O Teste do Pezinho tradicional, oferecido gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) na maioria dos estados brasileiros, conta com um rastreamento considerado básico, com a detecção de sete doenças potencialmente nocivas à saúde das crianças: fenilcetonúria, hipotireoidismo congênito, fibrose cística, doença falciforme, hiperplasia adrenal congênita, deficiência de biotinidase e toxoplasmose congênita.
Em 2021, a Lei nº 14.154 estendeu para 52 o número de enfermidades identificadas e propôs um escalonamento em cinco fases para a ampliação das doenças. A Atrofia Muscular Espinhal (AME), por exemplo, será incorporada no exame do SUS apenas na quinta e última fase de expansão do Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN).
No entanto, Minas Gerais saiu na frente e se tornou o primeiro estado do país com grande população a realizar a testagem em massa para a Atrofia Muscular Espinhal pelo SUS. No Brasil, apenas o Distrito Federal possui a doença em seu painel de triagem neonatal.
Em Minas, o programa foi ampliado no fim de janeiro, e todas as amostras de recém-nascidos estão sendo testadas para 15 doenças, incluindo a AME. O estado já confirmou sete casos da doença e, apenas quatro meses.
Duas filhas diagnosticadas com AME
Filhas da mineira Heliandra Gomes Queiroz da Silva, de 31 anos, as irmãs Sophia, de 4 anos, e Esther, de 5 meses, foram diagnosticadas precocemente, antes do aparecimento dos sintomas da AME. Heliandra procurou ajuda médica nos primeiros dias de vida das crianças, para rastrear e identificar a enfermidade grave e rara. Ela já havia perdido um filho para a Atrofia Muscular Espinhal.
Heliandra foi além. Como as enfermidades são comumente assintomáticas no período neonatal, ela inscreveu Sophia em um estudo de uma marca de laboratório e conseguiu que a menina iniciasse o tratamento com 29 dias. Afinal, cada dia que passava contava muito para determinar o futuro da criança. Hoje, Sophia vive normalmente. Ela começou a andar com 10 meses. E sua irmã Esther também teve a oportunidade de iniciar o tratamento de imediato, com 15 dias.
Elas foram tratadas em tempo oportuno. Além disso, seguem com os cuidados necessários e acompanhamento profissional. Não basta rastrear, a triagem tem que ser elaborada como um programa de diagnóstico e tratamento precoces, com acompanhamento clínico, precisa ter sustentabilidade”, afirma a neurologista infantil Juliana Gurgel Giannetti, presidente da Sociedade Brasileira de Neurologia Infantil (SBNI) e professora do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
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Hoje, segundo o Ministério da Saúde, uma pessoa para cada 1.500 é acometida por doença rara. Sendo assim, o Brasil tem cerca de 13 milhões de pessoas com enfermidades raras. As doenças raras costumam ser crônicas e progressivas. Porém, o rastreamento precoce, por meio da triagem neonatal, somado ao diagnóstico e ao tratamento imediato, pode alterar a história natural da enfermidade.
Lutar contra a demora na implementação nacional da triagem ampliada, que pode identificar até 52 doenças em vez de sete, se tornou a causa de mais de 25 associações de pacientes, sociedades médicas e autoridades públicas do Brasil. É por isso que elas se uniram para enviar um manifesto da Triagem Neonatal Ampliada para a Ministra da Saúde, Nísia Trindade.
O documento reforça que, mesmo após três anos da publicação da lei 14.154/21, que estabeleceu a ampliação do Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN) do Sistema Único de Saúde (SUS), apenas o Distrito Federal tem a testagem completa e os estados de São Paulo, Mato Grosso, Goiás, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Paraíba, Minas Gerais e Paraná iniciaram as fases de implementação da versão ampliada.
O Universo Coletivo AME, a maior coalizão no Brasil pela causa da Atrofia Muscular Espinhal (AME), está entre as centenas de entidades que dialogam com o governo pedindo uma avaliação das reais necessidade e obstáculos à efetivação das fases 2, 3, 4 e 5 da Lei nº 14.154/21.
