Cuidado! Seja tomando uma cerveja e confraternizando com amigos num quiosque à beira-mar, em frente a um hotel de luxo num dos bairros mais caros do Rio de Janeiro, seja na movimentada rodoviária da cidade, para pegar um ônibus e ver a família depois de uma jornada de treinamento no emprego novo, você pode ser confundido com algum bandido e acabar morto ou gravemente ferido.
Foi assim com dois médicos paulistas e um mineiro que morreram em outubro de 2023 porque um deles se parecia com um miliciano – um quarto médico conseguiu sobreviver após levar 14 tiros. Foi assim com o petroleiro que recebeu três tiros nesta terça-feira (12), disparados por um bandido que achou que ele poderia ser um policial disfarçado, e está em estado grave. Além da tentativa de homicídio, o acusado fez 16 pessoas de reféns dentro de um ônibus durante quase três horas – todos, felizmente, libertados sem ferimentos.
Parece roteiro de filme policial. Mas é vida real. E qualquer semelhança não é mera coincidência num estado que, infelizmente, está há décadas refém do crime organizado – seja do tráfico, seja da milícia. Há muito não se sabe quem é bandido, quem é mocinho no faroeste urbano do Rio. Ainda mais num dia em que – pasmem – dois policiais militares são flagrados comemorando o aniversário de um miliciano custodiado num hospital da zona oeste carioca. Com direito a bolo, vela e parabéns!
Tiros atingem baço, pulmão e coração da vítima
Na sempre movimentada Rodoviária do Rio, onde circulam mais de 30 mil pessoas por dia, Paulo Sérgio Lima, de 29 anos, disparou três tiros que acertaram Bruno Lima da Costa Soares, de 34 anos – outro passageiro foi atingido por estilhaços e atendido no local. Em seguida, embarcou no ônibus onde manteve 16 passageiros como reféns – entre eles, seis pessoas idosas e uma criança de colo. Sem nenhum ferimento, Paulo se entregou a policiais do Batalhão de Operações Especiais (Bope).
Já Bruno Lima da Costa Soares, de 34 anos, segue lutando pela vida. Ele sofreu graves perfurações por arma de fogo que atingiram pulmão, baço e coração e passou por longa e complexa intervenção cirúrgica no Hospital Municipal Souza Aguiar, no Centro do Rio, referência em atendimentos a poltraumatizados, vítimas da ‘guerra urbana’ e do trânsito letal nas estradas e avenidas da cidade.
Horas depois, foi transferido para o Instituto Nacional de Cardiologia (INC), em Laranjeiras, considerado referência para cirurgias cardíacas de alta complexidade, onde passaria por nova operação para retirada da bala alojada no coração, mas a operação não chegou a ser realizada. Na noite desta quarta-feira (13), ele foi transferido para o Hospital Samaritano, em Botafogo, zona sul do Rio. Considerado um dos mais caros da cidade, o hospital particular atende seu plano de saúde pela Petrobras. É o terceiro hospital em que ele é assistido, em menos de 24 horas.
Estudante de Engenharia Elétrica da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Bruno estava muito feliz desde que passou no concurso da Petrobras, em novembro passado. Ele se classificou em primeiro lugar entre cotistas negros para o cargo de operador de lastro. Iniciou o treinamento para atuar nas operações de manutenção e controle da estabilidade em plataformas de produção de petróleo e gás. Na tarde desta terça, Bruno iria pegar o ônibus para Juiz de Fora (MG), onde mora. Mas foi interceptado pelo bandido ao ser confundido com um policial à paisana.
Campanha de doação de sangue
Durante o atendimento no Souza Aguiar, Bruno precisou de várias transfusões para estancar a hemorragia. Ao todo, foram necessárias 12 bolsas de sangue. Para se ter ideia, geralmente, uma bolsa é suficiente para salvar quatro vidas. Ou seja, somente nas transfusões que o petroleiro precisou receber, foi usado volume de sangue que poderia salvar outras 47 pessoas.
No Souza Aguiar, o secretário municipal de Saúde, Daniel Soranz, falou que a equipe médica estava mobilizada para o caso e aproveitou para pedir doações de sangue para a reposição do estoque da unidade junto ao Hemorio, o principal hemocentro do estado, que fornece sangue e derivados para mais de 200 hospitais e unidades de saúde.
A viação Sampaio – dona do ônibus em que Bruno viajaria – e o Sindicato dos Petroleiros anunciaram ações para coleta de sangue. Em nota publicada no site, o Sindipetro pediu que petroleiros compareçam ao Hemorio para ajudar nas doações. O hemocentro fica na Rua Frei Caneca 8, no Centro, e funciona das 7h às 18h. Ao chegar ao banco de sangue, o doador deve informar o nome do paciente. “Vamos ajudar o petroleiro, a solidariedade neste momento pode salvar Bruno”, diz o texto.
À noite, o presidente da Petrobras Jean Paul Sartres informou pelo X (antigo Twitter) que Bruno foi transferido para o INC e informou que toda a assistência está sendo prestada ao empregado, além de pedir orações. “Nosso foco neste momento está em garantir o melhor atendimento ao nosso empregado. Ele foi estabilizado após passar por procedimentos cirúrgicos no Hospital Souza Aguiar, mas a situação continua grave”
Segundo ele, Bruno e sua família recebem suporte de uma equipe multidisciplinar da empresa – médicos, assistente social e gerente da Universidade Petrobras, onde o novo empregado ainda estava em formação. “Pedimos a energia positiva e as orações de todos e todas para que nosso recém-concursado, que entrou no nosso time em novembro do ano passado, se recupere plenamente e possa logo voltar a envergar o crachá Petrobras”, escreveu.
