O primeiro dia do último mês do ano marca o Dia Mundial de Combate à Aids (1º de dezembro) e abre a campanha Dezembro Vermelho, instituído no Brasil pela Lei no 13.504/2017. A iniciativa traz um importante alerta a toda a sociedade. Globalmente, em 2023, 1,3 milhão de pessoas foram infectadas pelo HIV, totalizando 39,9 milhões de pessoas vivendo com o vírus, sendo 53% mulheres e meninas, de acordo com o Unaids. Além disso, 630 mil mortes relacionadas à Aids foram registradas no mesmo período.
Apesar de todo esforço da campanha, uma parcela da população acaba sendo “esquecida”, indiretamente, por diferentes motivos. Ao contrário do que muita gente pensa, não apenas os jovens estão entre os principais vítimas da infecção sexualmente transmissível (IST). De acordo com dados do Boletim Epidemiológico sobre HIV/AIDS, do Ministério da Saúde, o número de idosos que testaram positivo para o vírus quadruplicou nos últimos dez anos.
Entre 2011 e 2021, foram registrados 12.686 diagnósticos nessa faixa etária. Em 2011, houve 360 casos confirmados, enquanto em 2021 o número saltou para 1.517, um aumento de 321%. Com relação à Aids – que é a síndrome da imunodeficiência adquirida a partir da contaminação pelo vírus HIV – foram notificados 24.809 casos e 14.773 mortes em decorrência da doença. O Boletim destaca ainda que esta faixa etária é a única na qual ocorreu um aumento percentual de falecimentos por conta do HIV ao longo do período.
Para o presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), Marco Túlio Cintra, os números podem ser ainda maiores, já que é grande a subnotificação por falta de testagem. “Há um aumento progressivo em uma faixa etária preocupante e que o número de testagens não justifica. E aí vai para uma questão que as pessoas se surpreendem pelo número de casos porque no imaginário das pessoas a vida sexual do idoso se enterrou“, disse ele à Agência Brasil.
Os números refletem uma tendência preocupante, diante do envelhecimento demográfico e consequente crescimento da população idosa no Brasil. O volume elevado de diagnósticos ressalta a urgência de políticas públicas voltadas à prevenção, diagnóstico precoce e tratamento, considerando as mudanças no perfil epidemiológico causadas pelo envelhecimento da população.
A maior expectativa de vida – que chega a 76,4 anos no Brasil, como revelou esta semana o IBGE –, combinada com uma vida sexual mais ativa e o aumento do uso de medicamentos para disfunção erétil trouxe novos desafios para a saúde pública. Esse cenário evidencia a necessidade de ações mais robustas, inclusive e especialmente entre as pessoas idosas.
Sorofobia e desinformação são desafios, diz geriatra
A sorofobia ou preconceito contra pessoas vivendo com HIV permanece um dos grandes desafios na sociedade contemporânea, especialmente quando combinada com a falta de informações claras sobre as novas tecnologias de prevenção ao HIV. Esse cenário não apenas reforça estigmas associados ao vírus, mas também perpetua o estereótipo de uma velhice assexuada, criando barreiras adicionais para que pessoas idosas vivenciam sua sexualidade de maneira plena e saudável.
De acordo com Diego Felix Miguel, presidente do Departamento de Gerontologia da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia do Estado de São Paulo (SBGG-SP), “a sociedade ainda enxerga a sexualidade na velhice como algo invisível ou inadequado. Essa visão equivocada, somada ao preconceito com pessoas vivendo com HIV, afeta diretamente o bem-estar das pessoas mais velhas e dificulta o acesso a estratégias de prevenção e ao tratamento adequado”.
A falta de diálogo sobre a sexualidade na terceira idade, agravada pelo preconceito contra o HIV, impede que as pessoas idosas se sintam confortáveis para buscar apoio médico ou discutir questões sexuais em seus relacionamentos”, explica Diego Felix.
A sorofobia tem efeitos devastadores, que vão além da saúde física, afetando também a saúde emocional e a qualidade de vida. Entre as pessoas idosas, o preconceito se torna duplamente prejudicial, pois é combinado ao etarismo – o preconceito baseado na idade. Essa interseção limita o debate sobre sexualidade no envelhecimento e aprofunda tabus.
Confira aqui a mensagem de Diego Feliz ao instagram @vidaeacao
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Baixo uso de preservativos na relação sexual
Além de alertar para a subnotificação nos casos entre idosos, o presidente da SBGG explica que, assim como tudo que envolve os idosos, esse aumento dos casos de HIV não tem uma causa apenas. Segundo ele, o primeiro fator é comportamental e está relacionado ao baixo uso de preservativos na relação sexual, já que não existe mais a preocupação com uma possível gravidez. Entre as pessoas idosas, ainda há muita resistência, principalmente com relação ao público masculino.
