Personagens passaram pelo drama real de perder um ente querido

Foi Márcia Disitzer quem criou o argumento para o filme, a partir de sua trágica e dolorosa experiência, e quem também traz as entrevistas emocionantes do documentário. Repórter de O Globo, Marcia escreveu na Revista Ela sobre os suicídios de seu pai, em 1979, e de sua mãe, 11 anos depois. A repercussão do depoimento corajoso, publicado em 2019, foi enorme, e ela resolveu fazer o documentário num ato de empatia com outras tantas pessoas que passaram pelo mesmo trauma.

“Levei muito tempo para falar, escrever, sobre isso. Fui acolhida por colegas com quem trabalhava há mais de 10 anos e não sabiam o que havia acontecido. E também por pessoas que não conhecia e queriam muito dividir suas histórias comigo. Eu me solidarizei com elas, mas não saberia orientá-las”, contou ao Globo.

Márcia precisou de meses de pesquisa e entrevistas para conseguir a confiança e a cumplicidade dos personagens que passaram pelo trauma de perder alguém. Segundo Márcia, foram meses de pesquisa e entrevistas para conseguir a confiança e a cumplicidade dos personagens que passaram pelo trauma de perder alguém.

Mãe perdeu dois filhos em atos extremos contra a vida

Os dois filhos de Guta Alencar se mataram com 16 e 18 anos. Hoje ela se dedica a ajudar outras pessoas (Foto: Reprodução do GNT)

O documentário traz relatos impactantes daqueles que ficaram e vão permanecer a vida inteira nesse processo de superação de uma perda tão abrupta.  Entre os depoimentos mais emocionantes está o de Guta Alencar, que perdeu dois filhos por suicídio, num intervalo de três anos, ambos ainda muito jovens – o primeiro, aos 16, após a namorada cinco anos mais velha terminar um namoro – e o segundo, aos 18, que, segundo ela, se matou por ‘saudades do irmão’.

“A decisão dos meus filhos foi muito dolorosa, para eles e para nós, sobreviventes. Quando perdemos alguém em um acidente, culpamos o acidente. Se for doença, é dela a razão do fim. No suicídio, apontamos o dedo para nós mesmos: o que podíamos ter feito, o que não percebemos, o que fizemos de errado? ‘Para os que ficam’ já seria corajoso por falar de tema tão estigmatizado, condenado ao silêncio dos segredos familiares. Mas seu propósito vai além, ao rejeitar culpas e revelar, com nossas histórias, que a vida dos enlutados, apesar de tanta dor, segue”, diz Guta.

Mãe de Eva, de anos, ela se tornou estudante de Psicologia decidida a se especializar na prevenção e posvenção (tudo que se pode fazer após a morte) de suicídios. “Após dividir o pior” com quem a pede acolhida, ela encontrou seu propósito: “levar o melhor” a famílias que passam pelo mesmo drama. “Estou sofrendo agora, estou triste agora, estou desolada agora. Não há dor passada pra mim”, ressalta.

Pai de adolescente se tornou voluntário do CVV

O documentário também traz o depoimento do jornalista Roberto Maia, pai de Jéssica, uma adolescente que decidiu desistir da vida muito precocemente, aos 13 anos. ´Roberto contou que quando a filha desapareceu, ele estavam sem se falar. E seu mundo caiu. Passados muitos anos, ele se tornou voluntário do Centro de Valorização da Vida (CVV). No depoimento de Simone de Souza, ex-mulher de Roberto e mãe de Jéssica, revela-se a vida de uma adolescente tímida e triste, que encontrava refúgio em um diário. A menina sofria em silêncio com a separação dos pais.

Outro depoimento muito emocionante é de Valentina Seabra, filha de um executivo do mercado financeiro que era viciado em cocaína. Sem saber como lidar com a perda quando era criança, Valentina hoje se dedica ao desenvolvimento de metas para corporações que levem em conta os limites e saúde mental dos funcionários.

