O ambiente corporativo é propício ao adoecimento mental que pode levar ao suicídio. De um lado, as empresas, marcadas por características objetivas e com necessidades de redução de custos e de superar a concorrência. Na outra ponta, os trabalhadores, pressionados por agilidade e pela demonstração de resultados e sujeitos a precarização e a condições de trabalho nem sempre dignas e justas. Neste cenário, são cada vez mais comuns as informações sobre funcionários assediados, estressados, que sofrem bullying, com sintomas depressivos, com burnout e com comportamentos ofensivos.
Gestão humanizada é uma das soluções para enfrentar o problema
Primeiro, é importante saber que existem fatores de risco para o suicídio, que são os fatores predisponentes, ou seja, aqueles que se relacionam com as experiências vivenciadas ao longo do desenvolvimento humano, que propiciam sofrimento psíquico e referem-se a eventos que fragilizam e põem em risco a integridade física e mental dos indivíduos. E os fatores precipitantes, que seriam acontecimentos recentes e atuais que se manifestam como gatilho para as situações de risco. Transtornos mentais, perdas, traumas, presença de modelos suicidários e fatores sociodemográficos como dificuldades financeiras são alguns dos exemplos.
Coautora do livro “Gestão de Pessoas em Saúde” (Saraiva Uni; 2019), Patrícia Pousa analisa como a precarização das relações de trabalho interfere diretamente e de forma adversa na saúde mental dos trabalhadores. Segundo ela, os riscos psicossociais têm origem na maneira como o trabalho é planejado e organizado, bem como o ambiente, e também consideram os fatores individuais.
Além disso, sofrem influência do cenário econômico e social, o que pode impactar negativamente na qualidade de vida do trabalhador e aumentar o risco de adoecimento. Isso é alvo de estudos e orientações de soluções da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e da OMS (Organização Mundial da Saúde), que envolvem todo o repertório de atuação da sociedade.
Patrícia Pousa se dedica há 20 anos aos estudos para entendimento dessas questões envolvendo saúde mental e ambiente corporativo. “Trabalho e estudo a relação das pessoas no mercado de trabalho faz bastante tempo, minha carreira inteira. Essas relações dependem de muitas variáveis e elas passam por frequentes mudanças. Não é uma questão estanque. É uma questão viva”, diz ela.
Especialista em Gestão de Pessoas, Liderança e Educação Corporativa com ênfase em Saúde, consultora, palestrante, mentora, doutora em Mundo do Trabalho e Seus Impactos nos Trabalhadores, recentemente ela tem se dedicado aos estudos sobre como os fatores psicossociais se revelam como possíveis desencadeadores de adoecimento do trabalhador.
Uma das formas de evitar essa situação é o rastreamento desses fatores e uma gestão humanizada, que deve levar em conta e fazer uso de instrumentos e de questionários de rastreamento e de diagnóstico dos fatores psicossociais no trabalho. Dessa forma, é possível desenvolver ações preventivas e de promoção da saúde do trabalhador e de um ambiente (empresa) mais saudável.
Objetividade das empresas versus subjetividade dos trabalhadores
A especialista, que integra o time da Gombo, agência especializada em influência, engajamento e projetos especiais com business influencers, lista vários aspectos que se relacionam com situações de exigências enfrentadas ao longo das atividades laborais e podem vir a afetar o indivíduo.
Entre eles estão ritmo no trabalho (grau de autonomia que a pessoa tem acerca do seu tempo e de seu descanso); exigências emocionais; conflitos laborais; conflito entre trabalho e família; recompensa e reconhecimento; significado do trabalho; e satisfação no trabalho.
Ou seja: o conceito de fatores de riscos psicossociais no trabalho está relacionado à interação entre as características objetivas do trabalho e das empresas e as características e percepções subjetivas dos trabalhadores.
No cenário dos anos recentes, de crises políticas e econômicas mundiais e de enfrentamento da pandemia de covid-19, Patrícia conta que foi verificado no Brasil o aumento de desemprego, da informalidade e da precarização do trabalho, o que impacta diretamente a saúde dos trabalhadores.
“A instabilidade econômica, que traz insegurança, e as alterações nos modelos de trabalho, como a adoção do home office, que trouxe mudanças significativas na forma de atuação de muitos profissionais, têm potencial de afetar significativamente a saúde emocional do trabalhador. As alternativas de solução para essa questão é detectar e entender o problema e buscar auxílio profissional o quanto antes, evitando o agravamento”, explica Patrícia.
