Nesta semana comemoramos o Dia Nacional da Visibilidade Trans (29 de fevereiro), que reforça as políticas públicas conquistadas ao longo dos anos no Brasil e no mundo, bem como o orgulho, a conscientização e a resistência dessa comunidade. E, acompanhando a constituição de diferentes tipos de famílias, a medicina reprodutiva no país evoluiu e tem diminuído, significativamente, as dificuldades da população LGBTQIAPN+ de realizar o sonho da maternidade/paternidade.

Atualmente, técnicas como inseminação artificial, congelamento de óvulos e de sêmen e a doação de óvulos ou esperma têm mudado a história dessa parcela da população que deseja gerar filhos biológicos. Para se ter ideia, somente em 2013, uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) (nº 2.013/13) permitiu de forma explícita que as clínicas e serviços de reprodução humana realizassem técnicas de reprodução assistida em casais do mesmo gênero no Brasil.

Como a que permitiu aos 2 Papais –  os empresários André Tonanni e Helio Heluane – realizarem o desejo de ter um filho. Graças ao processo de fertilização in vitro (FIV) e à barriga solidária de uma amiga, eles comemoraram em janeiro passado o primeiro aniversário de Fillipo, que nasceu após oito tentativas de “engravidarem”.

Em 2021, o CFM incluiu também pessoas trans. Sabemos que esse tratamento já é realizado para a população LGBTQIAPN+ há mais tempo, porém, ter isso explicitado nas resoluções do CFM foi uma das muitas vitórias conquistadas pela comunidade LGBTQIAPN+  nos últimos anos. Hoje, homens e mulheres trans já podem viver a tão sonhada espera de um filho, levando em consideração suas próprias escolhas, momento e, principalmente, individualidades.

Tratamentos em casais com pessoa trans ainda são pouco divulgados

Os tratamentos de reprodução assistida em casais com pessoas trans vêm crescendo, mas são pouco divulgados, pois ainda há muito preconceito envolvido. Fato é que com maior visibilidade das pessoas trans e acesso aos seus direitos, a tendência é que a informação circule cada vez mais entre a população.

“A parentalidade para pessoas trans é o resultado de muita luta e resiliência dessa população, que tem como aliado o desenvolvimento científico amplo na área de fertilidade. É nosso papel disseminar os avanços da medicina reprodutiva para que essas possibilidades alcancem cada dia mais pessoas de forma ainda mais inclusiva”, afirma  Carolina Rebello, especialista em Reprodução Assistida da Vida Bem Vinda, unidade do Fertgroup.

De acordo com o especialista, no Brasil, há clínicas especializadas em reprodução assistida que contam com equipe multidisciplinar, e opções para diferentes núcleos familiares.

“Entre elas estão a fertilização in vitro, inseminação artificial e a barriga solidária, desde que seja entre parentes de até quarto grau. E, no caso da barriga solidária, a pessoa que irá gestar precisa ter ao menos um filho, ser maior de 18 anos e estar disposta a gerar o bebê sem fins lucrativos, ou seja, sem receber nada em troca”, acrescenta.

Acolhimento de casais é o primeiro passo

Marcos Sampaio, médico da clínica Origen BH (Foto: Divulgação)

Na visão do médico ginecologista Marcos Sampaio, da clínica Origen BH, a decisão do CFM ajuda a diminuir os tabus que envolvem o universo trans e permite que todos os seres que sonham em ter filhos possam realizá-lo. Segundo ele, o acolhimento é o passo número um antes de se falar em qualquer tratamento.

