Moradora de Belford Roxo, na Baixada Fluminense, Edite Trigueiro da Silva, de 62 anos, que já teve um câncer de mama há 13 anos, voltou a sentir os sintomas da doença e resolveu procurar, em setembro de 2022, o Hospital Mário Kroeff, onde se tratou da primeira vez. A instituição filantrópica é especializada em Oncologia no bairro da Penha, zona norte do Rio de Janeiro, e atende 99% dos casos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) na capital. Somente em maio deste ano, após um exame histopatológico (ver imagem abaixo) no hospital, ela foi diagnosticada com um ‘tumor torácico de partes moles’.

Mesmo após passar por diversas unidades de saúde em seu município e no Rio de Janeiro, em uma via-crúcis que parecia interminável ao longo de meses, Edite não conseguiu concluir sequer o diagnóstico completo do câncer, já em estágio avançado, para receber o devido atendimento ou, ao menos, os devidos cuidados paliativos, com a dignidade que qualquer ser humano merece. Bastante debilitada e sem conseguir andar, ela voltou a sentir fortes dores e morreu nesta terça-feira (16/8), menos de 12 horas após dar entrada na emergência do Hospital Municipal de Belford Roxo, o Hospital do Joca.

Apesar de uma lei federal que completa 10 anos determinar que toda pessoa com câncer deve iniciar o tratamento em até dois meses após o diagnóstico, a chamada Lei dos 60 Dias‘, muitas pessoas que dependem do SUS, assim como Edite, morrem sem conseguir ter acesso ao tratamento oncológico. Um verdadeiro crime contra a saúde pública e uma realidade que se agrava na Baixada Fluminense, onde muitos municípios não possuem serviços de diagnóstico e tratamento para câncer.

Casos com desfecho trágico como o de Edite podem estar perto do fim. A Câmara dos Deputados aprovou esta semana o Projeto de Lei 2.952/2022, que institui a Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer no âmbito do SUS, de autoria da Comissão Especial sobre Ações de Combate ao Câncer. Agora, a proposta será encaminhada ao Senado Federal.

Para o presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC), Carlos Gil Ferreira, a iniciativa é um passo para garantir um ponto fundamental do SUS: a equidade.

“A reorganização do atendimento ao câncer no SUS pode ajudar a solucionar as inequidades que existem no próprio serviço público, bem como aproximá-lo do atendimento privado prestado hoje. Esperamos que o projeto avance e signifique um novo momento para a oncologia brasileira”, comentou.

Conheça a via-crúcis que paciente percorreu sem o devido atendimento

Hospital Mário Kroeff, na Penha, é filantrópico, com 99% dos atendimentos pelo SUS (Foto: Marco Antônio Rezende / Prefeitura do Rio)

Em 2010, Edite enfrentou um câncer de mama agressivo, mas conseguiu se curar, tratando-se pelo SUS no Hospital Mário Kroeff. Mas a recidiva veio forte em setembro de 2022 e abateu Edite, que era renal crônica, após perder um rim. Desde maio deste ano, após o diagnóstico inicial da doença, ela lutava para conseguir ser atendida por um oncologista.

Como a consulta na clínica da família mais próximo de sua casa com um especialista ocorreria somente em setembro, ela decidiu insistir na tentativa de ser atendida no hospital na Penha. Mas o Mário Kroeff, desta vez, negou a internação e pediu uma série de exames a ser realizados externamente, na rede particular.

Um deles era a imunohistoquímica, exame complexo com o qual poderiam fechar o diagnóstico e apontar o melhor tratamento no caso (saiba mais sobre o exame abaixo). Sem conseguir o procedimento pela rede pública com a urgência que Edite precisava, o marido Annagê Saulo Marques Filho, funcionário de Serviços Gerais há 27 anos na ABI – Associação Brasileira de Imprensa, teve que pagar R$ 400 na rede particular para obter resultado mais rápido, em 15 dias – o prazo termina esta semana.

Foi solicitado ainda que ela fizesse três tomografias computadorizadas, que a família conseguiu pelo SUS, no laboratório DImagem, conveniado ao município de Belford Roxo, no Shopping Grande Rio, em São João de Meriti, também na Baixada. Mas ao chegar lá na semana passada, mandaram-na voltar e realizar um exame de sangue, que poderia identificar se ela teria condições de receber o contraste das tomografias.

Família fazia o que podia com a paciente em casa

Na última segunda-feira, mesmo com os pés inchados e extrema dificuldade de andar, de volta mais uma vez ao Hospital Mário Kroeff, Edite fez o exame de sangue solicitado e teria que esperar mais 15 dias, quando, então com o resultado em mãos, poderia voltar para tentar fazer as tomografias. Mas horas depois do exame de sangue, ela passou mal, com fortes dores abdominais e no tórax.

Mais uma vez, o marido e a filha a levaram para o Hospital do Joca, onde foi levada para o CTI e teve que ser intubada. Na terça-feira, menos de 12 horas depois de dar entrada na emergência, antes mesmo do horário da visita, a família recebia a ligação do hospital informando que Edite sofreu uma parada cardiorrespiratória e não resistiu. O sepultamento ocorreu nesta quarta-feira (16), no Cemitério Municipal de Nova Iguaçu. 

“A gente achava que seria como das outras vezes, dariam remédio para dor na emergência e mandariam de volta para casa, mas dessa vez não deu”, lamentou Josiane, filha única de Edite.

