No dia em que o conflito entre Israel e Hamas completou um mês, em 6 de novembro, a Organização das Nações Unidas (ONU) manifestou sua preocupação com a intensificação do conflito que está abalando o mundo, sacudindo a região e, o que é mais trágico, destruindo milhares de vidas inocentes. “Ninguém está seguro”, disse o secretário-geral da ONU, António Guterres, em coletiva de imprensa na sede da organização, ao enfatizar as mortes de crianças inocentes. 

Gaza está se tornando um cemitério de crianças. Centenas de meninas e meninos estão sendo mortos ou feridos todos os dias. As imagens de sofrimento são de partir o coração e esmagar a alma. Mas precisamos encontrar uma maneira de nos apegarmos à nossa humanidade comum.  Penso nos civis de Gaza – a grande maioria mulheres e crianças – aterrorizados pelo bombardeio implacável”, destacou.

A Agência da ONU para os Refugiados Palestinos (UNRWA) informou que, em média, um menor é morto e dois são feridos a cada 10 minutos na Faixa de Gaza desde o início do conflito, em 7 de outubro. Dados divulgados nesta segunda-feira (6) pelo Ministério da Saúde de Gaza, controlado pelo Hamas, apontam mais de 10 mil mortes, sendo 4.104 menores de idades e 2.641 mulheres. O número de feridos desde 7 de outubro, quando começou a guerra, subiu para 25.408. Centenas ainda estão desaparecidas e podem estar sob os escombros.

Crianças palestinas são atendidas em hospital de Gaza, que está sob bombardeio de Israel (Foto: Ali Mahmoud/AP)

Operações terrestres atingem hospitais em Gaza

Segundo a ONU, as operações terrestres das Forças de Defesa de Israel e o bombardeio contínuo estão atingindo civis, hospitais, campos de refugiados, mesquitas, igrejas e instalações da própria ONU – inclusive abrigos. Ao mesmo tempo, o Hamas e outros militantes usam civis como escudos humanos e continuam a lançar foguetes indiscriminadamente contra Israel. 
Guterres voltou a condenar os “abomináveis atos de terror perpetrados pelo Hamas em 7 de outubro” e reiterou o apelo pela libertação imediata, incondicional e segura dos reféns mantidos em Gaza. “Nada pode justificar a tortura, o assassinato, os ferimentos e o sequestro deliberados de civis. A proteção dos civis deve ser primordial”, destacou.
Para o secretário-geral da ONU, a escalada precisa parar imediatamente. “A cabeça fria e os esforços diplomáticos devem prevalecer. O discurso de ódio e as ações provocativas devem cessar”, disse. “Precisamos agir agora para encontrar uma saída para esse beco sem saída de destruição brutal, terrível e agonizante. Para ajudar a acabar com a dor e o sofrimento. Ajudar a curar os feridos. E para ajudar a pavimentar o caminho para a paz, para uma solução de dois estados com israelenses e palestinos vivendo em paz e segurança”, disse o secretário-geral da ONU.  
O secretário-geral da ONU, António Guterres, em coletiva de imprensa sobre a escalada da violência no Oriente Médio, realizada na sede das Nações Unidas em Nova Iorque em 6 de novembro de 2023.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, na sede das Nações Unidas em Nova Iorque (Foto: Mark Garten/ONU)

Violações das leis humanitárias, antissemitismo e fanatismo antimuçulmano

O secretário-geral da ONU se disse “profundamente preocupado com as claras violações das leis humanitárias internacionais” perpetradas por Israel na Faixa de Gaza, como o mundo vem testemunhando. “Nenhuma parte em um conflito armado está acima do direito internacional humanitário”.

Homem palestino carrega menina ferida no local dos ataques israelenses no sul da Faixa de Gaza em 14 de outubro de 2023 (Foto: Reuters/Yasser Qudih)

Ele também se manifestou seriamente preocupado com o aumento da violência e a expansão do conflito.  “A Cisjordânia ocupada, incluindo Jerusalém Oriental, está em um ponto de ebulição.  Também não podemos nos esquecer da importância de abordar os riscos de o conflito se espalhar pela região do Oriente Médio. Já estamos testemunhando uma espiral de escalada do Líbano e da Síria para o Iraque e o Iêmen.   

O aumento do antissemitismo e do fanatismo antimuçulmano também é preocupante. “As comunidades judaicas e muçulmanas em muitas partes do mundo estão em alerta máximo, temendo por sua segurança pessoal.  As emoções estão à flor da pele. As tensões estão em alta”.   

Apelo pelo cessar-fogo humanitário imediato

Abrigo de palestinos na Faixa de Gaza (Foto Mohammed Talatene / Reuters via Agência Brasil)

Guterres também voltou a apelar por um cessar-fogo urgente na Faixa de Gaza. Segundo ele, a catástrofe que se desenrola torna a necessidade de um cessar-fogo humanitário mais urgente a cada hora que passa. As partes envolvidas no conflito – e, de fato, a comunidade internacional – enfrentam uma responsabilidade imediata e fundamental: interromper o sofrimento coletivo desumano e expandir drasticamente a ajuda humanitária a Gaza. 

