esquerda, vou seguir sempre esse padrão. Sempre começar a ler da direita para a esquerda ou de cima para baixo. Quando a rotina não é cumprida, isso traz transtornos”, declara Érika.
Dificuldade na comunicação não verbal
Entre as pessoas no espectro autista, é comum encontrarem desafios na comunicação e na interpretação, tanto verbal quanto não verbal. “Muitas apresentam dificuldade para interpretar linguagem não-verbal, como expressões faciais, ou para compreender metáforas e mensagens com duplo sentido. Além disso, podem ter dificuldade para reconhecer ou identificar emoções e, em alguns casos, sentir desconforto ao receber afeto. Essas características variam em intensidade de acordo com os níveis, mas são traços típicos do autismo”, explica o psiquiatra André Pires.
No caso de Érika, sua dificuldade reside na comunicação não verbal: a dificuldade não está em dizer, e sim na forma como diz, o que acaba gerando interpretações equivocadas e a distanciando dos espaços onde poderia contribuir. “Na minha época de escola, se falava muito sobre dois conceitos: o QI, que era o coeficiente de inteligência, e o QE, o coeficiente emocional. No meu caso, os dois eram inversamente proporcionais. Eu tinha um QI alto, minhas notas eram excelentes, mas meu coeficiente emocional era péssimo”, pontua Érika.
Atualmente, Érika ainda enfrenta estigmas em suas interações sociais ao se comunicar. Como participante ativa de uma associação de mães de crianças com TEA, ela se deparou com uma situação conflitante: percebeu que as pessoas demonstram mais empatia e compreensão ao lidar com crianças autistas do que com adultos que possuem o mesmo diagnóstico.
Recentemente, sua participação em grupos de discussão foi restringida devido às reclamações por sua forma de se comunicar. Para ela, essa situação é o retrato de como a sociedade tem dificuldade em aceitar e compreender adultos no espectro autista.
Apesar do domínio sobre o assunto TEA, adquirido em duas pós-graduações em educação inclusiva e em treinamento motor para autistas, além de seu hiperfoco no tema, Érika lamenta não poder contribuir com seu saber em certas ocasiões. Sua maneira de se comunicar, devido ao transtorno, muitas vezes não é compreendida e sobressai com o que ela poderia contribuir.
Traços de personalidade do autismo: fenótipo feminino e camuflagem
O autismo em mulheres pode se apresentar de forma mais sutil. “Muitas desenvolvem estratégias sofisticadas de camuflagem, mascarando suas dificuldades sociais”, observa Dr. Trilico. Essa habilidade de “mascaramento” muitas vezes leva a diagnósticos errôneos ou tardios, além de um desgaste emocional.
O acesso ao diagnóstico de TEA é desigual no Brasil. “Embora não existam estudos específicos, sabemos que o acesso à medicina e ao diagnóstico de TEA é mais difícil no norte e nordeste do país”, afirma o neurologista Dr. Trilico. Além disso, comorbidades como depressão e ansiedade, mais comuns em mulheres autistas, frequentemente obscurecem o diagnóstico do TEA.
Segundo ele, é essencial trazer à tona conversas sobre saúde mental e neurodiversidade, garantindo que mais mulheres possam se reconhecer, buscar ajuda e viver com mais autonomia e compreensão. Só assim poderemos garantir que mais mulheres recebam o apoio e as intervenções adequadas, transformando vidas e reduzindo décadas de sofrimento desnecessário.
É crucial aumentar a conscientização sobre as diferenças na apresentação do autismo em mulheres. Precisamos urgentemente adaptar nossas abordagens diagnósticas para capturar toda a gama de expressões do autismo, independentemente do gênero”, afirma.
Com Assessorias