É preciso ficar claro para essa faixa-etária que o preservativo não é apenas um método contraceptivo, mas também uma alternativa bastante eficaz para evitar muitas infecções sexualmente transmissíveis, incluindo o HIV”, reforça.
Segundo ele, o pior é que muitos homens idosos não imaginam que estão se expondo. “Muitas vezes as campanhas são voltadas para grupos e não por comportamento de risco. O comportamento de risco pode estar em qualquer faixa etária, inclusive nos idosos que são sexualmente ativos“, afirma o geriatra.
Viagra e aplicativos de relacionamento agravam o quadro
Para o presidente da SBGG, o segundo fator que impacta no número de casos e mortes é a popularização dos medicamentos contra a disfunção erétil, que prolongaram a vida sexual de muitos homens. Dr. Cintra explica também que muitos idosos são divorciados ou viúvos, o que faz com que se sintam mais livres para outras relações e acabam se descuidando. Além disso, os aplicativos de relacionamento auxiliam nesta jornada, facilitando os encontros.
Há também alguns fatores biológicos da idade que ampliam os riscos de infecção. Ele explica que a pouca lubrificação da vagina e do ânus, por exemplo, e a fragilidade do sistema de defesa do organismo nestes locais facilitam a entrada do HIV. Ele ainda citou a questão da imunossenescência, que são as alterações naturais do organismo, decorrentes do envelhecimento, que podem diminuir a eficácia do sistema imunológico na proteção contra doenças e infecções, aumentando a suscetibilidade a elas.
Quando se fala em pessoa idosa, não todos obviamente, mas há um perfil de mais doenças. Há uma alteração no sistema imune. Muitos tomam muitos medicamentos. É uma questão que quando entra o vírus HIV complica. Pode haver interações medicamentosas, de um medicamento atrapalhar o outro, tem maior dificuldade com o tratamento porque essas pessoas têm mais problemas de saúde”, explica.
Dificuldade em aceitar as novas tecnologias de prevenção em HIV
O diagnóstico precoce também desempenha um papel crucial na resposta ao HIV. Além de possibilitar o início imediato do tratamento, ele interrompe a cadeia de transmissão do vírus. No entanto, a discriminação ainda afasta muitos do acesso ao sistema de saúde e dificulta o enfrentamento do diagnóstico, encarecendo ou até inviabilizando o tratamento, em casos mais avançados.
Atualmente, o Brasil oferece medicamentos gratuitamente no SUS (Sistema Único de Saúde), permitindo que pessoas vivendo com HIV alcancem a carga viral indetectável, o que elimina o risco de transmissão. As tecnologias de prevenção ao HIV, como a profilaxia pré-exposição (PrEP) e a profilaxia pós-exposição (PEP) – têm sido revolucionárias na redução do risco de infecção e se mostrado altamente eficazes na prevenção do HIV.
Uma das principais estratégias para enfrentar a epidemia de HIV/Aids é a ampliação do acesso à PrEP, que consiste no uso de medicamentos antirretrovirais por pessoas não infectadas, mas em risco de exposição ao vírus. Contudo, o acesso a esses recursos ainda é limitado pela desinformação e pelo preconceito.
De acordo com os especialistas, seu uso ainda é pouco disseminado entre pessoas idosas, em grande parte devido à falta de campanhas direcionadas para esse público e ao tabu em abordar questões de sexualidade nesta faixa etária.
“Apesar dos avanços, muitos idosos não têm acesso a informações claras sobre a PrEP, o que os coloca em uma posição de vulnerabilidade”, afirma André Fattori, geriatra e diretor da SBGG-SP. Ele acrescenta que o estigma em torno do uso desses métodos reforça uma visão preconceituosa de que a prevenção seria algo reservado apenas para jovens ou para quem vive com HIV, excluindo grupos como a população idosa.
A inclusão da terceira idade nas estratégias de prevenção, como a oferta da PrEP, e em campanhas educativas que abordem a sexualidade de forma aberta e sem preconceitos, é essencial para reduzir as infecções e o impacto social da sorofobia”, completa o médico.
Desafios no diagnóstico precoce e no tratamento
Para a SBGG, os dados epidemiológicos oficiais reforçam a importância da orientação das medidas preventivas, de garantir o diagnóstico precoce e o acesso aos tratamentos contínuos e especializados para a população 60+, o que inclui reforçar a adesão à terapia antirretroviral (TARV) e o tratamento de infecções oportunistas, além do acompanhamento regular com profissionais de saúde capacitados.