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Sem saúde mental, não haverá futuro do trabalho
Por Tatiana Pimenta*
Quando se trata de saúde mental, nossas empresas ainda vivem o modelo de gestão criado na era da revolução industrial. Com foco na produtividade a qualquer custo, o impacto nos trabalhadores nessa época nem era considerado nessa equação. Hoje evoluímos nos métodos de trabalho, nos organizamos em equipes colaborativas e entendemos a importância da criatividade e da inovação para as demandas do negócio na era digital. Mas pouco avançamos na pauta de saúde mental.
A cada semana, converso com pelo menos 10 empresas de grande porte. Quando pergunto a gestores e líderes de RH quais são os indicadores do FAP (Fator Acidentário de Prevenção) nos três últimos anos, ou quantos pedidos de afastamento por CID-F (código internacional de doenças relacionados aos transtornos mentais) a empresa teve no último ano, vejo quase invariavelmente a mesma cara de paisagem como resposta.
Se pergunto como eles avaliam a qualidade da saúde mental dos seus colaboradores, ouço com frequência que há alguns “casos isolados” de transtorno, mas que no geral tudo está bem. Insisto no questionamento e pergunto como eles medem o nível de engajamento dos funcionários e se acompanham os motivos pelos quais acontecem as demissões voluntárias. A resposta continua invariavelmente evasiva.
O resultado desse descaso com a saúde mental dos colaboradores volta na forma de presenteísmo, turnover, dias perdidos de trabalho e em um fenômeno conhecido como “quiet quitters”, em que funcionários só entregam o mínimo esperado para sua manutenção no emprego.
Como vamos mudar esse cenário?
As empresas que iniciam uma jornada de saúde mental começam normalmente pelo estágio de Conscientização, depois transformam o cuidado com os colaboradores em Estratégia. Poucas estão no estágio de Reinvenção, como conto logo abaixo.
Três estágios de maturidade dos programas de saúde mental
1º) Conscientização
A grande maioria das organizações, 95% delas, está no estágio inicial, de conscientização. Elas ainda não medem os KPIs que comentei acima, não sabem da importância de um programa estratégico estruturado e não imaginam o impacto positivo em aumento de produtividade e lucratividade que poderiam ter ao investir em saúde mental.
Por isso chamo essa etapa de conscientização. Algumas empresas podem até ir além do básico exigido pela lei trabalhista, e oferecem soluções isoladas, como uma palestra de conscientização no Setembro Amarelo, a concessão de benefício de aula de meditação ou pilates.
Costumo dizer que aqui há apenas gasto com ações desconectadas e nenhum investimento.
2º) Estratégia
Empresas que já estruturam programas estratégicos de saúde mental são 4,9% do total. O nível de conscientização e entendimento do tema está na agenda do C-Level e existem KPIs de negócio atrelados à saúde mental. As empresas têm programas claros, coordenados e consistentes no tema e calculam o ROI dos investimentos.
Aliás, é bom dizer que essas empresas recebem até 4 vezes o retorno do valor investido nos programas, além de melhorar sensivelmente a qualidade da saúde mental dos colaboradores, a segurança psicológica do ambiente de trabalho e consequentemente o aumento do engajamento e da produtividade das equipes.
3º) Reinvenção
Apenas cerca de 0,01% das empresas estão nesse estágio. Sabe aquelas empresas que investem em um Chief Happinness Office, pensam em novos modelos de trabalho e criam novos designers organizacionais?
Essas empresas estão reinventando a forma de liderar pessoas e colocam a saúde mental no centro dessa discussão. Elas saíram da gestão da era industrial lá do início do texto.
As organizações que chegam nesse estágio ainda não têm a receita do bolo, mas estão testando, medindo e ajustando. Elas verdadeiramente entenderam que saúde mental e futuro do trabalho caminham lado a lado e é a única forma sustentável de fazer negócios.
Meu sonho grande é que a maioria das empresas chegue a esse estágio no futuro próximo. Até porque, se as pessoas não tiverem saúde mental, não haverá futuro do trabalho.
*CEO e fundadora da Vittude, healthtech referência no desenvolvimento e gestão estratégica de programas de saúde mental para empresas. É formada em ciência da felicidade e aplicações da psicologia positiva para ambientes de trabalho. Atualmente, faz parte do time de LinkedIn Creators, host e idealizadora do podcast Terapeutizados e empreendedora premiada internacionalmente pela Cartier Women’s Initiative. Além de ter cursado MBA na Insper e finanças na IBMEC, Tatiana tem formação em Engenharia Civil pela UEL.
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