“O caminho a seguir é claro: um cessar-fogo humanitário. Agora. Todas as partes devem respeitar todas as suas obrigações de acordo com o direito internacional humanitário. Agora. Isso significa a libertação incondicional dos reféns em Gaza. Agora. A proteção de civis, hospitais, instalações da ONU, abrigos e escolas. Agora. Mais alimentos, mais água, mais medicamentos e, é claro, combustível – entrando em Gaza com segurança, rapidez e na escala necessária. Agora. Acesso irrestrito para entregar suprimentos a todas as pessoas necessitadas em Gaza. Agora. E o fim do uso de civis como escudos humanos. Agora. Nenhum desses apelos deve ser condicionado aos outros. E para tudo isso, precisamos de mais financiamento – agora”, apelou.  

No dia 6, as Nações Unidas e seus parceiros lançaram um apelo humanitário de US$ 1,2 bilhão para ajudar 2,7 milhões de pessoas – ou seja, toda a população da Faixa de Gaza e meio milhão de palestinos na Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental.

Ele lembrou que alguma ajuda que salva vidas está chegando a Gaza pelo Egito, através da passagem de Rafah. Mas a assistência que chega aos poucos não atende ao oceano de necessidades. Segundo ele, a passagem de Rafah sozinha não tem capacidade para processar caminhões de ajuda na escala necessária e a previsão é que caminhões carregados de produtos essenciais ainda fiquem retidos.

Guterres lembrou que pouco mais de 400 caminhões entraram em Gaza nas últimas duas semanas, em comparação com 500 por dia antes do conflito. E, o que é mais importante, isso não inclui o combustível. “Sem combustível, bebês recém-nascidos em incubadoras e pacientes com suporte à vida morrerão. A água não pode ser bombeada ou purificada. O esgoto bruto poderá em breve começar a jorrar nas ruas, espalhando ainda mais as doenças”.

Homenagem a jovem com distrofia muscular entre os 89 mortos da ONU

Ele também se solidarizou com as famílias de 89 trabalhadores da Agência da ONU para os Refugiados Palestinos (UNRWA) que foram mortos em Gaza – muitos deles junto com membros de suas famílias. Entre eles estão professores, diretores de escolas, médicos, engenheiros, guardas, equipe de apoio. “Mais trabalhadores humanitários das Nações Unidas foram mortos do que em qualquer período comparável na história de nossa Organização, comentou.

Guterres também lembrou o caso da jovem Mai, que não deixou que sua distrofia muscular ou sua cadeira de rodas limitassem seus sonhos. “Ela era uma excelente aluna, tornou-se desenvolvedora de software e dedicou suas habilidades ao trabalho com tecnologia da informação para a UNRWA. Sinto-me profundamente inspirado por seu exemplo.

Ele falou ainda sobre mortes de jornalistas na cobertura do conflito. “Segundo informações, mais jornalistas foram mortos em um período de quatro semanas do que em qualquer conflito em pelo menos três décadas. Saúdo todos aqueles e aquelas que continuam seu trabalho de salvar vidas, apesar dos enormes desafios e riscos”.

Libertação de reféns do Hamas para resolver os desafios

Faixa de Gaza (Foto Ibraheem Abu Mustafa / Reuters via Agência Brasil)

O secretário-geral da ONU também lembrou os foram torturados e mortos em Israel em 7 de outubro e nos reféns – sequestrados de suas casas, suas famílias e seus amigos enquanto simplesmente viviam suas vidas. Ele contou que há dez dias, se encontrou com alguns dos familiares desses reféns.” Ouvi suas histórias, senti sua angústia e fiquei profundamente comovido com sua compaixão.  Jamais desistirei de trabalhar pela libertação imediata deles.  Isso é essencial por si só é fundamental para resolver muitos outros desafios”, completou.  

Segundo Guterres, uma mãe compartilhou, de forma comovente, sua desolação pelo filho sequestrado, Hersh. Mesmo em seu total desespero, ela se apresentou ao mundo fora do Conselho de Segurança da ONU sobre o enfrentamento do ódio.  “Quando você só fica indignado quando os bebês de um lado são mortos, então sua bússola moral está quebrada e sua humanidade está quebrada. Em uma competição de dor, nunca há um vencedor”. 

Palavra de Especialista

30 dias de terror em Gaza

Por João Amorim (*)

Faixa de Gaza (Foto Ibraheem Abu Mustafa / Reuters via Agência Brasil)

Recentemente alcançamos a triste data de 30 dias de guerra na Faixa de Gaza. Dias de um conflito desproporcional, entre uma das mais bem treinadas e letais forças de defesa do planeta, contra a população civil da Faixa de Gaza, em retaliação ao ataque do grupo armado Hamas, ocorrido em 07/10.

