Pela primeira vez uma pesquisa nacional mapeou a frequência com que brasileiros se sentem discriminados em atividades do dia a dia e quais são as razões atribuídas a essas situações de discriminação. A partir da aplicação da Escala de Discriminação Cotidiana, a pesquisa levantou dados sobre as experiências de discriminação em diferentes situações e evidenciou que raça é o principal fator de discriminação no país. Os dados são contundentes: 84% dos entrevistados que se identificam como pretos relataram já ter sofrido discriminação racial.
A escala dá sequência à série de pesquisas Mais Dados Mais Saúde, programa de inovação no levantamento de dados em saúde, desenvolvido por Vital Strategies e Umane, e que conta com a parceria técnica da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e apoio do Instituto Devive. Para esse módulo específico, o projeto também conta com parceria governamental do Ministério da Igualdade Racial.
10 situações que traçam a discriminação racial no Brasil
Para cada uma das situações listadas pelo estudo, os entrevistados poderiam marcar uma das seguintes opções: nunca, raramente, frequentemente, sempre. Ao considerar apenas as respostas “frequentemente” e “sempre”, observou-se que as experiências de discriminação foram mais prevalentes na população preta, com destaque para três situações nas quais aproximadamente 50% dos respondentes desse grupo indicaram ter vivenciado. São elas: “recebo um atendimento pior”; “sou tratado com menos gentileza” e “sou tratado com menos respeito”.
Sou tratado com menos gentileza que outras pessoas |
Sou tratado com menos respeito que outras pessoas |
Recebo um atendimento pior que outras pessoas em restaurantes e lojas |
Agem como se eu não fosse inteligente |
Agem como se tivessem medo de mim |
Acham que eu sou desonesto |
Agem como se fossem melhores que eu |
Sou xingado com palavrões e insultos |
Sou ameaçado ou assediado |
Sou seguido em lojas |
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Mais da metade da população preta (51,2%) relata ser tratada com menos gentileza, enquanto 44,9% dos pardos e 13,9% dos brancos reportam ter vivenciado a mesma situação. O mesmo padrão se repete em outras experiências: 49,5% dos pretos afirmam ser tratados com menos respeito, percepção compartilhada por 32,1% dos pardos e 9,7% dos brancos.
A discriminação também impacta o atendimento recebido no dia a dia: 57% dos pretos afirmam ser mais mal atendidos, enquanto isso é relatado por 28,6% dos pardos e 7,7% dos brancos. Entre os pardos, o segundo comportamento percebido mais frequentemente é “agem como se fossem melhores do que eu”, relatado por 37,4%. Essa também foi a situação de discriminação mais relatada por pessoas brancas, com 21,7% dizendo se sentir assim frequentemente ou sempre.
Enquanto 16,8% dos pretos e 20,2% dos pardos relatam que as pessoas agem como se tivessem medo deles, 5,1% dos brancos vivenciam essa situação. Da mesma forma, 16,6% dos pretos e 20,2% dos pardos afirmam ser vistos como desonestos, situação reportada por 5,9% da população branca. O comércio também reflete essa desigualdade no tratamento: 21,3% dos pretos relatam ser seguidos em lojas, enquanto 8,5% dos pardos e 8,5% dos brancos relatam essa situação.
Mulheres pretas são as que mais sofrem racismo
Quando perguntados sobre as razões atribuídas à experiência de discriminação, os respondentes podiam marcar mais de uma opção e as mais frequentes entre pretos e pardos foram: raça, educação ou renda, aparência física, ancestralidade ou local de origem. Dos entrevistados, 84% da população preta apontaram a raça como o principal motivo. Entre a população branca, foi mais frequente a experiência de discriminação por idade, gênero, altura e peso (tanto relacionados ao sobrepeso quanto à magreza).
O levantamento revelou que, além da raça, muitas vezes outros fatores se somam na percepção sobre as razões para discriminação. Essa abordagem demonstra como diferentes formas de desigualdade se combinam, afetando grupos de maneira complexa e multifacetada, ao considerar aspectos como raça, gênero, aparência e posição socioeconômica.
A análise das razões atribuídas à experiência de discriminação indica que pessoas pretas relatam mais razões concomitantes para a percepção de discriminação, com cerca de 70,9% do grupo de raça/cor preta atribuindo duas ou mais razões para a discriminação vivida. As mulheres pretas são o grupo que mais reportou duas ou mais razões (72%) para suas experiências de discriminação, seguidas pelos homens pretos (62,1%).
