“Toda luta é uma flecha. A depender da envergadura do arco e da determinação em acertar o alvo, ganha-se a batalha”. E foi assim que um jovem sem perspectivas venceu a guerra contra a procrastinação, deu uma guinada na sua vida e encontrou seu propósito bem longe de casa. Hoje, esse guerreiro lidera um importante projeto social que leva saúde aos povos distantes da floresta – indígenas e ribeirinhos – no coração da Amazônia.
Aos 26 anos, Caio Machado havia abandonado os estudos e não sabia o que queria da vida – como milhares de outros jovens brasileiros da chamada ‘geração nem-nem’ – “nem estuda, nem trabalha”. “Até então, eu só havia conseguido terminar o ginásio e ostentava um currículo extenso em confusões e perdas de tempo”, relata. Foi quando, conta ele, “recebeu um chamado” que chacoalhou a sua vida.
“Acordei e ainda nem era dia. A vida passava como um filme pela minha cabeça. ‘Levante, levante’, uma voz me disse. Bastou um chamado e um despertar espiritual para eu ter forças e mudar”, relembra Caio.
Em seis meses, ele estava formado no Ensino Médio e já prestando vestibular. Escolheu seguir os passos do pai, um cirurgião-dentista renomado. Ainda durante o curso de Odontologia, foi chamado para atuar em um projeto de atendimento a comunidades da Amazônia, na região do Baixo Madeira, Rondônia.
Quem diria que o rapaz cosmopolita, nascido e criado em São Paulo, que conseguiu terminar os estudos e se formar numa faculdade, finalmente encontraria seu propósito no meio da floresta? Seria a primeira vez que Caio iria vivenciar o Brasil profundo. E algo mudou em sua vida.
‘Eu entendi a potência da floresta, sua simplicidade e humanidade’
“Eu entendi, naquela viagem, a potência da floresta — ao longo dos dias, a paisagem entrava em mim e as pessoas me tocavam profundamente com sua simplicidade. Gestos singelos, olhares sinceros: humanidade”, revela o dentista, que há 15 anos assumiu a missão de levar o direito à saúde pública de qualidade aos povos das florestas, indígenas e ribeirinhos da Região Amazônica.
A história pessoal de Caio, que se confunde com a história da ONG Doutores da Amazônia, deu origem ao livro “Levante e Lute”, mesmo nome do projeto cultural Levante e Lute, inspirado na ONG fundada e dirigida pelo dentista em 2015. A organização mobiliza uma grande equipe de voluntários com médicos, psicólogos e enfermeiros e percorre aldeias e comunidades ribeirinhas em toda a região.
Em quase uma década de atuação, os Doutores da Amazônia já realizaram mais de 60 missões, ultrapassando 500 voluntários envolvidos em atendimentos a mais de 60 povos, levando alta tecnologia médica a territórios isolados – um marco mundial no voluntariado da saúde.
Um encontro entre doutores e pajés, médicos e raizeiros
Escrita por Caio Machado, em parceria com a jornalista Ana Augusta Rocha e fotografias de Cassandra Cury, a publicação traça um panorama do trabalho dos profissionais de saúde. E celebra o encontro entre diferentes culturas, que integram seus saberes em nome do bem comum. Doutores e pajés, médicos e raizeiros, o objetivo de todos é o mesmo: melhorar a vida, o bem-estar e buscar a felicidade dos povos da floresta.
O livro engloba uma ação educativa entre adolescentes de São Paulo e do Xingu MT e mostra como indígenas e ribeirinhos recebem os cuidados para a saúde e integram esses cuidados vindos de fora, com a sua sabedoria, que vem de séculos e séculos de uso das plantas da floresta e do mundo espiritual.
Ativista pela saúde de povos da floresta de renome internacional, Caio Machado relata a sua trajetória de garoto ‘sem rumo’ da cidade grande que encontrou seu propósito de vida na Amazônia. Ao longo das 160 páginas, as fotos revelam um rico diálogo com o texto, um depoimento do ativista sobre as experiências destes anos à frente do projeto, e cuja história de vida está em simbiose com a da ONG.