Considerando a complexidade de incorporação das “novas” doenças na Triagem Neonatal, o Ministério da Saúde propôs um escalonamento em cinco fases de implementação. No entanto, segue sem estabelecer um cronograma de implementação das fases. Existe a necessidade de um processo de escuta ativa para que possamos acompanhar e contribuir com o processo de implementação da lei de expansão da Triagem. Uma lentidão injustificável, que pode comprometer muitas vidas”, enfatiza Aline Giuliani, membro do Universo Coletivo AME.
No dia 6 de junho é comemorado o Dia Nacional do Teste do Pezinho, data em que foi criado em 2001 o Programa Nacional de Triagem Neonatal (PTN). que tornou obrigatório por lei no Brasil o popular Teste do Pezinho. O objetivo é conscientizar o público e os profissionais de saúde sobre a importância do exame que detecta doenças graves e raras em recém-nascidos.
Deveria ser uma data comemorada como uma das maiores conquistas do setor de saúde pública brasileiro, mas ainda há uma longa jornada a ser percorrida, já que os bebês não estão plenamente cobertos. A Triagem Neonatal ampliada não pode ficar para o futuro”, lamenta Aline.
AME causa dificuldades de andar, engolir e até respirar
A Atrofia Muscular Espinharl (AME) é uma doença genética neuromuscular rara, marcada pela degeneração de neurônios motores. Tem como característica principal a degeneração dos neurônios motores que, por sua vez, afetam progressivamente os movimentos da pessoa. Em casos mais graves, a respiração e deglutição também são afetadas.
Ela é considerada a segunda doença neuromuscular mais frequente da infância, a neurologista infantil Juliana Gurgel Giannetti. A maioria dos casos é do tipo 1, o mais grave, apresentando sintomas nos primeiros seis meses de vida.
A doença neuromuscular é caracterizada pela perda progressiva dos neurônios motores na medula espinhal, comprometendo movimentos fundamentais como andar, engolir e, em casos severos, que são bastante comuns, respirar. Ela pode levar à morte, principalmente nos casos em que o início dos sintomas é precoce, devido ao comprometimento respiratório e da deglutição.
Temos uma proteína que é muito importante para a sobrevivência do neurônio que está na medula. Se essa proteína não é produzida, por algum defeito genético, ocorre a perda desse neurônio e, como consequência, ocorre uma fraqueza muscular progressiva, que acomete os músculos dos braços, pernas, da respiração e da deglutição, por isso, é uma doença muito grave. Muitas vezes, os pacientes da AME Tipo 1 apresentam esses sintomas de forma intensa e precisam ser entubados, sem que o diagnóstico tenha sido feito”, aponta.
Segundo a neurologista infantil, o diagnóstico pelo Teste do Pezinho é primordial. “O melhor tratamento para a AME é aquele iniciado mais rápido. Essa é a diferença crucial da ampliação da triagem neonatal, porque essas crianças passariam pela consulta com o pediatra ou neurologista infantil e não seria identificado nenhum sinal da doença. Então, quando retornasse ao médico, já poderiam apresentar fraqueza, dificuldade para mamar ou respirar”, explica.
A especialista alerta que o diagnóstico precoce de doenças raras é crucial, pois amplia as opções de tratamentos ou terapias possíveis, com o propósito de amenizar os sintomas e proporcionar uma vida típica e de mais qualidade aos pacientes e às famílias.
Consideramos que essas crianças diagnosticadas no tempo certo, vai fazer toda a diferença na vida delas e das famílias. Vamos acompanhar o desenvolvimento neuropsicomotor e acreditamos que os marcos naturais serão alcançados nas idades certas e elas terão o desenvolvimento de uma criança típica, e o melhor, sem sequelas”, ressalta a médica.
Ministério evitar falar em número total de doenças a ser diagnosticadas
Em nota divulgada pelo Dia Nacional do Teste do Pezinho, o Ministério da Saúde informou que a cobertura nacional ultrapassou os 82% em 2023 e que “trabalha para reestruturar o Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN) em todo o Brasil”.
