Em pleno período de Carnaval, quando o consumo de bebidas alcóolicas costuma disparar, o Dia Nacional de Combate ao Alcoolismo (18 de fevereiro) chama atenção para os perigos do consumo nocivo e acende o alerta para os riscos da dependência dessa substância que, apesar de legalizada no Brasil, causa muitos estragos ao organismo de quem ingere, às famílias desses indivíduos, à sociedade em geral e economia como um todo.

Calcula-se que, no Brasil, cerca de 15% da população seja dependente de álcool. Com base em dados de 2018, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 3 milhões de pessoas morram por ano em decorrência do alcoolismo em todo o mundo. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro do Fígado (Ibrafig) mostra que 55% da população brasileira têm o hábito de consumir bebidas alcoólicas, sendo que 17,2% delas declararam aumento do consumo durante a pandemia de Covid-19, associado a quadros de ansiedade graves por conta do isolamento social.

De acordo com o levantamento, uma em cada três pessoas no país consome álcool pelo menos uma vez na semana. O consumo abusivo de bebidas alcoólicas foi relatado por 18,8% dos brasileiros ouvidos na pesquisa. Os dados foram levantados com base na resposta de 1,9 mil pessoas, espalhadas pelas cinco regiões do país. O estudo mostra ainda que, em média, os brasileiros ingerem três doses de álcool por ocasião, o que representa 450 ml de vinho ou três latas de cerveja.

A pandemia do novo coronavírus também teve impacto no consumo de álcool, destaca uma pesquisa da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) realizada em 33 países. No Brasil, 42% das pessoas entrevistadas relataram alta ingestão de álcool desde o surgimento da Covid-19. O levantamento ocorreu entre maio e junho de 2020, por meio de um questionário online, e envolveu cerca de 3 mil participantes brasileiros.

De acordo com o levantamento, a maior prevalência em beber pesado episódico (BEP) – mais de 60 gramas de álcool puro – ocorreu entre jovens, ao menos uma vez em 30 dias. Pessoas com rendas mais altas também apresentaram aumento na frequência do consumo. Além disso, quadros de ansiedade elevaram em mais de 70% a chance de ingestão de bebidas alcoólicas no período.

Consumo precoce: cresce uso de álcool entre adolescentes

Antes mesmo da pandemia, o aumento no consumo de álcool entre os brasileiros já era preocupante porque tem sido um hábito cada vez mais precoce. Segundo levantamento do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (CISA), publicado em 2020, os adolescentes estão experimentando bebidas alcoólicas cada vez mais cedo. A idade média da primeira ingestão é de 12,5 anos. Entre estudantes de 13 e 15 anos de idade, 55% já consumiram bebida alcoólica, 23,8% ingeriram álcool no último mês e 21,4% já sofreram algum episódio de embriaguez.

Segundo o estudo, 43% dos jovens que relatam já ter ingerido álcool obtém a substância em festas; 17,8% com amigos; 9,4% com alguém da família; 3,8% em casa, sem permissão; 3,8% dando dinheiro para que alguém compre; e 1,6% com vendedores de rua.

Entre as motivações para o consumo, estão a pressão social e aceitação pelo grupo de amigos, o exemplo de pais e familiares, o comportamento típico adolescente de assumir riscos e a percepção equivocada de que é normal beber com frequência e em quantidades exageradas.

Outro estudo, lançado recentemente pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), aponta que 7 milhões de adolescentes abaixo dos 18 anos já fizeram uso do álcool pelo menos uma vez na vida, o que corresponde a 34% deste público no Brasil.

As consequências desse cenário, alerta a vice-presidente da Associação Brasileira de Estudos sobre o Álcool e outras Drogas (Abead), Alessandra Diehl, são preocupantes. “Pesquisas apontam que quanto mais cedo se começa a usar álcool, maiores as chances de se desenvolver o alcoolismo na vida adulta”, observa a especialista, que ressalta a lucratividade envolvida na indústria do álcool.