Despertar de sonhos intranquilos: o começo de tudo
Mas o início dessa caminhada se deu de forma solitária. Na passagem de 2013 para 2014, Caio faz sua segunda missão em Rondônia. Desta vez, o cenário era outro: a cheia do Rio Madeira, a maior em séculos, submergiu diversas casas, e invadiu o posto de saúde da comunidade, onde ele atuaria como voluntário naquela missão.
“Chegamos em Porto Velho e fomos pegos de surpresa: não era o mesmo lugar que eu conhecia. Assolada por uma grande chuva, a cidade tinha virado um rio por inteiro. Quase não havia terra à vista. Seria impossível chegar ao nosso destino com todos os equipamentos médicos”, relembra.
A elevação do Rio Madeira inundou a área portuária de Porto Velho e interditou a BR-364, isolando as localidades de Guajará-Mirim, Nova Mamoré e Abun. Num esforço coletivo, o grupo de voluntários retirou os equipamentos odontológicos do posto de saúde, que estava quase destruído pelas águas, e improvisou um centro de atendimento. Durante 15 dias, o serviço funcionou dentro de um bar chamado Hollywood, onde centenas de pessoas foram consultadas.
“Terminada a viagem, uma percepção me veio à cabeça: Holly (sagrada) wood (floresta). A mensagem estava dada. Assim, em meio a um local realmente sagrado para o Brasil e para o mundo, consagramos a ONG que nascia: a Doutores da Amazónia”, conta Caio.
A ONG é fundada em 2015 e, no mesmo ano, mobiliza uma grande equipe de voluntários. Em 2016, a ação está ainda maior e realiza centenas de procedimentos em duas comunidades: no distrito de Nazaré e na Reserva Extrativista do Lago do Cuniã.
Neste momento, surge o que Caio entende como mais um chamado. A indigenista Ivaneide Bandeira, conhecida como Neidinha Suruí, ativista histórica na luta indígena e fundadora da ONG de Defesa Etnoambiental Kanindé, o convida a atuar junto ao povo Paiter-Suruí, dos estados de Rondônia e Mato Grosso.
Marco mundial na atuação do voluntariado médico
A parceria junto à ONG Kanindé se concretiza em 2017, e se torna um marco histórico mundial na atuação do voluntariado médico. “Resolvi sonhar um pouco mais alto e levar equipamentos de alta tecnologia para comunidades e aldeias”, relata Caio.
O equipamento em questão chama-se Cerec Cad/Cam, um scanner intraoral com uma fresadora 3D que proporciona a confecção de um elemento dentário em um curto espaço de tempo, de alta qualidade e acabamento estético de ponta. Através desse scanner digital, desenha-se a arcada dentária na tela; depois, os elementos dentários são confeccionados.
“Fomos a primeira organização do mundo a aplicar essa tecnologia em missões de voluntariado. Desde 2017, percorremos mais de 60 aldeias levando tecnologia ultra especializada, inclusive a povos isolados, e provando para o poder público, em pleno século XXI, que podemos realizar na floresta os mesmos atendimentos dos grandes centros”, conta Caio.
Em seguida, a equipe ruma à aldeia de Lapetanha, na Terra Indígena Sete de Setembro, e dos povos Paiter-Suruí e Uru-Eu-Wau-Wau. Ali, se estabelece uma profunda relação entre Caio e o povo Suruí. O dentista é batizado pela etnia, recebendo o nome de Gamebey.
“O encontro com toda aquela gente me emocionou profundamente, desde os primeiros instantes. Se durante mais de dez anos a minha experiência amazônica se concentrará mais nas populações ribeirinhas, agora, com os indígenas Suruí, eu tinha uma certeza absoluta: além de ter voltado para casa, tinha reencontrado minha família”, relata Caio.
‘Nos movemos pela crença do ‘Não deixe para depois. Levante e lute!’