O objetivo é aperfeiçoar o teste do pezinho – como é socialmente conhecido – com a inserção de novas tecnologias para rastreamento de doenças, como por exemplo a tecnologia de espectrometria de massas, assim como novos medicamentos e fórmulas alimentares para crianças diagnosticadas com alguma das doenças do escopo do programa.
No entanto, a pasta evita falar no número de doenças que deverão ser diagnosticadas a partir do Teste do Pezinho Ampliado e também nos prazos para o cumprimento da lei federal de 2021. “Para o teste ampliado, não há número de doenças a serem estabelecidas”, diz o Ministério da Saúde.
A pasta diz que a reestruturação do PNTN foi pactuada na 2º Reunião Ordinária da Comissão Intergestores Tripartite (CIT), em 29 de fevereiro de 2024. “O objetivo é aperfeiçoar o teste e ampliar a rede de medicamentos e fórmulas alimentares para crianças diagnosticadas com alguma doença”.
Ampliação do Teste do Pezinho esbarra no preço das medicações
O alto custo do tratamento de doenças raras pelo SUS parece ser um dos fatores que atrasa o cronograma de implementação do Teste do Pezinho Ampliado. Chamados de ‘medicamentos órfãos’, alguns tratamentos para doenças raras diagnosticadas na triagem neonatal chegam a custar de R$ 1 milhão a R$ 6 milhões por ano.
Tanto as questões que envolvem o parque tecnológico e vazios assistenciais, quanto as questões de incorporação de novas tecnologias no SUS e, geralmente, o alto custo financeiro associado a essas incorporações, estão entre os principais desafios na implantação completa de todas as etapas da lei“, diz o Ministério da Saúde.
A pasta informa que a Lei 14.154/2021 ainda não foi regulamentada e prevê que “o PNTN passará por revisões de escopo sistemáticas, com auxílio da Câmara Técnica de Assessoramento (CTA), levando em conta as novas incorporações de tecnologia e prevalência das doenças“.
De acordo com a pasta, a reformulação acontecerá por meio de um “ato normativo” que irá “regulamentar e organizar o novo modelo gestão do PTNT, instituir a logística do transporte de amostras do teste do pezinho e o incentivo financeiro de custeio mensal para o Serviço de Referência em Triagem Neonatal“.
Os desafios para a ampliação do Teste do Pezinho
O Ministério da Saúde informou ainda que desenvolve ações para superar os desafios identificados nas unidades federadas. Os desafios para a ampliação envolvem a grande heterogeneidade do país, que foi evidenciada com a análise crítica do cenário do PNTN. Foram identificados problemas como:
- paralisações de programas estaduais,
- dificuldades relacionadas a logística de transporte de amostras do teste do pezinho até o laboratório especializado,
- relatos de atrasos e ausência na entrega de resultados aos responsáveis pelos recém-nascidos,
- existência de vazios assistenciais, em determinadas regiões, para as doenças diagnosticadas no programa, além de
- valores defasados para os procedimentos de triagem neonatal que estão inseridos na Tabela de Medicamento, Procedimentos e OPM do SUS.
Para executar o teste do pezinho atualmente, o governo federal encaminha recursos via Fundo Nacional de Saúde (FNS). O repasse abrange os exames inseridos na tabela de procedimentos, medicamentos e órteses, próteses e materiais especiais (OPM) do Sistema Único de Saúde (SUS).
Ainda de acordo com o MS, o PNTN é executado de forma articulada entre o ministério e as secretarias de saúde estaduais e do Distrito Federal, conforme estabelecido pela Portaria de Consolidação nº5 de 2017. “Cada gestor tem autonomia e o dever de avaliar as estruturas de saúde locais para a organização e realização da triagem neonatal”, diz a pasta.
Com informações da Sociedade Brasileira de Neurologia Infantil, Universo Coletivo AME e Ministério da Saúde