Por mais que os ataques do Hamas devam ser condenados, e a morte e o sequestro de civis inocentes, de diversas nacionalidades, imponham o repúdio veemente a este ato, com o devido ultimato para a libertação dos reféns, vivos e em segurança, um imperativo moral a ser cumprido não apenas pela população israelense, mas também por todas as lideranças mundiais, é inegável que o conflito, nos mais de 30 dias de sua vigência, desdobrou em uma pavorosa sucessão de crimes de guerra, genocídio e limpeza étnica, perpetrados pelas Forças de Defesa Israelense, sem qualquer tipo de respeito ou consideração pela vida de milhões de civis inocentes.

O ímpeto na prioridade no salvamento dos reféns em poder do Hamas arrefece, e vem sendo superado pelos interesses geopolíticos do atual governo israelense, focados na limpeza étnica, genocídio e ocupação da Faixa de Gaza, com repercussões letais tanto na Cisjordânia quanto em territórios da Síria e do Líbano.

Há décadas as políticas israelenses em relação à população palestina em seu território e nos territórios ocupados se subsomem à definição legal internacional de Apartheid, e desde 2007 o governo Israelense transformou a Faixa de Gaza no que a ONU define como “a maior prisão a céu aberto do mundo”, que encarcera milhões de pessoas – que não cometeram crime algum, além do de terem nascido do lado “errado” do muro, com a nacionalidade “errada”, com a religião “errada” –, e os condena a uma vida de privação, como à que estiveram submetidos milhares de pessoas nos guetos nazistas europeus na II Guerra Mundial.
 

Há cerca de 17 anos, Israel controla integralmente o acesso e todas as fronteiras da Faixa de Gaza, estrangula a sua economia, limita a entrada de bens de primeira necessidade, raciona o fornecimento de água e eletricidade permitindo apenas pouco mais de cinco horas de seu fornecimento diariamente, dentre outras regras que estrangulam a vida – ou, melhor, semivida – da população da Faixa de Gaza, em sua esmagadora maioria mulheres e crianças, com pesada mão-de-ferro.
 

Essa situação serve de justificativa ou legitimação para ataques, como o ocorrido em 07/10? Não. Muito embora sirva para confrontar o processo de desumanização do povo palestino, em especial, e dos povos árabes e muçulmanos em geral, perpetrada por diversas potências internacionais, dentre as quais Israel e Estados Unidos da América (EUA), com o apoio de boa parte da mídia global, há décadas, o que faz com que o senso comum imediatamente associe toda e qualquer pessoa desses grupos como terroristas, criminosos ou pessoas descartáveis, num processo de desumanização e desconsideração da vida humana muito semelhante ao que ocorreu com diversos povos e pessoas na Alemanha da década de 1930.
 

A renitente recusa do Israel em um cessar-fogo, assim como sua negativa em fornecer gêneros de primeira necessidade, ou estabelecer corredores humanitários, oficialmente declarada como estratégia de guerra, constituem os dois primeiros de uma lista de crimes de guerra já perpetrados pelas suas forças de segurança e seu governo.
 

Além disso, revela também que os objetivos militares de Israel na Faixa de Gaza, assim como simultaneamente em regiões do sul do Líbano e da Síria, extrapolam completamente o argumento, ou desculpa, do resgate dos reféns. Aliás, quase ninguém mais fala sobre eles, além dos seus familiares angustiados.
 

Em seu discurso na abertura da Assembleia Geral da ONU deste ano, o primeiro-ministro israelense anunciou que seu governo havia iniciado um projeto ambicioso de reconfiguração para um “novo” Oriente Médio – em alinhamento com os interesses estadunidenses –, com a celebração de acordos bilaterais com diversos países árabes, os mais recentes com Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Marrocos e Sudão (os chamados Acordos Abraão, ou Abraham Accords), de 2020, com o auxílio do governo Trump, e que esperava que Joe Biden o auxiliasse a consolidar formalmente as relações com a Arábia Saudita.

Tais acordos permitiriam a formação de um “corredor” de fornecimento de petróleo e gás natural, além de se constituir em uma nova rota comercial e tecnológica – claramente em oposição ao projeto chinês da Nova Rota da Seda –, viabilizando, dentre outras coisas, o fornecimento de gás natural e petróleo para a Europa e, consequentemente, para os EUA.
 

Atos terroristas devem ser condenados em todas as suas formas. Mas, é imperativo, por dever de honestidade intelectual, que todo ato terrorista seja condenado e combatido, independente de quem o pratique. Principalmente quando acompanhado da prática de genocídio, ocupação ilegal de terras, deslocamento forçado ou crimes de guerra. Até porque a ninguém é dado o monopólio exclusivo da dor e do sofrimento.

(*) João Amorim é doutor e livre-docente em Direito Internacional, e professor de Direito Internacional da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

Atualizado em 9/11/23

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