“Uma verba milionária é voltada para propagandas que atingem em cheio adolescentes, especialmente na promoção de esportes e programas destinados a esse público. Campanhas de marcas de cervejas, por exemplo, têm grande influência entre os mais jovens”, comenta, ao lamentar que a legislação no Brasil ainda não impeça a publicidade de álcool direcionada a crianças e adolescentes.

Apesar de lícita, consequências podem ser letais

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), droga é toda e qualquer substância não produzida pelo organismo e que, ao ser ingerida, modifica uma ou mais de suas funções. Essas drogas alteram aspectos físicos, emocionais e relacionados ao pensamento e ao comportamento. A OMS considera que a dependência em drogas lícitas ou ilícitas é uma doença.

O uso indevido de substâncias como álcool, cigarro, crack e cocaína é um problema de saúde pública de ordem internacional que preocupa nações do mundo inteiro, pois afeta valores culturais, sociais, econômicos e políticos. Apesar de presente no nosso cotidiano de forma natural, sendo muito frequente em datas como o Carnaval e até festividades familiares, como Natal e Ano Novo, representa um enorme risco à saúde e à família do indivíduo.

A especialista explica que o alcoolismo é considerado uma doença crônica caracterizada justamente pelo consumo excessivo de álcool. Apesar de a droga ser considerada lícita, suas consequências podem ser letais. “Quem começa a beber na adolescência tem duas vezes mais chances de sofrer lesões não intencionais quando está sob influência do álcool”, destaca Dra. Alessandra.

Além disso, entre os jovens, os danos provocados podem ser tanto biológicos quanto sociais. Há a possibilidade de comprometimento do sistema nervoso, que ainda está em uma fase de desenvolvimento, além de relação com a queda no rendimento escolar, violência, acidentes de trânsito, sexo desprotegido e gravidez precoce e indesejada.

“Outra preocupação é o fato de que o álcool pode ser a porta de entrada para outras drogas. Por isso é tão importante que pais, autoridades de saúde e órgãos regulatórios atuem na prevenção do alcoolismo”, diz a médica.

Mulheres adultas têm consumido mais álcool no Brasil

O consumo de álcool em excesso também tem envolvido mais mulheres nos últimos anos, aponta a última Pesquisa Nacional de Saúde (PNS). De acordo com o levantamento, 17% das entrevistadas afirmaram terem bebido uma vez ou mais por semana em 2019. Trata-se de um índice 4,1 pontos percentuais acima do registrado em 2013. O resultado da PNS foi divulgado em 2020 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Conforme a Dra. Alessandra, essa tendência leva a uma série de preocupações, uma vez que as mulheres são mais vulneráveis aos efeitos do álcool no organismo do que os homens. Isso ocorre devido a características físicas e biológicas do corpo feminino.

“É o caso do menor volume de água corporal nas mulheres. Isso interfere na metabolização do álcool no estômago”, comenta ela, ao pontuar ainda que o contato do álcool com hormônios femininos – estrógenos e progesteronas – pode aumentar o dano hepático junto a esse público.

No caso das mulheres, o alcoolismo costuma ser uma morbidade secundária e não primária, como ocorre com os homens. A dependência pode vir em decorrência de transtornos psiquiátricos do humor, como mania e depressão, de ansiedade e de personalidade borderline.

Ao buscar ajuda, esse público pode lidar com sentimentos de culpa e medo, devido ao estigma de que a mulher não pode se intoxicar, e ainda com a falta de apoio do parceiro para começar o tratamento. “É comum ainda encontrarem um sistema de saúde com carências em relação a serviços especializados, voltados às necessidades dessas pacientes”, acrescenta Dra. Alessandra.

Em geral, as mulheres que apresentam alcoolismo têm um perfil parecido – baixa escolaridade, baixa autoestima, históricos de violência e/ou abuso sexual, conflitos familiares e vínculos afetivos enfraquecidos. Nesse contexto, o consumo do álcool, aponta a médica, pode estar relacionado ainda a um mecanismo para lidar com a timidez e ansiedade.

