Mães SemNome: grupo fortalece mulheres dilaceradas pela dor do luto

Grupo gratuito para mães enlutadas, Mães SemNome acolhe e apoia há 12 anos milhares de mulheres que passam pela dor inominável de perder um filho

Grupo Mães SemNome oferece apoio terapêutico a mulheres que perderam seus filhos em diferentes situações (Fotos: Divulgação)
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O Mães SemNome é um grupo terapêutico gratuito de mútuo-apoio voltado para mulheres que passam pelo doloroso processo de perder um filho, em quaisquer circunstâncias – suicídio, homicídio, acidentes, doenças, desaparecimento, inclusive durante a gestação.

Criado em 2011, inicialmente apenas no Facebook, onde atingiu rapidamente cerca de 23 mil seguidores, teve diversos desdobramentos como eventos, documentários inspirados na iniciativa, palestras e atendimento a milhares de mulheres.

Também sou mãe enlutada, fui mãe atípica e, na época, não tive nenhum tipo de acolhimento e apoio psicológico durante a internação hospitalar do meu filho, em UTI, por mais de um ano, nem após sua morte prematura, aos 4 anos de idade.

Hoje, tenho muito orgulho, de integrar, como psicóloga clínica, esse projeto tão importante que ocupa o vácuo deixado pelo poder público no atendimento a mulheres vulnerabilizadas pela perda de seus filhos, muitas das quais não contam com uma rede de apoio durante esse difícil processo.

O luto materno e o trabalho do Mães SemNome é o tema da coluna de hoje, que traz uma entrevista com a sua fundadora do grupo, Márcia Noleto, uma mãe que decidiu transformar seu luto em luta e já ajudou milhares de outras mães em 12 anos.

Mães SemNome, com a psicóloga e jornalista Verônica Coutinho (à dir.), coordenadora auxiliar do grupo e colunista de ViDA & Ação (Foto: Divulgação)

Entrevista – Márcia Noleto – Fundadora do Grupo Mães SemNome

ViDA e Ação: A dor do luto materno é uma das maiores dores a que um ser humano pode ser submetido. Como é o trabalho do Mães SemNome?

Márcia Noleto: Atendemos mães que perderam filhos por suicídio, homicídio, acidentes, doenças, desaparecimento. O trauma está presente em quase todos esses casos e é um divisor de águas na história dessas mulheres. Uma parte nossa morre junto com os filhos, há uma perda de sentido na vida.

Paralelo a isso, na sociedade brasileira, o luto é um tema tabu, pouco discutido nas conversas em família, nas escolas, não há políticas públicas voltadas para mães enlutadas. Falar sobre a morte é ter que se dar conta da sua própria finitude. Por não falarmos no assunto, fica mais difícil compreender a complexidade do processo e as formas de cuidar de quem o sofre.

Muitas mães, além da dor profunda da perda, precisam lidar com a solidão. Não querem ser um peso para os outros, se sentem habitantes de outro planeta, têm prioridades completamente diversas das que tinham antes.

E, mais do que tudo: precisam falar sobre seus filhos que partiram, contar suas histórias, mas não encontram eco. Entrar em contato com as memórias da vida partilhada com o filho que se foi é poder manter viva a chama de amor que as faz continuar vivas.

Costumo dizer, em aulas e palestras, que a clínica do luto é a clínica da paciência. Precisamos ouvi-las contar suas histórias e repeti-las, sessão após sessão, até que chega o dia em que cansam de se escutarem falar sobre o filho e começam a falar de si próprias, da sua trajetória antes e depois da perda dos filhos.

ViDA e Ação: Qual foi a inspiração para o surgimento do grupo e por que “Mães SemNome”?

Márcia Noleto: Em 2011, perdi minha filha primogênita, de 20 anos, em um acidente de helicóptero. Fiquei destruída. Ao buscar caminhos para minimizar minha dor, comecei a procurar outras mulheres que passaram por experiências similares a fim de encontrar um caminho. E nunca mais parei. Um ano após o acidente, reuni um grupo significativo de mães enlutadas em torno da formação deste grupo. SemNome foi o adjetivo que escolhi para essas mulheres.

A justificativa  foi a de que a história não conseguiu dar um “nome” para a dor da perda de um filho. Se procurarmos no dicionário, temos as viúvas, para mulheres que perderam seus cônjuges, e órfãs para mulheres que perderam seus pais. Mas, não há um nome para a dor de mulheres que perderam seus filhos. Quando cunhei esse termo, não podia imaginar que ele se tornaria uma referência em textos sobre perdas, nem tampouco que inúmeras mães me procurariam dizendo: “sou uma mãe “semnome”.

