“Basta de feminicídio. Queremos as mulheres vivas”. Este é o lema de manifestantes que foram às ruas neste domingo (7) para denunciar o aumento do número de casos de feminicídio e protestar contra todas as formas de violência que violam o direito das mulheres a viver com liberdade, respeito e segurança. Mobilizadas por coletivos, movimentos sociais e organizações feministas, as manifestações têm o objetivo de romper o silêncio, exigir justiça e afirmar que a sociedade não aceitará mais a impunidade.

A mobilização nacional foi convocada após uma onda de feminicídios recentes que abalaram o país. No final de novembro, Tainara Souza Santos teve as pernas mutiladas após ser atropelada e arrastada por cerca de um quilômetro, enquanto ainda estava presa embaixo do veículo. O motorista, Douglas Alves da Silva, foi preso por tentativa de feminicídio.

Na mesma semana, duas funcionárias do Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet-RJ), no Rio de Janeiro, foram mortas a tiros por um funcionário da instituição de ensino que se matou em seguida. Segundo testemunhas, ele não suportava ser chefiado por mulheres.

Na sexta-feira (5), foi encontrado, em Brasília, o corpo carbonizado da cabo do Exército Maria de Lourdes Freire Matos, 25 anos. O crime está sendo investigada como feminicídio, após o soldado Kelvin Barros da Silva, 21 anos, ter confessado a autoria do assassinato. Ele está preso no Batalhão da Polícia do Exército.

Nesta semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silvfez um apelo para que haja um grande movimento nacional contra a violência de gênero. Ele cobrou dos próprios homens uma resposta para mudar a cultura de violência de gênero que predomina na sociedade.

Escalada de casos de feminicídio choca o Brasil

O número de casos de mulheres assassinadas em razão do gênero, em contextos de violência doméstica, familiar ou por menosprezo e discriminação  relacionados à condição do sexo feminino, vem aumentando no Brasil, ao contrário da queda geral das mortes violentas intencionais.

Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2024 houve um recorde de 1.492 casos de feminicídio, o maior número já contabilizado desde que o crime foi tipificado. Isso equivale à morte de, em média, quatro mulheres por dia. Em 2020, esse número tinha sido 1.350.

A violência doméstica segue como o principal cenário dessas tragédias: em 80% dos casos, o agressor era companheiro ou ex-companheiro, e em 64,3%, o crime ocorreu dentro de casa. Mais de 60% das vítimas eram mulheres negras e mais de 70% tinham entre 18 e 44 anos. Também foram registrados 87.545 estupros, uma agressão sexual a cada seis minutos.

As estatísticas são ainda mais estarrecedoras quando se computam outras formas de violência contra a mulher, previstas na Lei Maria da Penha. Cerca de 3,7 milhões de mulheres brasileiras viveram um ou mais episódios de violência doméstica nos últimos 12 meses, segundo o Mapa Nacional da Violência de Gênero. Em 2025, Brasil já registrou mais de 1.180 feminicídios e quase 3 mil atendimentos diários pelo Ligue 180, segundo o Ministério das Mulheres. 

Por que um número tão baixo de vítimas denuncia o agressor?

92% das agressões contra mulheres ocorreram na presença de terceiros. Advogada explica se a testemunha pode responder criminalmente

Outro dado revela que os números podem estar subnotificados graças ao silêncio das testemunhas. Um levantamento do Datafolha, encomendado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, revelou que 91,8% das agressões contra mulheres nos últimos 12 meses ocorreram na presença de terceiros.

O dado reforça que a violência de gênero não acontece apenas em momentos isolados ou escondidos, mas sim diante de familiares, amigos e até desconhecidos. Quem omite o crime pode até responder judicialmente, segundo a advogada Suèllen Paulino, que atua com Direito Criminal e Direito de Família

Mesmo com testemunhas, a omissão ainda é um problema. Quem presencia um crime e não aciona a polícia pode responder por omissão de socorro, conforme prevê o artigo 135 do Código Penal. Se a vítima estiver em perigo grave e a testemunha puder agir sem risco, mas não o fizer, a pena pode chegar a 1 ano de detenção. Em casos mais graves, o silêncio pode ser interpretado como conivência, aumentando a responsabilidade legal do omisso“, explica.

Por que as mulheres não denunciam

Outro dado preocupante da pesquisa mostra que, mesmo diante da violência, apenas 25,7% das mulheres recorreram a órgãos oficiais para pedir ajuda no último ano. De acordo com a advogada, esse número tão baixo pode ser explicado por diversos fatores, entre eles:

• Medo de represálias: Muitas vítimas vivem sob ameaças constantes e temem que denunciar possa piorar sua situação.

• Dependência financeira e emocional: A falta de autonomia econômica pode fazer com que a mulher se sinta presa ao agressor.

• Desconfiança no sistema de justiça: Algumas mulheres não denunciam porque acreditam que nada será feito ou que não serão protegidas.

• Falta de apoio da família e sociedade: Em muitos casos, a vítima não recebe apoio necessário para romper o ciclo da violência.

• Vergonha e culpa: Muitas mulheres ainda carregam o peso da culpa, resultado de uma cultura que normaliza e minimiza a violência doméstica.