Segundo ela, a mãe chegou a emagrecer mais de 15 quilos, sentia muitas dores e não conseguia mais andar sem ajuda. “Os pés estavam inchados e a gente é que fazia os curativos em casa”, contou, mostrando foto da ferida aberta no local do tumor – que preferimos não divulgar porque a cena é muito forte.

Paciente nem chegou a existir na fila do Sisreg

Para Josiane, ficou um misto de dor e revolta. Ela tinha esperanças de conseguir uma internação ou, ao menos, assistência domiciliar para a mãe, mas apesar de promessas feitas nos últimos dias pelas secretarias municipal e estadual de Saúde, nada foi feito.

Embora tenha passado por diversas unidades de saúde, em sua cidade e no Rio de Janeiro, a paciente não foi inserida no Sisreg, o Sistema de Regulação que administra a oferta de vagas na rede pública e determina o tempo de espera de cada paciente.

“A maior decepção é o hospital (Mário Kroeff) porque deixou esse tempo todo (de setembro de 2022 até maio de 2023) para dar o resultado de uma biópsia. Mas o médico só foi ver em 24 de julho, e o caso já estava super agressivo”, contou.

Em relação à Clínica da Família, ela também desabafa. “Você fica decepcionada porque ninguém sabe como tá a pessoa que tá procurando um oncologista para receber uma consulta. Às vezes você pode esperar para hoje, mas não pode esperar até amanhã e eles tratam desse jeito”, lamentou.

Município do Rio diz que responsabilidade é de Belford Roxo

Procurada sobre o Hospital Mário Kröeff, que é mantido basicamente com recursos repassados pelo município do Rio, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) informou que “trata-se de uma unidade filantrópica, com direção própria e que destina apenas uma parte de suas vagas de oncologia e alguns serviços especializados para contratualização do SUS. As demais vagas são geridas pela unidade por critérios próprios”.
A SMS-Rio afirmou ainda que “cada município é responsável pela assistência em saúde de seus residentes, assim como pelo encaminhamento – via Sisreg do respectivo município ou via Sistema Estadual de Regulação (SER) – para serviços especializados e de alta complexidade, como oncologia”.
Portanto, segundo a Secretaria, “posicionamentos sobre o caso da sra. Edite, bem como encaminhamentos, exames, atendimento na unidade de atenção básica, entre outras informações, devem ser solicitados à Prefeitura de Belford Roxo”.
A Redação já solicitou e aguarda informações sobre o caso da Ouvidoria do hospital e também da Secretaria Municipal de Saúde de Belford Roxo.

Programa nacional de navegação da pessoa com câncer

Situações como esta poderiam ser evitadas com o Programa Nacional de Navegação da Pessoa com Diagnóstico de Câncer, previsto na Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer no SUS.

Esta parte do projeto determina um passo a passo para o paciente em todas as etapas: do diagnóstico ao tratamento do câncer, desde o momento da suspeita da doença. A expectativa, segundo a Sboc, é que isso possa agilizar o atendimento.

Na nova Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer no SUS, será mantido pelo poder público um sistema de dados com o registro de suspeitas e confirmações de casos de câncer.

O formulário virtual também irá arquivar os detalhes do processo de assistência, com o objetivo de facilitar a supervisão eficaz da execução da política nacional. No sistema, os pacientes também poderão consultar suas posições nas filas de espera.

Um marco na luta contra a doença

O intuito do projeto de lei que será votado no Senado Federal é que, uma vez promulgado, as Comissões Intergestoras do SUS pactuem as responsabilidades dos entes federativos nas linhas de cuidado ao câncer que compõem a Política Nacional.

Serão levadas em consideração características demográficas e epidemiológicos e o desenvolvimento econômico-financeiro de cada parte – hoje, boa parte dos atendimentos oncológicos se concentra na Região Sudeste.

Na avaliação do deputado federal Weliton Prado, presidente da Comissão Especial sobre Ações de Combate ao Câncer da Câmara, o projeto é um marco na luta contra a doença, que já é a mais letal em muitas cidades do Brasil.

O colegiado convocou um seminário, em São Paulo, para discutir o tema. O objetivo é colher informações que possam contribuir no estímulo ao conhecimento e permitir a conscientização quanto ao combate ao câncer no Brasil.

A SBOC – que desde o início da legislatura tem participado de diversas audiências públicas da Comissão – é uma das entidades convidadas a participar do encontro, que acontece no dia 18 de agosto, às 10h.

O que é a imuno-histoquímica?

O exame complexo que Edite teve que pagar na rede particular para tentar fechar o diagnóstico de câncer, a imuno-histoquímica. passou a ser oferecida no recém-inaugurado Rio Imagem da Baixada.

O exame permite a detecção de antígenos específicos e imunofenotipagem de tecidos ou agentes infecciosos. É um exame muito útil na avaliação confirmatória de um determinado diagnóstico, podendo ser utilizado também na avaliação prognóstica de pacientes, especialmente na rotina oncológica.

Por meio dele, nos casos de câncer de mama, por exemplo, “é possível definir o perfil molecular tumoral, ou seja, determinar o tipo de mutação genética e as proteínas expressas, possibilitando assim uma conduta terapêutica personalizada”, como informa a Diagnósticos do Brasil.

Segundo a Citoclin, o exame imunohistoquímico é necessário “quando o diagnóstico anatomopatológico microscópico não é suficiente para conclusão diagnóstica, auxiliando o patologista na identificação da histogênese (origem) de uma neoplasia indiferenciada, sítio primário de uma metástase ou na subclassificação de linfomas, sarcomas e neoplasias pediátricas, por exemplo”.

Com informações da Sboc

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