“É fato que a sociedade vem mudando nos últimos anos e a ideia de formação de família também. Todos nós precisamos estar abertos às mudanças e também atentos na forma de lidar com a diversidade. Todas as pessoas, independentemente de credo, raça e orientação sexual devem ser respeitadas em seus sonhos e escolhas. Por isso, a escuta e o acolhimento são fundamentais quando um casal com pessoa trans procura a medicina reprodutiva”, diz

Segundo o médico, a primeira questão a ser colocada como prioridade de consenso entre o casal com pessoa trans é ter ou não ter filhos. “Esse diálogo é fundamental,  pois os óvulos e o sêmen precisam estar preservados para o tratamento. Não é possível fazê-lo se a pessoa trans iniciou a transição hormonal, pois tanto os ovários quanto os testículos param de funcionar”, explica Sampaio.

No caso desse casal que quer ter filhos, o ideal, nesse caso, é congelar óvulos e espermatozoides antes da transição hormonal, para que seja viável, no futuro, fazer o tratamento com seu próprio material genético.

Todo o procedimento é acompanhado pela equipe de psicologia, fundamental no processo de acolhimento desses pacientes e orientação sobre os melhores procedimentos.

Decisão deve ser tomada antes da redesignação sexual

A medicina reprodutiva auxilia os casais com pessoa trans com duas técnicas: a fertilização in vitro e a inseminação artificial. Para adotar uma delas, a pessoa trans não pode ter feito a cirurgia de redesignação sexual.

“No caso de homens trans, eles precisam ter o aparelho reprodutor preservado: útero e ovários; no caso de mulheres trans, o pênis e os testículos”, acrescenta Marcos Sampaio.

Em ambos os tratamentos, as medidas adotadas são similares às de um casal hetero para a estimulação ovariana e para a produção dos espermatozoides (que pode ser do companheiro ou de um doador anônimo).

“A questão mais delicada nesse procedimento é o fato de o homem trans não desejar ter a gestação, e preferir transferir o embrião para o útero de outra pessoa. Todo esse procedimento é muito conversado com o casal, para que ele se sinta acolhido e seguro em realizar seu sonho da maneira mais orientada possível”, complementa o ginecologista.

Tire suas dúvidas sobre o tema

A seguir, a Dra. Carolina Rebello esclarece as principais dúvidas a respeito:

– É importante preservar a fertilidade antes da terapia de adequação de gênero ou terapia hormonal?

Sim, esse seria o ideal, e a preservação por meio de gametas é o caminho mais indicado. Trata-se de uma técnica de congelamento de -196ºC que pode ser feita em óvulos, tecido ovariano, espermatozoides e embriões, cujas circunstâncias inativam seu metabolismo, mas preservam sua viabilidade.

Para as mulheres trans esse tratamento se faz mais urgente, já que o uso de estradiol pode prejudicar de forma irreversível a qualidade e quantidade dos espermatozoides. Já para homens trans, é possível interromper o uso de testosterona por alguns meses para prosseguir com o congelamento de óvulos sem grandes perdas em qualidade e quantidade.

No entanto, essa interrupção pode levar ao retorno da disforia. Por isso mesmo nesses casos sugerimos fortemente o congelamento de óvulos antes do início da terapia.

– Quais as opções de reprodução assistida para pessoas transgênero?

Para mulheres trans, é indicado a coleta e o congelamento de sêmen.para homens trans a opção é congelar os óvulos, que são coletados diretamente dos ovários após estímulo hormonal.

Posteriormente, os gametas podem ser descongelados e fecundados em laboratório, junto ao gameta oposto, obtido de um parceiro ou de um banco de doação. Essas técnicas permitem aos pacientes gerarem filhos quando desejarem.

Mas vale lembrar que isso deve ser feito, preferencialmente, antes do início do uso de qualquer terapia hormonal. No futuro, a gestação pode ocorrer com a pessoa do casal que tem útero – inclusive por homens trans – ou por uma barriga solidária.

– Pessoas que fazem uso de terapia hormonal há muito tempo podem gerar filhos?

Sim, inclusive de forma natural. Vale lembrar que as terapias hormonais não são contraceptivas, e que pessoas trans que têm relação com penetração pênis – vagina devem usar métodos contraceptivos.