A jornada da ONG Doutores da Amazônia de levar atendimento médico de qualidade para o coração da floresta amazônica é um sonho que virou realidade e já impactou a vida de dezenas de milhares de pessoas. Afinal, sem saúde aos povos da floresta, não há floresta em pé.
“A saúde tem que chegar na ponta, tem que chegar para todo mundo. Não é justo que atendimentos especializados e de qualidade beneficiem somente uma parte da população”, destaca Caio.
O projeto “Levanta e Lute” tem, portanto, a missão de semear a mensagem sobre a importância de iniciativas em prol de populações em situação de vulnerabilidade.
“Milagres possibilitaram tudo isso. Nossa meta era levar o melhor padrão de atendimento de saúde a quem quase não tinha acesso. Nos movemos pela crença do ‘não deixe para depois. Levante e lute!’”, diz Machado, que adotou como meta mobilizar corações, mentes e esforços para a construção de uma realidade com mais justiça social.
Parte da tiragem de 2 mil exemplares será destinada a apoiadores que fizerem contribuições para a ONG e o restante será distribuído em escolas, instituições do terceiro setor e para formadores de opinião, voltados ao fortalecimento à causa indígena e a da saúde. Além do lançamento do livro, o projeto é composto por um projeto pedagógico com jovens do povo Kalapalos, no Xingu, que teve início em junho deste ano.
Conheça a equipe que atua no livro
Ana Augusta Rocha
Há mais de 25 anos, o Brasil e sua pujante natureza fazem parte dos dias da jornalista e escritora Ana Augusta Rocha, que desde sempre gosta de contar histórias impactantes e inspirar as pessoas a agir e promover mudanças positivas. A sua paixão pelo Jornalismo e pela escrita inspiracional já lhe renderam prêmios renomados, como o Prêmio Abril de Jornalismo e Ecologia e o Prêmio Jabuti 2012.
Fascinada pela trajetória de Caio, com quem hoje trabalha no braço cultural da ONG, foi dela o olhar sensível para entender que ali havia uma história que merecia ser contada e dividida com os brasileiros. A sua grande influência em relação aos povos originários, contudo, nasce bem antes de conhecer a Doutores da Amazônia.
Foi com Orlando Villas Boas, com quem trabalhou em duas diferentes ocasiões e mapeou por sete anos as notáveis paisagens do Brasil para fazer os livros da série Brasil Aventura.
À frente da Editora Auana foi ela a responsável pelos textos e edição do livro e pela direção do projeto pedagógico Levante e Lute, que consiste em incentivar do povo Kalapalo a produzirem documentação, em vídeo, sobre sua história, cultura e os movimentos que se envolvem atualmente.
Os Kalapalo foram os primeiros a serem contatados pelos irmãos Villas Boas em 1945, os criadores do Parque Indígena do Xingu, no estado do Mato Grosso.
Cassandra Cury
Cassandra Cury, fotógrafa e documentarista, iniciou a caminhada profissional focada na fotografia outdoor, registrou as belezas naturais de uma vasta área do território brasileiro e de alguns países da América do Sul e Europa.
Ao mesmo tempo em que a natureza se descortinava por esses caminhos, o olhar encontrava povos de comunidades tradicionais que surgiam para compor cenários ainda mais belos. O coração vibrava com os rostos que se apresentavam, os modos de vida, as diversas culturas e as tantas histórias.
Cassandra já registrou mais de 60 povos, de visitas intimistas em terras indígenas a encontros em movimentos sociais, como o ATL – Acampamento Terra Livre e a Marcha das Mulheres Indígenas. Suas lentes enfocaram com mais frequência, desde 2016, o povo huni kuin da amazônia acreana pelos laços que foram criados através do seu caminho espiritual.
Desde 2019, os povos do Xingu e Rondônia passaram a ser o foco do trabalho que vem realizando junto aos Doutores da Amazônia, que cuidam da saúde indígena no Alto Xingu, na terra dos Paiter Suruí e dos vários povos que vivem em terras distantes às margens dos rios Mamoré e Guaporé na amazônia rondoniense.