*Por Ana Café, psicóloga clínica

A baleia é a mãe primordial, a fêmea, a caverna. Traz em seu simbolismo a escuridão abissal e misteriosa do mar: o inconsciente. No mito do herói, a baleia é a Grande-Mãe devoradora em cujo ventre o deus-herói se transforma. E falando em baleia, não podemos deixar de traçar um paralelo com o jogo Baleia Azul que, ultimamente, vem mobilizando nossa sociedade, os pais, as mídias e principalmente nossos jovens. O que estão querendo dizer com o não dito?

O suicídio na adolescência foi o  tema que escolhi como  trabalho de conclusão do curso de psicologia há 24 anos e lembro, perfeitamente, a dificuldade que era encontrar bibliografia que abordasse o tema. Não por que o tema não precisasse ser abordado, mas porque ainda temos um tabu em falar sobre morte e principalmente de suicídio.

Se o suicídio entre adultos já está envolto por silêncios e tabus, é ainda mais silencioso entre crianças e adolescentes. A sociedade, em geral, não aceita a ideia de que eles possam querer se matar. Pais de adolescentes que se mataram tendem à negação, uma reação ao sentimento de culpa. Além disso, é escasso o conhecimento sobre qual lógica rege os suicídios juvenis e sobre como preveni-los – os estudos e a experiência existentes dizem respeito basicamente a pessoas adultas.

Entrentanto, agora o jogo da Baleia Azul convida todos a um debate urgente perante o tema e ao enfrentamento de uma verdade alarmante: crianças e adolescentes também sentem dores emocionais, padecem de depressão, sofrem com o abandono e não se satisfazem com ganhos materiais, colégios excepcionais e viagens anuais à Disney.

Durante muito tempo considerada um peixe, a baleia é um mamífero que pelo       seu tamanho e forma foi considerada uma deusa do mar. Enquanto divindade, a baleia é um símbolo de renascimento associada ao fato de ser também um suporte do mundo. Em muitas tradições, existe um mito iniciático de passagem pelo ventre da baleia como uma espécie de renovação espiritual ou metafísica. Vide a passagem bíblica de Jonas, na qual este é engolido pela baleia e passa três dias dentro do ventre dela e depois renasce como se passasse da morte para um renascimento.

Precisamos parar, pensar e identificar por que a juventude, fase mais exuberante da vida, encontra-se tão vulnerável ao suicídio. O que justificaria uma ausência de satisfação, um desânimo e desinteresse tão grandes que fazem com que a vida e o viver percam o sentido?

A adolescência é a fase da vida na qual passamos pelas maiores mudanças físicas, emocionais e comportamentais. A outra é a terceira idade na qual os índices de suicídio também são bastante elevados.

Todas as mudanças levam a profundos questionamentos, a dor da perda dos que foram para os que se tornarão, a perda do status de criança que pode e deve ser cuidada para uma exigência de maturidade e responsabilidade. Cobranças em torno de uma definição sexual, profissional e a consequente entrada no universo do álcool e das drogas como uma busca de resposta ao desprazer.

Somamos a isso as mudanças na estrutura da família moderna na qual as crianças e os jovens muitas vezes são órfãos de pais e acabam sendo educados pela escola, pelas babás ou pelo mundo digital. Os laços de afeto e de confiança vão sendo estabelecidos por agentes externos e assim jogos, como a Baleia Azul ou processos de bullying vão tomando um vulto muito maior do que tomariam, caso esses jovens se sentissem amparados, monitorados e ouvidos por essas figuras de amor, suporte e proteção que deveriam ser os pais.

Todos esses são fatores de risco e precipitantes de pensamentos e comportamentos suicidas. Porém, o jovem com suas características impulsivas, atemporais e fantasiosas não encaram a morte “como o morrer” e o suicídio também não vem como estratégia para morte. Quase sempre é visto como uma forma de renascer, de exterminar a dor e iniciar uma nova vida. Parece com o processo iniciático do ventre da baleia? A morte do herói? A ilusão de uma vida livre das dores da alma, das dores do crescimento e da dor da solidão mesmo que no meio da multidão?

Acredito que estejamos sendo convidados pela própria tragédia social a rever nossa conduta como pais, professores e diretores de instituições de ensino.

Dados do CIT -Centro de Informações Toxicológicas – foram dissecados em uma dissertação de mestrado defendida na UFRGS em maio. De autoria da psiquiatra da infância e da adolescência, Berenice Rheinheimer, o trabalho trouxe dados alarmantes, indicando uma tendência de forte aumento nas tentativas de suicídio no universo dos oito aos 17 anos (abaixo dessa idade, os casos são automaticamente classificados como acidente). Em 2005, foram 492 episódios. Em 2013, apesar de a população da faixa etária ter recuado consideravelmente, os casos subiram para 626. O que mais assusta é que esses dados estão baseados em denúncias voluntárias, e sabemos,  que a maioria dos casos não é denunciada por culpa, vergonha ou medo.

Precisamos de estratégias específicas de prevenção junto a essa população jovem, a metodologia de prevenção para criança e adolescente tem de ser outra.  Como observa o psiquiatra Ricardo Nogueira, coordenador do Centro de Promoção da Vida e Prevenção ao Suicídio: “Para começar, é mais difícil de detectar o risco, porque eles não verbalizam tanto quanto a pessoa mais velha”.

Ninguém deseja morrer. O suicidio é muito mais um pedido de ajuda do  que o desejo real de morte. Até quando teremos que assistir nossos jovens abandonando a vida porque não foram vistos, não foram ouvidos. Cada vez internamos jovens e mais jovens. Cada vez mais jovens se cortam, se calam e se matam.

* Ana Café  é psicóloga clínica, graduada pela Universidade Estácio de Sá e se formou pela Universidade de Havana para atuar na reinserção social do paciente portador de transtornos mentais e emocionais. Além disso, possui especialização no tratamento e prevenção dos transtornos do impulso e na prevenção do uso de drogas pela Faculdade Federal de Santa Catarina. É presidente da Associação de Familiares Lilian Catão que presta apoio ás famílias de dependentes químicos desde 2015. Ela é membro da Associação de Terapia Cognitiva e recebeu capacitação pela Secretaria Especial de Prevenção às Drogas do Rio de Janeiro para atuar como Agente Multiplicador.

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