O colapso já começou e ninguém quer admitir. O Brasil bateu um recorde vergonhoso: quase meio milhão de afastamentos por transtornos mentais em 2024, um crescimento de 68% em relação ao ano anterior. No mundo, a Organização Mundial da Saúde (OMS), estima que a depressão e a ansiedade custam 1 trilhão de dólares por ano em produtividade. Empresas globais já sentem o impacto de um mercado exausto, mas seguem fingindo que o problema não existe. Só que agora, a omissão tem preço.
A partir de 26 de maio de 2025, entra em vigor a nova versão da Norma Regulamentadora nº 1 (NR–1), que aumenta a responsabilidade das empresas com a saúde dos trabalhadores. A principal mudança é que, além de riscos físicos, os empregadores passam a ser obrigados a olhar com atenção também para os riscos que afetam a saúde mental, como excesso de trabalho, pressão constante, assédio e conflitos no ambiente corporativo.
A atualização da NR–1 exige que as empresas cuidem da saúde mental de seus funcionários e aquelas que continuarem ignorando o óbvio pagarão com multas, processos e equipes adoecidas.
Transtornos mentais não são fraqueza e nem frescura. São uma epidemia que está dilacerando a economia global. Empresas que insistem em metas inatingíveis, jornadas insanas e assédio disfarçado de ‘cobrança saudável’ estão destruindo suas próprias bases e isso já tem consequência real: afastamentos, demissões silenciosas, baixa produtividade e um mercado de trabalho que opera no limite da exaustão”, afirma Ana Lisboa, psicanalista, advogada especialista em Direito do Trabalho e fundadora da UniAltis, a única universidade do Brasil 100% voltada para a saúde mental.
Segundo Lisboa, as empresas se acostumaram a tratar os funcionários como máquinas e agora estão surpresas porque as peças quebraram. “O que elas chamam de ‘falta de resiliência’ é, na verdade, um grito de socorro. O ‘mimimi’ é um sistema que esticou tanto o limite humano que agora paga o preço, só que a conta não chega apenas para os trabalhadores, ela chega para os próprios negócios, uma vez que uma equipe adoecida custa dinheiro. Um time emocionalmente esgotado, não gera lucro e um ambiente tóxico pode ser o fim de uma grande empresa”, aponta.
‘Burnout não é um acidente’, diz especialista
A psicanalista afirma que a saúde mental dos trabalhadores nunca foi prioridade e sempre foi um tema jogado para debaixo do tapete, tratado como algo individual. “Agora, virou obrigação legal. As empresas precisam provar que estão fazendo algo, ou vão sofrer penalidades. E mais, a questão real vai além das multas: quem não olhar para isso como uma mudança estrutural e profunda vai fracassar. Estamos falando de um modelo de trabalho falido, e insistir nele é escolher morrer”, diz Ana Lisboa.
De acordo com a especialista, não é coincidência que 64% dos afastamentos por transtornos mentais no Brasil sejam de mulheres. “A mesma sociedade que cobra produtividade máxima é a que paga menos para elas. A mesma que as sobrecarrega com trabalho doméstico, maternidade e cuidado emocional dos outros é a que as chama de frágeis quando adoecem. A sobrecarga feminina não é uma escolha. É uma sentença social que vem sendo cumprida em silêncio há décadas. Agora a fatura chegou”.
A pandemia acelerou esse processo, pois as empresas demitiram em massa, exigiram o dobro dos que ficaram e o “novo normal” não trouxe alívio, trouxe uma rotina de trabalho ainda mais insana, onde ser produtivo virou sinônimo de estar disponível 24h por dia. As empresas agora fingem surpresa porque os trabalhadores simplesmente não aguentam mais. O que elas chamam de “desengajamento” é, na verdade, uma renúncia coletiva a um modelo que destrói e adoece.
O burnout não é um acidente. É o resultado previsível de um sistema que exaure os trabalhadores e depois os descarta. Precisamos de empresas que criem ambientes emocionalmente sustentáveis, não apenas por obrigação, mas porque sem isso, o próprio mercado entra em colapso. Se saúde mental continuar sendo vista como um custo, então a empresa já está falida, só não percebeu ainda”, alerta Ana Lisboa.
Para finalizar, Lisboa alerta que os números não mentem, pois, a economia global já sente o impacto do adoecimento mental. “O Brasil, agora, transformou essa pauta em uma obrigação legal e as empresas precisam escolher: evoluir ou desmoronar junto com seus funcionários. Não existe mais espaço para a omissão. O mundo do trabalho está matando as pessoas e agora, pela primeira vez, quem permitiu isso vai começar a pagar a conta”.
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Atualização de norma trabalhista exige atenção das empresas à saúde mental
A mudança na NR–1 reforça que o cuidado com a saúde mental agora faz parte das obrigações legais dos empregadores, inclusive em casos preexistentes
A norma atualizada exige que as empresas tenham um plano para identificar e prevenir esses problemas, mesmo quando o trabalhador já apresente algum transtorno emocional, como ansiedade ou depressão. Isso não significa que a empresa vai ser responsabilizada pela origem da doença, mas se o ambiente de trabalho piorar o quadro do colaborador, a empresa pode sofrer sanções se não tomar providências.
Quando a forma de trabalho piora a saúde mental de alguém que já tem um problema, a empresa precisa responder por isso”, explica Ana Lisboa, advogada trabalhista, terapeuta e especialista em saúde mental no ambiente de trabalho. “Nesses casos, uma perícia vai determinar se o trabalho teve ou não influência no agravamento da situação”, completa.
Para se adequar à nova norma, as empresas devem investir em ações que ajudem a cuidar do bem-estar dos funcionários, como treinamentos de liderança, canais de escuta, apoio psicológico e um conjunto de regras internas para lidar com situações de estresse e conflito.
Do ponto de vista legal, se ficar comprovado que o ambiente de trabalho contribuiu para o agravamento de um quadro de saúde mental de um funcionário — como depressão, ansiedade ou burnout — a empresa pode ser responsabilizada civil, trabalhista e até administrativamente. Isso inclui o pagamento de indenizações por danos morais e materiais, além de multas e até a estabilidade no emprego, dependendo do caso.
A empresa pode ser obrigada ainda a arcar com tratamentos, afastamentos e também compensações financeiras pelo sofrimento causado”, pontua Ana Lisboa. Ainda segundo ela, a nova redação da norma reforça que a omissão do empregador diante de riscos psicossociais deixa de ser uma falha apenas ética ou de gestão e passa a ser uma infração com consequências legais e financeiras.