Para muitas famílias que possuem planos de saúde, como a de Enzo, um menino autista de 9 anos, que conseguiu acesso ao tratamento através de liminar na justiça – porque receberam a alegação que a terapia não fazia parte do rol de procedimentos obrigatórios da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), negando assim o custeio da intervenção – uma possível decisão do Superior Tribunal de Justiça nesta quarta-feira (8), em favor do rol taxativo, afetará diretamente a saúde e a vida dos envolvidos.

“Apelo, como mãe, para que os ministros do STJ olhem para os nossos filhos como seres humanos que são, que necessitam de tratamento para que sejam independentes, e não uma briga de dividendos de empresas milionárias contra famílias que berram por respeito”, disse Michelle Carvalho, mãe de Enzo.

Ela explica que uma interrupção de tratamento, de forma não planejada, assim como uma mudança de equipe da qual seu filho não se identifique afetivamente pode ser muito prejudicial no desenvolvimento dele.

Mãe de Enzo, um menino autista de 9 anos, Michelle faz apelo a ministros do STJ (Foto: Divulgação)

“Toda a intervenção é um processo longo, diário, de muito trabalho, mas infelizmente, ignorada e/ou subestimada pelos planos de saúde, que liberam horas mínimas terapêuticas e tentam, a todo custo, se esquivar de assumir o que lhes é responsabilidade. Que as pessoas autistas tenham chance e oportunidades de acesso a algo tão importante e fundamental para sua vida em sociedade”, comenta.

O apelo por acesso e direito à saúde se une ao da professora Fabiana Rodrigues, de 45 anos, mãe dos gêmeos autistas Nícolas e Vitor, de 14 anos, que  se sente indignada com a possível decisão da turma de ministros a favor do rol taxativo, que é considerada a tendência para a votação da sessão desta quarta.

“Como é possível, em um país como o nosso, em pleno século XXI, nos depararmos com pessoas que deveriam ser nossos representantes no cumprimento das leis, e deveriam ser os principais exemplos no respeito à vida, terem a coragem de se posicionarem contra a vida das pessoas com deficiência? Contra as pessoas vulneráveis? O desamparo a uma criança com deficiência não descuida e desampara apenas a criança ou a pessoa com deficiência, e sim, toda a família”, desabafou.

De acordo com definição da ANS, o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde garante e torna público o direito assistencial dos beneficiários dos respectivos planos, contemplando procedimentos considerados indispensáveis ao diagnóstico, tratamento e acompanhamento de doenças, em cumprimento ao disposto na Lei nº 9.656, de 1998.

Rol é considerado taxativo quando há uma lista definitiva (limitada) de procedimentos que devem ser, obrigatoriamente, oferecidos pelas operadoras privadas de saúde; e exemplificativo quando leva em consideração apenas uma amostra com alguns exemplos dos itens que devem ser pagos pelos planos, podendo haver outros fora da lista que também devam ser cobertos.

ABA: Intervenção para pessoas com autismo sob ameaça

Depois de uma longa trajetória, vendo os filhos sofrerem por não conseguirem se comunicar, passando por muito sofrimento, em um momento de desespero, Fabiana conheceu a ABA – Applied Beharvior Analysis – a intervenção comportamental com reconhecimento científico, para pessoas com autismo, capaz de apoiar as pessoas em seus desenvolvimentos.

“Meus filhos só passaram a ter esse atendimento pela força da Lei. Eles foram resgatados de uma vida condenada, através da intervenção em ABA. Imaginar a possibilidade deles perderem um direito adquirido que lhes trouxe qualidade de vida é imaginar meus filhos sendo julgados e lançados em um ‘calabouço’”, comentou.

Além das mudanças percebidas pelas famílias dos pacientes, os benefícios alcançados por meio da ABA também são constatados pela Mestre, Doutoranda e pesquisadora da PUC-SP e coordenadora de Pesquisa do IPC, instituição sem fins lucrativos que promove a pesquisa em ABA, Renata Michel.

Ela diz que, enquanto os tratamentos convencionais ainda não demonstram quaisquer benefícios, a ABA constata a melhora dos pacientes “que inclui desde o desenvolvimento da linguagem, habilidades de independência básicas até o ensino de habilidades acadêmicas e a capacitação dos indivíduos para a inserção no mercado de trabalho”, comenta.

A coordenadora de Pesquisa do IPC, Renata Michel, lamenta: “Enquanto diversos outros países estabelecem e chancelam a ABA como ‘padrão ouro’ no tratamento do TEA, com a decisão tomada pelo STJ podemos ter um retrocesso no entendimento do judiciário. A não presença da ABA no rol da ANS não significa que tal agência negue a eficácia da ABA, mas tão somente que ainda não a incluiu em seu rol, possivelmente por razões políticas quaisquer não pautadas na apreciação da ciência.”

Pessoas com câncer: alerta para limitação em tratamentos

Sete sociedades brasileiras que atuam no cuidado oncológico publicaram uma carta aberta em defesa de caráter não restritivo do Rol da ANS. São elas: Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica (SBCO); Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC); Sociedade Brasileira de Radioterapia (SBRT); Colégio Brasileiro de Radiologia e Diagnóstico por Imagem (CBR); Sociedade Brasileira de Patologia (SBP); Sociedade Brasileira de Radiologia Intervencionista e Cirurgia Endovascular (Sobrice) e a Sociedade Brasileira de Medicina Nuclear (SBMN).