Embora tenha ocorrido um aumento do número de testes e diagnósticos, as informações sobre a testagem são divulgadas de forma insuficiente, o que contribui para que nem sempre ocorra a detecção precoce. O presidente da SBGG ressalta que é fundamental que os profissionais da saúde solicitem a testagem aos pacientes idosos, já que o diagnóstico precoce é fundamental para o sucesso do tratamento.
Infelizmente, mesmo quando o idoso já apresenta sintomas, os médicos sempre suspeitarão de câncer ou outra doença, mas nunca do vírus HIV. Esse ainda é um tabu dentro dos consultórios. É mito acreditar que idosos não tenham mais libido e vida sexual ativa, e isso prejudica a prevenção da doença e o diagnóstico precoce.”
Casos já são detectados em fase avançada
Cintra ressalta que, na pessoa idosa, geralmente, o HIV tem múltiplas causas, mas os profissionais não pensam na possibilidade do vírus HIV para os idosos. Segundo ele, o paciente pode apresentar sintomas como o emagrecimento acentuado e os médicos investigarem câncer, sem desconfiarem de HIV. Então é descoberto com doença já manifesta com sintomas de Aids numa fase mais avançada.
Felizmente, hoje existem tratamentos eficazes com as chamadas terapias antirretrovirais, que permitem controlar a carga de vírus. No entanto, o uso desses medicamentos tem algumas particularidades nesta faixa-etária, sendo comum que a pessoa tenha comorbidades e doenças crônicas”, afirma o geriatra e presidente da SBGG.
A saída é o médico adaptar o tratamento e escolher fármacos que não prejudiquem o funcionamento dos rins, do coração ou dos ossos, por exemplo. Segundo ele, em determinado casos, por causa da interação medicamentosa, é necessário ajustar as dosagens ou os princípios ativos para controlar enfermidades como diabetes, dislipidemia e hipertensão. “O principal objetivo é não afetar a efetividade da terapia antirretroviral.”
Diagnóstico leva a negação, raiva, perplexidade ou tristeza
O combate à epidemia mundial de HIV/Aids exige mais do que medicamentos e testagem. É necessário enfrentar barreiras sociais e culturais que perpetuam preconceitos e dificultam o acesso à saúde. Por isso, é fundamental que a sociedade reconheça a importância de combater a sorofobia, pois o preconceito não apenas prejudica o indivíduo, mas também representa um obstáculo coletivo no enfrentamento da epidemia.
Geralmente, de acordo com o Dr. Cintra, a reação da pessoa idosa ao saber sobre a doença é de negação, raiva, perplexidade ou tristeza. O geriatra reforça que este é o momento de acolher a pessoa, sem qualquer tipo de julgamento, para que o tratamento comece o mais rápido possível.
Não podemos nos esquecer da questão da saúde mental e emocional dessas pessoas, uma vez que o estigma social relacionado ao HIV e à AIDS pode afetar a autoestima e o bem-estar psicológico do idoso. Assim, esse suporte deve fazer parte do tratamento.”
O papel dos médicos no acolhimento e desconstrução dos mitos
A criação de espaços seguros, onde as pessoas idosas possam falar abertamente sobre sua sexualidade, é fundamental para quebrar estigmas e melhorar a adesão às novas tecnologias de prevenção.
Para Dr. Fattori, o papel do médico é central nesse processo, Os profissionais de saúde devem atuar como agentes de mudança, promovendo um atendimento acolhedor e inclusivo. Por isso, ao combater a sorofobia e ampliar o acesso às tecnologias de prevenção, a SBGG dá um passo importante para promover um envelhecimento sexualmente ativo e saudável, livre de preconceitos.
Precisamos desconstruir preconceitos e fornecer informações de forma empática e acessível. Quando uma pessoa com mais de 60 anos busca orientação, é essencial que ele se sinta acolhido e que o profissional aborde questões como a sexualidade e a prevenção de forma natural e respeitosa”, conclui.
Outro fator importante é a falta de campanhas de prevenção direcionadas a esse público. É preciso que as campanhas, como o Dezembro Vermelho, atinjam também os idosos, uma vez que o foco maior está nos mais jovens, o que faz com que eles não sejam alcançados. Os geriatras alertam para a importância de campanhas educativas e do diálogo aberto entre profissionais de saúde, pacientes e familiares.
O propósito da campanha Dezembro Vermelho é chamar a atenção para conscientizar a população sobre a prevenção, o diagnóstico e o tratamento do HIV e outras infecções sexualmente transmissíveis (ISTs). Também busca combater o estigma e a discriminação associados a essas doenças, bem como a assistência e a garantia dos direitos das pessoas com o vírus HIV.
Com informações da SBGG, SBGG-SP e Agência Brasil