Como o álcool age no cérebro

De acordo com o Rafael Maksud, psiquiatra da Clínica Ame.C, especialista em Saúde Pública, Dependência Química e Psiquiatria Ambulatorial e Integrativa pelo Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e pelo Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB), o álcool é um depressor do sistema nervoso central, uma droga psicoativa que altera a percepção da pessoa, pois bloqueia a transmissão de mensagens dos receptores nervosos para o cérebro.

  1. “Quando a pessoa bebe, se sente relaxada, já que sua percepção diminui. No entanto, o consumo regular reduz os níveis de serotonina no cérebro, um dos neurotransmissores responsáveis pela sensação de prazer e bem-estar. Sendo assim, o álcool agrava a ansiedade e, principalmente, a depressão”, afirma o psiquiatra.

Monica Machado, psicóloga pela USP, fundadora da Clínica Ame.C, pós-graduada em Psicanálise e Saúde Mental pelo Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Albert Einstein, lembra que “o hábito de ‘beber socialmente’ coloca as pessoas em contato constante com o álcool, seja em ocasiões comemorativas e até eventos de trabalho. A grande armadilha é que o ‘beber socialmente’ pode evoluir para uma dependência”.

Hepatologista alerta para risco do álcool

O hepatologista Rafael Ximenes, que atende no centro clínico do Órion Complex, percebe aumento de demanda após feriados prolongados. “Depois de festas e feriados, aumenta a procura médica, seja de quem já consome álcool e piora, seja de quem bebe pouco e passa mal”. Ele ainda fala dos sinais imediatos do consumo de álcool. “Em um primeiro momento existem mudanças de comportamento, perdas de reflexo, as quais causam acidentes, e ainda violência”, detalha.

O médico explica que o consumo constante e exagerado das bebidas causa, a longo prazo, pancreatite, cirrose, lesões neurológicas e no coração, mas que no início elas não apresentam sinais. “Os sintomas só aparecem quando a doença já está grave. A pancreatite causa dor na parte superior da barriga e diarréia. A icterícia, que são os olhos e a pele amarelados, pode ser sinal de cirrose ou hepatite alcóolica”, exemplifica Rafael, citando que uma forma de prevenção é ir ao médico regularmente.

Ao contrário do que algumas pessoas pensam, não é o tipo da bebida que irá fazer mais ou menos mal, mas o seu consumo. “Dependendo da quantidade ingerida, a cerveja é mais leve, com menor teor alcóolico, mas as pessoas costumam beber mais”, ressalta Rafael Ximenes. “O recomendado é que as mulheres consumam no máximo sete doses por semana e os homens 14, sendo que uma dose equivale a uma lata de cerveja, 40 ml de destilado ou uma taça de vinho de 125 ml”, indica o hepatologista.

Fatores que podem desencadear a dependência alcoólica

Segundo os especialistas, alguns fatores que podem desencadear a dependência alcoólica são:

– Associar o álcool à diversão

– Beber em qualquer situação, seja um evento familiar ou de trabalho

– Ter histórico familiar de abuso do álcool

– Ter contato precoce com a bebida

– Ter problemas de saúde mental não administrados

Como identificar o alcoolismo

O metabolismo do álcool pelo organismo é feito principalmente pelo fígado, que remove cerca de 98% da substância do corpo humano. O restante é eliminado por rins, pulmão e pele.

E os sinais de embriaguez são bem conhecidos: euforia, alterações no comportamento, perda da timidez, emotividade exagerada e, em alguns casos, tendência à agressividade. “No entanto, em um quadro de alcoolismo, os sintomas e sinais são muito mais graves, e requerem atenção de amigos e familiares”, alerta Rafael Maksud.

