“Por que Deus permite que as mães vão se embora? Mãe não tem limite, é tempo sem hora, luz que não se apaga quando sopra o vento e chuva desaba, veludo escondido na pele enrugada, água pura, ar puro, puro pensamento. Morrer acontece com o que é breve e passa sem deixar vestígio. Mãe, na sua graça, é eternidade. Por que Deus se lembra – mistério profundo – de tirá-la um dia? Fosse eu Rei do Mundo, baixava uma lei: Mãe não morre nunca, mãe ficará sempre junto de seu filho e ele, velho embora, será pequenino feito grão de milho”.
Os versos de Carlos Drummond de Andrade tocam fundo em quem – assim como eu – perdeu a mãe. E o sentimento de desolação e saudade se tornam mais fortes quando se aproxima o feriado do Dia dos Mortos, quando as famílias homenageiam seus mortos. E foi depois de perder sua mãe para a Covid-19 que o psicanalista e professor Christian Dunker resolveu se aprofundar nos estudos sobre uma das piores dores humanas, resultando num verdadeiro tratado científico sobre o tema.
Com 480 páginas, ‘Lutos finitos e infinitos’ é resultado de uma imersão teórica e pessoal do psicanalista no assunto e apresenta uma leitura sensível e humanizadora. Para além de seu processo individual, Dunker buscou contemplar o coletivo. E não se furtou a manifestar sua revolta com o descaso com as vidas humanas, praticado durante o (des) governo Bolsonaro, que levou o Brasil a perder mais de 700 mil vidas.
“Escrevo este livro atravessado pelo luto de minha mãe, mas também pela indignação com as mortes desnecessárias geradas pela política sanitária brasileira no enfrentamento à pandemia de covid-19 no Brasil”.
Segundo ele, ao longo da história, em diferentes tempos e sociedades, o luto tem sido um desafio literário, filosófico e ético. Mas ele é também uma tarefa prática que todos nós enfrentamos. Por isso, a obra não fala apenas do luto decorrente da morte de um ente querido.
“É o trabalho de recomposição, simbolização, subjetivação da perda, seja de uma pessoa ou situação, seja o luto pela perda de um amor, de uma época de uma experiência de corpo ou até mesmo a perda de algo tão concreto como um emprego e tão abstrato como um sonho”.
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‘Os lutos se comunicam. Eles se encadeiam ao limite da infinitude’
Certa vez, durante uma conferência, Dunker foi questionado em relação à escassez de materiais sobre o luto em português. Decidiu, então, reunir e traduzir os artigos científicos que já tinha publicado e desenvolver uma obra referência que abrangesse a magnitude do assunto, em aspecto teórico e humano.
Para isso, se debruçou sobre as principais teorias do luto, políticas do luto e lutos espectrais, depressão e melancolia. E ultrapassou as barreiras acadêmicas ao expor o seu campo pessoal, compartilhando as memórias do luto que viveu ao perder a mãe.
A obra aborda o luto ao longo da história, em diferentes tempos e sociedades, e apresenta um novo modelo fortemente baseado nas premissas teóricas da psicanálise, em exemplos clínicos entremeados com narrativas culturais e em memórias pessoais do autor.
Segundo o autor, o luto é um processo individual e solitário, mas também coletivo e modelo para o trabalho de criação. O trabalho do luto é um ciclo infinito, apesar de cada luto ter uma durabilidade única – sendo finita ou infinita – a interligação entre eles, seja própria do indivíduo ou de um coletivo, ocasiona com que essa roda continue girando.
Paradigma para a experiência humana da perda
Esta visão contemporânea do luto se fez a partir da análise e, posteriormente, da atualização das obras de filósofos como Sigmund Freud, Jacques Lacan e das próprias teorias da psicanálise. Além de apresentar um novo modelo de luto, Dunker aprofunda as concepções lacanianas de depressão e da melancolia por meio da distinção entre lutos finitos e lutos infinitos. E acrescenta uma nova patologia a suspensão do luto: o funcionamento bordeline.
“Ainda que Freud tenha descrito o luto como um processo individual, que tem começo, meio e fim, na prática psicanalítica vemos que os lutos se interligam com outros lutos, próprios e alheios, transformações passadas, mas também futuras, e dependem de processos coletivos. Eles se reúnem em séries e cadeias, rearticulando-se e se transformando em percursos finitos e infinitos, envolvendo reparações”, escreveu o professor.
Lutos finitos e infinitos aborda um dos temas mais relevantes da contemporaneidade de forma humana ao conectar as próprias memórias às premissas teóricas da psicanálise. Christian Dunker não produziu apenas um modelo inédito de luto, mas uma das maiores obras da modernidade que já é considerada uma referência.
Fortemente baseado nas premissas teóricas da psicanálise e em exemplos clínicos entremeados com narrativas culturais, ‘Lutos finitos e infinitos’ aborda um dos temas mais relevantes da contemporaneidade. “O luto não se resume à perda de uma pessoa amada, mas é uma espécie de paradigma genérico para pensar os destinos para a experiência humana da perda”, enfatiza o psicanalista.
SOBRE O AUTOR
Christian Ingo Lenz Dunker, nascido em 1966, pai de Mathias e Nathalia, é psicanalista e professor titular do departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP. É analista membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano e coordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Fez seu pós-doutorado na Manchester Metropolitan University, sendo professor convidado em mais de quinze universidades internacionais.
Duas vezes agraciado com o prêmio Jabuti, por Estrutura e constituição da clínica psicanalítica (Anablume, 2012) e Mal‑estar‑sofrimento e sintoma (Boitempo, 2016), publicou mais de uma centena de artigos científicos e capítulos de livro, além dos mais recentes Por que Lacan?(Zagodoni, 2017), Reinvenção da intimidade (Ubu, 2017) e O palhaço e o psicanalista (Planeta, 2019).
Colunista do jornal Zero Hora e do blog da Boitempo, participa incisivamente da vida política nacional, seja por meio de intervenções públicas, projetos sociais ou de seu canal no YouTube. Seus trabalhos sobre cultura de condomínio, patologias do social e lógicas de sofrimento têm extrapolado os muros da psicanálise e alcançado uma abrangência na filosofia política, na educação, na saúde pública e nas ciências da linguagem.
FICHA TÉCNICA
Título: Lutos finitos e infinitos
Autor: Christian Dunker
Editora: Selo Paidós | Editora Planeta
Páginas: 480
Preço: R$ 119,90
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