Contudo, mesmo assim, a qualidade do material biológico pode ser afetada. Por isso, sempre consideramos o congelamento de gametas antes do início dos tratamentos hormonais.

– Quais os tratamentos indicados para quem faz terapia hormonal?

A gestação natural é sim uma opção para casais que têm relação pênis-vagina. É necessário a interrupção da terapia hormonal por alguns meses e uma avaliação pelo ginecologista especialista em reprodução assistida para avaliar a viabilidade de uma gestação natural para esse casal.

Para casais de duas pessoas com útero ou duas pessoas com pênis, ou para casais que não desejem gestação natural, todas as técnicas de reprodução assistida podem ser aplicadas.

– A fertilização in vitro (FIV) e a inseminação intrauterina podem ser utilizados para casais LGBTQIAPN+?

Na FIV, podemos utilizar tanto os óvulos quanto o sêmen das  pessoas do casal ou de um banco de gametas. O embrião, formado no laboratório de reprodução assistida, é transferido para o útero de quem vai gestar – uma mulher cis, o homem trans ou uma barriga solidária.

Na inseminação intrauterina, podemos utilizar o sêmen de uma pessoa do casal ou de um banco de doação, e a inseminação é realizada na pessoa do casal que irá gestar (homens trans ou mulher cis). Lembrando que na gestação do homem trans também é necessário interromper o uso da testosterona antes e durante toda a gestação.

Endometriose em homens trans: tratamento hormonal pode mascarar o diagnóstico

Transição deve ser acompanhada por especialistas; hormônio é capaz de afetar o ciclo menstrual e o desenvolvimento da doença

Em todo o mundo, estima-se que a endometriose afete 190 milhões de pessoas em idade reprodutiva, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), podendo levar à infertilidade. No entanto, ela não é uma doença exclusiva das mulheres. Pessoas não-binárias e homens transgênero também estão suscetíveis, mesmo aqueles em tratamento de reposição hormonal.

É fato que nem todos os homens trans fazem tratamento hormonal com testosterona; esta é uma decisão pessoal e que deve ser feita com um acompanhamento médico especializado e de confiança.  Mas, apesar de escassos os estudos científicos sobre os impactos do uso de testosterona no longo prazo, relatos indicam que é comum haver alterações no ciclo menstrual.

Por ser um hormônio antagônico ao estrogênio, a testosterona pode reduzir os sintomas da endometriose, mas também pode acabar mascarando o diagnóstico, prolongando a condição no organismo e potencializando outras complicações.

“Nos casos em que os sintomas persistem, mesmo com o tratamento de reposição hormonal, é preciso investigar com mais cuidado e ponderar a possibilidade de um tratamento cirúrgico. Lembrando que, quando falamos em cirurgia, estamos falando da retirada dos focos da endometriose, e não da retirada do útero, que só é indicada em casos de necessidade clínica, e em nada se relaciona com a identificação de gênero do paciente”, esclarece Patrick Bellelis, especialista em endometriose e colaborador do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo.

O especialista destaca que ainda há muitas barreiras de discriminação para pessoas transgênero, que afetam seu acesso ao diagnóstico e tratamento mais adequados.

“A saúde é um direito de todas as pessoas, e a endometriose é uma condição relacionada diretamente ao seu útero, seja ela mulher, homem ou não-binária. A transição de gênero é uma fase sensível e de muitas mudanças, tanto no corpo quanto na vida pessoal e social. Por isso, o acompanhamento médico e terapêutico é essencial”, conclui.

endometriose é uma condição médica em que as células do endométrio, tecido que reveste o interior do útero e é expelido durante a menstruação, deposita-se em órgãos anexos, como ovários, trompas ou na cavidade abdominal. Lá, estas células se multiplicam e voltam a sangrar conforme o ciclo menstrual, provocando reações inflamatórias e lesões que podem sensibilizar o funcionamento desses órgãos, causar dores e até mesmo levar à infertilidade.

Com Assessorias

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