Clima de terror no ônibus: ‘parecia coisa de filme’, disse refém
Os médicos ortopedistas Marcos de Andrade Corsato, Perseu Ribeiro Almeida e Diego Ralf de Souza Bonfim estavam na cidade no início de outubro de 203 para um congresso científico no hotel em frente ao quiosque onde foram violentamente mortos.
O único que sobreviveu ao ataque foi Daniel Sonnewend Proença, de 32 anos. Ele levou 14 tiros, sendo dois de raspão, que provocaram 24 perfurações em seu corpo. Passou por uma cirurgia que durou quase 10 horas também num hospital do Sistema Único de Saúde (SUS), o Hospital Municipal Lourenço Jorge.
Acusado de integrar a milícia da zona oeste da cidade, Taillon de Alcântara Pereira Barbosa – com quem Dr Perseu foi confundido, o que teria sido o motivo para o crime bárbaro – foi preso semanas depois pela Polícia Federal junto com o pai, Dalmir Pereira Barbosa.
Sequestrador da rodoviária deveria usar tornozeleira eletrônica
Paulo Sérgio Lima – o ‘tomador de reféns’ da Rodoviária do Rio ou ‘elemento’, como é chamado pela polícia – já tinha duas passagens pela polícia no Rio de Janeiro, ambas por assalto a mão armada. Uma delas, coincidência ou não, ocorreu dentro de um ônibus na zona sul, onde roubou seis celulares de passageiros.
Ele havia sido preso em 2019 e condenado a 10 anos de reclusão por roubo, mas saiu do sistema penitenciário em março de 2022, em regime de progressão de pena. Passou a prisão domiciliar, pela qual deveria usar tornozeleira eletrônica – mas ao ser preso na rodoviária, ele não estava com o dispositivo.
Na 4ª DP (Praça da República), segundo o delegado Mário Andrade, Paulo Sérgio contou, informalmente, antes do seu depoimento oficial, que faz parte da facção criminosa que domina o Rio de Janeiro e atuava na região da Muzema, na zona oeste.
No final de semana passado, ele foi até a Rocinha, na zona sul, para acertar umas contas e teve uma “desavença” com um traficante local. Trocaram tiros e ele conseguiu acertar o outro bandido e fugiu, escondendo-se em alguns hotéis.
Ao delegado, ele disse ainda que, temendo ameaças do tráfico, resolveu fugir para Juiz de Fora, onde moraria sua mãe. Câmeras de segurança da rodoviária registraram o momento em que o sequestrador comprou a passagem do semileito em espécie no guichê da Viação Sampaio, a 40 minutos do embarque no ônibus, às 14h30.
“Ao efetuar o pagamento, Paulo tirou um saco de dinheiro e achou que aquilo ali chamou a atenção de algumas pessoas, que para ele seriam policiais”, afirmou o delegado Mário Andrade.
Na versão contada ao delegado, ele contou que embarcou e, já dentro do ônibus, passou a desconfiar que alguns passageiros também seriam policiais. Na partida, o ônibus teve uma falha mecânica, o motorista pediu auxílio e saiu do coletivo.
“Neste momento, Paulo achou que os supostos policiais iriam pegá-lo. Foi quando vieram passageiros, que estavam entrando no ônibus, ele achou que seriam policiais e fez menção de entregar a arma. Um se assustou e saiu correndo e Paulo efetuou os disparos, que atingiram Bruno”, prosseguiu o delegado.
Sequestrador já respondia por homicídio em MG
Ação desastrada da polícia em outros sequestros de ônibus no Rio
Apesar da vítima grave, a tragédia na Rodoviária do Rio por pouco não foi maior. Cercada por um batalhão de profissionais da imprensa, policiais que atuaram na ação conseguiram prender o acusado e levá-lo com vida para a delegacia. Sem disparar um único tiro, a operação, dessa vez, foi exitosa. Bem diferente de outras operações envolvendo reféns que terminaram em execução dos sequestradores – como os casos do ônibus 174 e do ônibus na Ponte Rio Niterói, em 20 de agosto de 2019.
No primeiro crime, retratado em um impactante documentário lançado em 2002, Sandro do Nascimento, sobrevivente da Chacina da Candelária, manteve, por quase quatro horas, 10 passageiros de reféns na Rua Jardim Botânico. Naquela tarde de 12 de junho de 2000, o sequestrador usou a professora Geise Firmo Gonçalves como escudo para sair do veículo e foi alvejado por um dos policiais do Bope, mas a bala acertou a refém.
Geise ainda levou mais três tiros do sequestrador e morreu no local. Nascimento foi colocado em um camburão, onde morreu asfixiado. Um desfecho trágico para um espetáculo de terror transmitido ao vivo por emissoras de rádio e TV, que acabou virando filme. Os policiais envolvidos no caso foram acusados de homicídio qualificado, mas foram absolvidos pelo Tribunal do Júri do Rio.