Impacto da discriminação racial na Saúde
Os resultados da pesquisa confirmam o racismo como um fator predominante de discriminação no país, impactando diretamente a vida da população preta e parda, especialmente mulheres pretas, que enfrentam uma sobreposição de discriminações por raça e gênero.
Um número crescente de pesquisas ao redor do mundo sugere que experiências de discriminação são uma forma de estresse psicossocial que afeta negativamente a saúde mental e física em diferentes grupos raciais e étnicos. No Brasil, a discriminação é reconhecidamente um dos fatores estruturantes das desvantagens econômicas, sociais e de saúde enfrentadas por grupos raciais socialmente vulnerabilizados”, avalia Janaína Calu, consultora em equidade racial e saúde da Vital Strategies.
Segundo ela, a aplicação da escala pela primeira vez em esfera nacional tem como objetivo gerar evidências e documentar a magnitude da discriminação sofrida no dia a dia pela população e informar ações de combate à sua ocorrência e de mitigação dos efeitos negativos na vida das pessoas negras, grupo mais afetado.
É fundamental que também seja considerado o fato de que os indivíduos frequentemente ocupam mais de uma posição socialmente desfavorecida e que essas podem interagir para moldar suas experiências. Por isso, a abordagem da interseccionalidade se faz central no processo de compreensão das dinâmicas de discriminação”, explica Janaína Calu.
Thais Junqueira, superintendente-geral da Umane, afirma que este novo estudo dá continuidade à condução de inquéritos populacionais com temas pertinentes à saúde pública e é uma oportunidade valiosa de contribuição à mensuração e ao levantamento de dados sobre a discriminação no Brasil. “Nosso objetivo é que as informações coletadas sirvam de subsídios para o debate público e para a construção e atualização de políticas públicas que promovam maior equidade no acesso a direitos pela população”.
‘Não há solução única para enfrentar o racismo institucional’
Para Pedro de Paula, diretor-executivo da Vital Strategies, a saúde pública tem potencial catalisador de mudanças para lidar com as discriminações no país. “O Sistema Único de Saúde (SUS) já demonstrou ser um grande redutor de desigualdades sociais. Dessa maneira, enfrentar grandes desafios estruturais, como a discriminação por raça, deve estar entre as prioridades também do setor de saúde. Portanto, gerar evidências sobre a discriminação significa incorporar mais dados a serem considerados ao avaliar a dimensão dos determinantes sociais e do racismo na saúde e informar políticas públicas que visam o combate das desigualdades”.
Os achados reforçam que não há solução única para enfrentar o racismo institucional e dependem de esforços conjuntos entre governo, profissionais de saúde, sociedade civil e instituições privadas para promover mudanças significativas no atendimento da população negra”, afirma Layla Pedreira Carvalho, diretora de Políticas de Ações Afirmativas do Ministério da Igualdade Racial.
Segundo ela, a pesquisa evidencia a “importância de fortalecer o monitoramento de práticas discriminatórias em diferentes dimensões da sociedade — inclusive no acesso e na qualidade das políticas públicas de saúde —, mapeando suas desigualdades e entendendo como elas são produzidas e reproduzidas na sociedade e no acesso às políticas públicas”.
Sobre o Mais Dados Mais Saúde
O Mais Dados Mais Saúde é um programa de inovação no levantamento de dados em saúde, realizado por Vital Strategies e Umane, com parceria técnica da UFPel e apoio do Instituto Devive e da Resolve to Save Lives. A iniciativa busca fortalecer políticas públicas mais equitativas e eficazes por meio da geração de dados que apoiem a tomada de decisões na gestão pública.
O programa foca em testar metodologias eficazes de coleta de dados e monitorar temas emergentes ou pouco explorados na área da saúde. A coleta foi feita por meio de questionário via internet. A pesquisa ouviu 2.458 pessoas no país entre agosto e setembro de 2024. Para dar precisão aos dados, considerando que a pesquisa é baseada em uma amostra da população, pesos amostrais foram criados a partir dos dados coletados pelo Censo 2022 e da Pesquisa Nacional de Saúde 2019.
A pesquisa Mais Dados Mais Saúde está disponível na íntegra no Observatório da Saúde Pública, da Umane, neste link aqui.