Outra entrevistada é enfermeira Fernanda Lima da Silva, irmã de Ricardo, estudante da Universidade de São Paulo (USP) que tirou a própria vida após sofrer intenso processo de bullying e não contar com atendimento especializado em saúde mental. Fernanda conta que viu seus parentes se unirem ainda mais após o suicídio do irmão, o primeiro da família, negra e da periferia, a chegar ao ensino superior.

O documentário traz ainda a importante contribuição do influenciador digital e ativista LGBTQIAP+ Pedro HMC, viúvo do policial civil Paulo Vaz, um homem trans que cometeu suicídio no dia seguinte ao vazamento de um vídeo íntimo do marido com um homem cisgênero. Falar do tema se tornou um propósito para ele.

“Nossa comunidade é comprovadamente mais suscetível ao suicídio. Falar do tema é uma bandeira que não largarei jamais”, diz ele, que foi massacrado na internet, inclusive por pessoas da própria comunidade LGBt, após o suicídio de seu marido.

Especialista em suicídio analisa a dor dos ‘sobreviventes enlutados’

Para ajudar a entender essas histórias e ancorar cientificamente o documentário, uma das mais renomadas especialistas nos temas suicídio e luto do Brasil, a psicóloga gestalt-terapeuta e psicopedagoga Karina Fukumitsu, que tem pós-doutorado e doutorado em Psicologia pelo Instituto de Psicologia (USP) e mestrado em Psicologia Clínica pela Michigan School of Professional Psychology, 

“Quando comecei a trabalhar com o tema, não havia literatura sobre luto em suicídio no Brasil, tamanho o preconceito”, diz Karina, autora de livros como “Sobreviventes enlutados por suicídio: cuidados e intervenções”, da Summus Editorial. A suicidologista é quase uma sobrevivente enlutada.

Depois de ser abandonada pelo pai junto com a irmã mais nova, Karina acompanhou a mãe em diversas tentativas de suicídio ainda na infância e adolescência. Por longos anos, assistiu o despreparo de equipes de saúde que recebiam sua mãe com um “mas a senhora, de novo? Não tem dó da gente, dessas meninas lindas?”. Sua mãe acabou morrendo anos depois, de infarto.

A psicóloga faz várias declarações ao longo do filme, pontuando as sensações e percepções daqueles que ficaram para contar histórias trágicas de mortes inesperadas com muitos pontos de interrogação. Em seu livro “A outra margem”, Karina Fukumitsu escreve que, de fato, “nunca se é o mesmo após viver o luto por suicídio”. Mas que, ao longo da vida, é possível e desejável “criar beleza dos fragmentos” e, assim, encontrar “o outro lado do rio”.

“Falar sobre suicídio ainda é processo velado, que desperta medo ao expor a perda de controle. As razões para alguém se matar são multifatoriais, inclusive, mas não só, depressão ou impulsividade, e a gota d’água é simplesmente estar vivo. Parece óbvio, mas o ato suicida é exclusivo de quem se matou, a verdade parte com ele. E, embora não tenha cura, o processo de luto por suicídio contém esperanças. O documentário, ao tratar disso, é ao mesmo tempo um grito e um acolhimento”, diz.

Serviço

O filme de 1h15min não traz a forma como as pessoas lembradas na produção tiraram suas vidas. Antes e depois da exibição, é apresentado o serviço gratuito e 24 horas por dia do Centro de Valorização da Vida (CVV) e seu 188, além da ajuda especializada nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e nas unidades básicas de saúde mais próximas.

Também é destacado o trabalho da Associação Se Tem Vida, Tem Jeito, criada por Karina Fukumitsu, e o núcleo de assistência social a enlutados o Transformador em Amor, no Instituto Sedes Sapientiae, ambos em São Paulo.

ALERTA: Assim como o documentário, este texto aborda temas que podem servir de ‘gatilho’ para algumas pessoas. Caso você se identifique, tenha depressão ou pensamentos suicidas, procure apoio no Centro de Valorização da Vida pelo telefone 188.

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2 Comments
  • Verônica Coutinho
    1 de outubro de 2023 at 13:29

    Documentário maravilhoso. Trata desse tema tão cheio de tabu e tão complexo com delicadeza e respeito pelos que ficam. Parabéns!

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