ViDA e Ação: Ser mãe enlutada é um diferencial para atender mulheres que passam por esse processo?

Márcia Noleto: Na dissertação de minha tese de mestrado abordei esse tema. Pela minha experiência clínica, respondo que sim. Como disse anteriormente, mulheres que passam por esse processo singular e tão doloroso, muitas vezes, relatam estar eu outro planeta, falam uma “linguagem” particular, de difícil compreensão para quem não esteve neste lugar. Não quero dizer com isso que psicoterapeutas não enlutadas não podem fazer um bom trabalho, mas para fazê-lo é necessário investir em qualificação especializada. Por isso,  a C-FEN oferece essa especialização.

Além de oferecermos formação para psicólogos que queiram trabalhar com luto materno, realizamos consultoria para instituições, como Organizações Não Governamentais (ONGs), hospitais e escolas, que têm necessidade de qualificar profissionais para atenderem diretamente ao público  e, também,  nas quais tenham ocorrido casos como suicídios  ou homicídios (ataques  a alunos  de instituições de ensino, por exemplo), visando  qualificar  equipes multidisciplinares para lidarem com essas situações.

Uma palavra mal empregada pode colocar tudo a perder. Recebi, neste meu longo trajeto no manejo clínico, muitas mulheres que já tinham passado por várias psicoterapeutas e não se sentiam acolhidas e apoiadas no seu processo.

ViDA e Ação: O Mães SemNome é um  grupo terapêutico. Quais são as suas características e objetivos principais?

Márcia Noleto: O  grupo é homogêneo (é integrado por pessoas com questões similares)  e aberto (as integrantes participam quando podem ou têm vontade).  Em um espaço seguro e acolhedor, mulheres que sofreram essa dor inominável, imensurável, têm a oportunidade de dar voz às suas experiências singulares e, juntas, tecerem uma rede de apoio, além de buscarem possibilidades de rearticulação com a vida.

Trabalhamos com a abordagem fenomenológica, trazendo temas para a reflexão conjunta e realizamos dinâmicas de grupo com o objetivo de ajudar essas mães a buscarem autossuporte nesse processo. Pertencimento, autocuidado, finitude, força, dor, amor são alguns dos temas que permeiam os encontros.

 

ViDA e Ação: O grupo ganhou visibilidade nacional. Como isso ocorreu?

Márcia Noleto: Após uma matéria veiculada no programa Fantástico, da TV Globo, no dia 9 de fevereiro de 2014, mulheres de vários estados do Brasil e de outros países passaram a me enviar mensagens, compartilhando suas histórias de perdas.

Em 2016, o Mães SemNome se transformou em Instituto. Quarenta alunos do Departamento de Direito da Fundação Getúlio Vargas, ao lado da apoiadora e novelista Gloria Perez, formalizaram seu estatuto e ajudaram a escrever a “Cartilha Jurídica do Luto”, um livro constituído a partir das experiências das próprias mães que foram à FGV para contar pessoalmente suas histórias.

Nele, em uma linguagem simples e direta, fez-se um mapeamento das principais dúvidas e orientações práticas sobre casos de falecimento, desaparecimento, questões funerárias, patrimoniais e sucessórias.

Com a novelista Gloria Perez, Márcia Noleto escreveu a ‘Cartilha Jurídica do Luto’ (Foto: Divulgação)
ViDA e Ação: O Mães SemNome também inspirou documentários. Pode contar mais a respeito?

O grupo inspirou a produção do curta-metragem “Mães SemNome”, de autoria do jornalista Bruno Dias, selecionado, em 2017, pelo “Whatashort Independent International Film Festival” e do documentário “O luto não morre”, produzido por alunas de jornalismo do Centro Universitário FIAM FAAM.

Veja o trailer do curta Metragem Mães SemNome

Confira a versão completa do documentário Mães sem Nome

Assista o documentário ‘O Luto não Morre’

ViDA e Ação: O grupo também tem uma atuação grande no Rio, uma cidade marcada pela violência. Pode detalhar essas ações?

Por meio do Padre Omar Raposo, Reitor do Santuário do Cristo Redentor, o Mães SemNome ganhou apoio da Arquidiocese do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, a partir dessa interação, o símbolo da cidade foi iluminado, durante três anos sucessivos, no Dia das Mães, com as cores do logotipo do “Instituto Mães Semnome”.