Em sua última atualização, vigente entre 02/01/2018 a 31/03/2021, o Rol da ANS estabeleceu o direito à cobertura para 18 novos procedimentos, entre exames, terapias e cirurgias, que atendem diferentes especialidades, e a ampliação de cobertura para outros 7 procedimentos, incluindo medicamentos orais contra o câncer.

“Mesmo com essa revisão, o processo de incorporação no Rol está em descompasso com a produção científica em oncologia – o que impacta no acesso dos pacientes aos procedimentos que reúnem evidências consolidadas. Quando um paciente recebe o diagnóstico de câncer, o tempo é crucial.

Embora tumores mais indolentes permitam uma janela de tempo em que a falta de acesso imediato ao tratamento não impacte em sua qualidade de vida, na maioria dos casos, a doença tem um comportamento agressivo e a falta de cobertura reflete, diretamente, na piora da doença.

Outro agravante é que, além da demora na incorporação de novos medicamentos, há também a ausência de incorporações relacionadas à cirurgia e à radioterapia. O Rol taxativo é motivo de preocupação, pois pode resultar em maior obstáculo para que os pacientes, mesmo com evidência científica e laudo médico em mãos, consigam obter procedimentos requeridos na justiça”, destaca a nota.

Confira na íntegra a carta assinada pelas sete sociedades:

rol da ANS é uma lista com diversos tipos de medicamentos e procedimentos – muitos deles fundamentais para o controle ou até cura do câncer – que os planos de saúde devem cobrir. Ele é considerado taxativo quando há uma lista definitiva (limitada) de procedimentos que devem ser, obrigatoriamente, oferecidos pelas operadoras privadas de saúde; e exemplificativo quando leva em consideração apenas uma amostra com alguns exemplos dos itens que devem ser pagos pelos planos de saúde, podendo haver outros fora da lista que tenham que ser cobertos.

De acordo com esses recursos, foram consideradas abusivas as cláusulas contratuais que excluíram procedimentos prescritos pelo médico. Segundo essa interpretação, a rejeição a qualquer procedimento recomendado por um médico caracterizaria conduta abusiva das operadoras de planos de saúde, ainda que não previsto no contrato de seguro e no rol da ANS. Isso porque a essência do contrato de plano de saúde seria assegurar o cuidado necessário para a recuperação do paciente. Dessa forma, a lista da agência reguladora seria exemplificativa.

Por outro lado, a ANS e as operadoras dos planos de saúde defendem o caráter taxativo, ou exaustivo, do rol, baseando-se no entendimento do plano de saúde como um contrato, com o pagamento da importância devida, a oferta de garantias na eventual ocorrência de sinistro e o reconhecimento da existência de um risco estimado. A equivalência entre esses elementos contratuais garantiria a sustentabilidade do sistema de saúde suplementar.

Na prática, o rol da ANS tem sido considerado taxativo pelo órgão regulador e os planos têm    se negado, frequentemente, a oferecer tratamentos e tecnologias que não constem dele, o que não raro leva pacientes à judicialização. Por outro lado, o entendimento histórico dos tribunais do país, que são predominantemente favoráveis a uma interpretação mais ampla, considera a lista de procedimentos como referência exemplificativa. A maioria deles possui jurisprudência consolidada em favor de um rol exemplificativo. A decisão do STJ que está em debate, no entanto, pode alterar essa realidade.

Sendo assim, estas sociedades médicas reafirmam sua defesa histórica por processos decisórios que privilegiem o profissional médico da saúde suplementar e seus pacientes que não podem esperar por longos períodos até que o cuidado de que necessitam seja oferecido. Viemos de  um trabalho de longa data pela defesa de melhorias no rol da ANS, para que sua revisão e atualização ocorra de forma célere para atender as necessidades dos pacientes assistidos pelos planos de saúde brasileiros.

Igualmente, a defesa dessa celeridade nunca prescindiu da avaliação de tecnologias em saúde (ATS), e nossos especialistas têm participado ativamente dos processos de incorporações de tecnologias ao rol fornecendo as melhores evidências científicas para as tomadas de decisão por parte dos gestores públicos.

Nos manifestamos pela ampliação da discussão a respeito desta interpretação jurídica e firmamos posição em defesa de caráter não restritivo, podendo este servir como um balizador de condutas e nunca como um limite pétreo do cuidado. Reconhecemos a necessidade da sustentabilidade do sistema de saúde suplementar e, por isso, sugerimos que o STJ module sua decisão, legitimando a realidade atual: rol deve ser prestigiado sempre que possível e sua atualização deve ser mais célere e com a discussão técnica com as Sociedades de Especialidades. 

No entanto, se a via judicial for a saída encontrada pelo paciente para assegurar seu acesso ao tratamento recomendado pelo seu médico, que o juiz possa analisar caso a caso, podendo entender que em determinadas situações, a ANS não deu a resposta mais adequada para a sociedade.

Para os profissionais médicos, pacientes e seus familiares saberem da existência de excelentes recursos contra o câncer e não poderem utilizá-los, simplesmente por imposições de padrões administrativos, deslegitimadas pela comunidade médica, não deixa de ser um  cerceamento de direitos.

 

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