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Denunciar pode salvar vidas

Suéllen diz que o papel das testemunhas também é fundamental. “Denunciar pode salvar vidas. Em caso de violência contra a mulher, qualquer pessoa pode ligar para o Ligue 180, canal gratuito e confidencial de atendimento, ou para o 190, da Polícia Militar, em casos de emergência”

Ela pondera que a luta contra a violência de gênero não é apenas uma responsabilidade do Estado, mas de toda a sociedade. “O silêncio também mata – e cada denúncia pode ser a chance de uma mulher recomeçar sua vida longe do ciclo da violência”, finaliza.

Os desafios na proteção das vítimas

 Apesar de leis consolidadas, altos índices de feminicídio e agressões evidenciam a necessidade de políticas públicas eficazes, educação de gênero e apoio institucional às vítimas 

A mobilização marca um momento de reflexão sobre os avanços e os desafios na garantia da segurança e da dignidade feminina no Brasil. Mesmo com leis robustas e amplamente reconhecidas, o país segue registrando índices alarmantes de agressões e feminicídios. Em março deste ano, a Lei do Feminicídio (13.104/2015) completou 10 anos. Apesar do marco legal, o Brasil registrou, em 2024, o maior patamar de violência contra a mulher desde 2017.
Fazer cumprir a lei é um enorme desafio. Nos últimos 12 meses, foram concedidas cerca de 555 mil medidas protetivas, mas mais de 100 mil foram descumpridas, incluindo 121 casos em que as vítimas já estavam sob proteção judicial quando foram assassinadas.
O contraste entre o avanço legal e a persistência da violência expõe uma crise na aplicação da lei, nos mecanismos de prevenção e na responsabilização dos agressores.  A advogada Tatiana Naumann, sócia do Albuquerque Melo Advogados e graduanda em Direito e gênero pela  Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj), explica que o problema é estrutural e vai além da legislação.
O Brasil tem marcos legais avançados, mas ainda carece de políticas públicas eficazes e de uma cultura que repudie a violência. A lei é o ponto de partida, não o ponto final”, afirma.

O que dizem as leis

A Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) é um marco na proteção às mulheres em situação de violência doméstica, criando mecanismos de prevenção, punição e assistência, como medidas protetivas de urgência, juizados especializados e rede de atendimento com suporte psicológico, jurídico e social.
Ela estabelece uma série de medidas protetivas para as vítimas e prevê penas que variam conforme a conduta do agressor. A punição para agressores depende da gravidade do crime cometido.

Lesão corporal (art. 129, § 9º do Código Penal) – Pena de 1 a 4 anos de prisão.

Ameaça (art. 147 do Código Penal) – Pena de 6 meses a 2 anos de prisão.

Descumprimento de medida protetiva – Pena de 3 meses a 2 anos de prisão.

• Feminicídio (art. 121, § 2º, VI, do Código Penal) – Pena de 12 a 30 anos de reclusão.

Já a Lei nº 13.104/2015 (Lei do Feminicídio) qualificou o homicídio cometido contra a mulher por razões de gênero, incluindo casos de violência doméstica, familiar ou discriminação, e elevou a pena para até 30 anos de reclusão.
Educação de gênero e mudança cultural
Apesar dos avanços na legislação, os números mostram que ainda há muito a ser feito para garantir a proteção das mulheres vítimas de violência. Além de reforçar a fiscalização das leis já existentes, é essencial que haja maior conscientização da sociedade, campanhas educativas e um sistema de acolhimento mais eficiente”, afirma , a advogada criminalista Suéllen Paulino.
As especialistas destacam que o enfrentamento ao problema exige mais do que leis: requer compromisso institucional, articulação entre poderes, participação das empresas e mudança cultural profunda. Para Tatiana, “não basta punir o agressor”.
É preciso investir em prevenção, acolhimento e fortalecimento das redes de apoio. A violência de gênero é uma questão de direitos humanos e deve ser prioridade nacional”,  defende.
A longo prazo, a educação de gênero é uma das ferramentas mais eficazes para prevenir a violência. Conteúdos sobre igualdade de gênero e direitos humanos devem ser incluídos nos currículos escolares desde cedo, e campanhas contínuas devem envolver homens e adolescentes, promovendo masculinidades não violentas e respeito às mulheres.
A transformação começa pela educação. É ali que se desconstrói o machismo e se formam valores baseados em igualdade e respeito. Sem mudança cultural, as leis continuarão sendo remédios de emergência, e não soluções permanentes”, aponta.
O papel das empresas e instituições
Empresas e instituições podem atuar de forma estratégica na prevenção e no acolhimento de mulheres vítimas de violência. Além de políticas internas e canais de denúncia seguros, é fundamental treinar gestores e equipes de RH para identificar sinais de abuso e oferecer encaminhamentos adequados.
Programas de flexibilização da jornada, licenças especiais e transferências temporárias protegem a vítima e permitem que ela participe de procedimentos legais ou de acompanhamento psicológico sem riscos. Parcerias com ONGs, órgãos públicos e movimentos sociais ampliam o acesso a suporte jurídico, psicológico e social.
Quando uma empresa adota políticas de acolhimento consistentes, não só protege a funcionária, mas fortalece o papel social da instituição. O ambiente corporativo se torna seguro, e a cultura de respeito e igualdade de gênero se dissemina entre funcionários e lideranças”, destaca.
Com Assessorias
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