Durante todos esses anos missas foram organizadas nesta data, junto ao Cristo, reunindo pessoas vindas de vários estados do país. As mães, de mãos dadas, vestidas com a camisa oficial do Instituto, em círculo em volta do Cristo, faziam suas orações e depositavam rosas brancas na igreja do santuário para seus filhos mortos. Momentos emocionantes que até hoje são lembrados pelas mulheres que participaram dessa experiência única.

Muitas outras ações foram realizadas. O grupo realizou visitas à Escola Tasso da Silveira em Realengo, em solidariedade às mães das 13 crianças assassinadas no local, e proferiu palestras para policiais no Batalhão da Polícia Militar do Complexo do Alemão, na Cruz Vermelha e no Consulado da Argentina.

Também participou do programa “Ação Global”, da TV Globo, organizou um show beneficente no Teatro da Maison de France com grandes nomes da MPB, e foi tema de entrevistas para inúmeros programas de rádio e televisão.

Vida e Ação: Como acontecem os encontros do grupo?

Márcia Noleto: Atualmente, o grupo realiza dois encontros mensais, um presencial, na sede da C-Fen, Clínica e Cursos em Fenomenologia, que fundei e coordeno, em Copacabana, no Rio de Janeiro, e online, via Zoom, para possibilitar a participação de mães enlutadas de várias regiões do Brasil e moradoras do exterior. Durante a pandemia, o grupo intensificou este trabalho de forma online e atendeu, com a participação de diversas psicólogas, pacientes enlutados em decorrência da Covid-19.

Os encontros são coordenados por mim, com apoio das coordenadoras auxiliares Verônica Coutinho, psicóloga clínica (IBMR), formanda pelo Centro de Gestalt-Terapia Sandra Salomão – CGT; membro da Clínica e Cursos em Fenomenologia (C-FEN), também mãe enlutada, jornalista e colunista do ViDA e Ação (que realizou essa entrevista), e Alessandra Carneiro, psicóloga Clínica (IBMR) e gestalt-terapeuta em formação pelo Instituto de Psicologia Gestalt em Figura.

ViDA e Ação:  Como participar do grupo Mães SemNome?

Márcia Noleto: O único pré-requisito para participar dos encontros é realizar uma entrevista prévia com uma das psicólogas do projeto. O objetivo da entrevista é conhecer a história dessa mãe, saber se conta com uma rede de apoio, como está sua relação com familiares e amigos, o que espera do grupo, temas que gostaria de abordar nos encontros, entre outros.

Após essa etapa, ela é incluída nos dois grupos de Whatsapp – um no qual pode interagir com outras mães e outro pelo qual recebe comunicados oficiais do grupo, como links dos encontros online e agendas dos presenciais.

Para realizar essa entrevista, basta escrever sobre o interesse em participar do grupo nos comentários ou via mensagens – direct ou messenger nas redes sociais do Mães Instagram ou Facebook. Por meio das redes sociais também é possível ter acesso à agenda de encontros até o fim deste ano.

ViDA e Ação: Obrigada pela entrevista e parabéns pelo trabalho. Vamos colocar aqui as redes sociais do grupo para que mulheres que precisam desse apoio possam se inscrever e receber acolhimento e apoio!

Instagram: www.instagram.com/maessemnome2023

Facebook: WWW.facebook.com/maessemnomeaprendendoaviver

Quem é Márcia Noleto?

Fundadora do Mães SemNome, é psicóloga clínica (IBMR), Mestre em Filosofia (Uerj), tem especialização em Psicologia Clínica Fenomenológico-Hermenêutica (USU/Lato Sensu/Título de Especialista), formação Teórico-Prática em Psicoterapia no Instituto de Psicologia Fenomenologia Existencial do RJ (IFEN).

É professora do Núcleo de Clínica Ampliada Fenomenológica Existencial (NUCAFE) e do Instituto Dasein (SP); fundadora e coordenadora da C-FEN: Clínica e Cursos em Fenomenologia e atua como pesquisadora no Laboratório de Fenomenologia e Estudos em Psicologia Existencial – LAFEPE/UERJ.

Graduada em Comunicação Social pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso e em História e Literatura Francesa pela Université de Nancy II (França).

Artigos publicados:

O imensurável da experiência do luto materno – leia aqui

As enigmáticas expressões do homem moderno frente às pandemias – leia aqui

Publicações:

Cartilha Jurídica do Luto: orientações práticas e jurídicas aos familiares (FGV-RJ)

Capítulo livro “Revés de um parto” com Karina Fukumitso – Editora Summus; Livro “LUTOS” –  Editora Summus (no prelo)

Leia mais

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