Confira alguns sinais que indicam a hora de buscar ajuda:

Vontade de beber o tempo todo

A bebida alcoólica é uma substância química que atua no sistema nervoso central, gerando sensações de prazer, euforia e entorpecimento. “A pessoa que já tem inclinação para o álcool vai usar todo tipo de argumento para beber. A bebida se torna a solução quando se está triste, frustrado ou desanimado. Da mesma forma, qualquer motivo de alegria vira pretexto para fazer um brinde”, pontua a psicóloga Monica Machado.

Pior: com o aumento do consumo, a tendência é que a pessoa se torne mais resistente aos efeitos do álcool e tenha necessidade de beber cada vez mais.

Comprometimento no raciocínio

Pelo fato de atuar no sistema nervoso, é comum o álcool afetar a capacidade cognitiva. “Entre as drogas psicoativas ou psicotrópicas, ele é classificado como um depressor. Ao longo do tempo, o abuso do álcool pode causar cansaço físico e dificuldade de raciocínio. Confusão mental e até alucinações podem ocorrer em casos mais graves”, explica Rafael Maksud.

Danos ao organismo

O uso excessivo e prolongado do álcool pode irritar a mucosa estomacal, gerando gastrite. Essa confere muito desconforto, uma vez que causa ardência, queimação, dores de cabeça, entre outros sintomas.

Consequências mais graves são: o aumento da pressão arterial, problemas no coração e pâncreas, hepatite e cirrose. Distúrbios do sistema nervoso, como desatenção e tremedeira, também podem fazer parte do quadro. Já o fígado é um dos principais órgãos afetados, uma vez que ele armazena o glicogênio (a nossa reserva de glicose, que oferece energia aos animais, inclusive o humano) e o libera aos poucos para a corrente sanguínea.

“Além disso, a falta de bebida alcoólica pode causar a síndrome de abstinência, quando a concentração de álcool no sangue diminui e costuma gerar irritabilidade, ansiedade, taquicardia e suor em excesso (sudorese). Em casos extremos, pode provocar convulsões e até levar a óbito”, aponta o psiquiatra.

Neste contexto, o convívio social e familiar é afetado. “As pessoas deixam de querer estar com a pessoa que bebe excessivamente por temerem passar por uma situação desagradável ou pelo cansaço proporcionado pela convivência”, diz Monica Machado.

Segundo ela, é imprescindível buscar ajuda especializada. “O apoio de amigos e familiares é fundamental para a recuperação do alcoolismo, mas não é todo mundo que consegue ter estrutura emocional para lidar com a situação. Alguns vínculos afetivos, inclusive, podem se romper ou ficarem abalados em face deste problema”.

Como tratar o problema

O tratamento para alcoolismo pode ser buscado gratuitamente junto a Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD), grupos de Alcoólicos Anônimos e Al-Anon.

Esse último grupo consiste em uma associação de parentes e amigos dos alcoólicos, que compartilham experiências para solucionar problemas em comum. O Al-Anon abrange ainda o Alateen, formado por membros jovens, de 13 a 19 anos, que sofrem com o alcoolismo de familiares ou amigos.

Opções de tratamento gratuito

Alcoólicos Anônimos

O grupo de ajuda mútua é referência no apoio ao alcoólatra que quer parar de beber. Ninguém paga nada para participar de uma reunião e um dos grandes princípios é o sigilo. Presente no Brasil há 80 anos, o Alcoólicos Anônimos possui reuniões em quase todas as cidades do Brasil.

CAPS – AD

Os Centros de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas são unidades de saúde feitas para atender gratuitamente quem precisa tratar o alcoolismo. O acompanhamento é realizado através de médicos, psicólogos e terapeutas. Também há abertura para a participação da família.

Quando o alcoólatra mora em uma cidade que não tem o CAPS – AD, pode procurar um CAPS tradicional (que cuida da saúde mental) ou uma unidade básica de saúde de seu município para fazer o tratamento. Se houver necessidade de internação, é o próprio CAPS que faz a solicitação e encaminha o paciente para alguma das instituições associadas.

Com Assessorias

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