Em um emocionado desabafo que viralizou nas redes sociais esta semana, uma psicóloga de Belo Horizonte (MG) fala da difícil rotina assistindo pessoas entrarem e muitas vezes não saírem de uma unidade intensiva, com diagnóstico de Covid-19. Larissa Figueiredo, intensivista no Hospital Geral Felício Rocho, onde acompanha pacientes internados no CTI, compara o que tem vivido a uma ‘realidade paralela’ que poucos, infelizmente, ainda insistem em ignorar. Vejam o relato dela na íntegra:
“Tem dias que sinto que vivo em um universo paralelo.
Tem horas que espero o Sérgio Mallandro aparecer gritando “pegadinha do malandro”!
Acordo cedo, vou para o hospital.
Fulano está saturando mal, avisa o físio.
Médico avalia e lamenta: vamos ter que intubar.
Enfermagem começa uma operação de guerra para preparar o procedimento.
Tablet na mão.
Entro no box acompanhando o médico que calmamente e com muita segurança explica ao paciente que as medidas ventilatórias não invasivas foram insuficientes.
Por mais otimista que a equipe seja (e cá entre nós a minha é linda!), o paciente já sabe com o que está lidando: “deixa eu conversar com minha família antes?”.
Videochamada.
‘Anota aí a senha do banco, avisa nossa filha que amo ela demais. O carnê do plano funerário tá na segunda gaveta da minha mesa. Ainda não paguei a rematrícula da escola. Rezem por mim, serei intubado’.
Chegamos em um dos momentos mais difíceis.
O olhar aflito do paciente procura os nossos.
Sinto uma mão tocar a minha, a outra segura o médico: “não me deixem morrer”.
Prometemos fazer o nosso melhor.
Médico, fisio e enfermagem iniciam o procedimento.
Saio para ligar para a família.
Mais medo, muito choro, súplicas por notícias e por um mínimo contato com o paciente.
Os próximos dias serão eternos para essa família e decisivos para o paciente.
Pulmão inflamado, piora ventilatória.
Prona (vira de bruço).
Rim começa a parar.
Dialisa.
Coração está fraco.
Liga drogas.
Ufa, melhora ventilatória, vem a luta para despertar.
Foram muitos dias de sedação.
Confusão, agitação, piora ventilatória, seda de novo.
Tentamos mais uma vez, talvez algumas outras.
Não deu para extubar.
Comunica a família, traqueostomia.
Desmame da ventilação, paciente acorda sem saber onde está.
Família acompanha tudo a distância.
Participo de rezas, testemunho promessas, tento ser a ponte entre o lá fora e o aqui dentro.
Paciente melhora, sai da ventilação.
Enfim, depois de um mês teremos dias melhores! Para esse paciente.
Enquanto isso tudo acontecia, chegavam outros, iniciávamos todo o processo.
Uns evoluem com menos complicação.
Alguns morrem.
Outros tantos enfrentam saga parecida.
É assim.
Todo santo dia.
Nos bastidores, compartilhamos cansaço, vibramos com melhoras, lamentamos, e muito, vidas que perdemos.
Hora de ir para casa.
Bares lotados, confraternizações nos stories, abraços coletivos, microfones compartilhados, shoppings lotados!
Sextou!
É Natal!
É pela minha saúde mental!
Vem Mallandro, por favor!!
É agora!
Mas ele não vem… é tudo real.
Sabem os heróis lá de março?
Morreram de overdose.
Overdose de trabalho, de negacionismo, pela irresponsabilidade alheia.
Alguns morreram literalmente, com Covid.
Hoje na linha de frente só temos humanos.
Exaustos.
E também muito decepcionados com o que a ausência de coletividade tem nos causado.
Ainda dá tempo de mudar esse jogo.
Otimista que sou, acho que podemos!
Reflita!”
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